Os grunhidos e rumores de luta
foram cessando. Seridath quase não acreditava que eles foram
salvos dos zumbis por outro tipo de mortos-vivos, aqueles derrubados
por sua espada.
O silêncio entre os
guerreiros era profundo. Tudo indicava que eles foram de fato salvos, mas ninguém parecia querer comemorar. Enquanto os sons
do incêndio se propagavam na noite, todos se perguntavam se não
seria uma armadilha.
Balgata deu
ordens rápidas a seus homens para que continuassem de guarda,
enquanto ele e Seridath se dirigiam ao casarão. O cavaleiro
olhou ao redor, em busca de Aldreth, mas o garoto havia desaparecido.
Dando de ombros, Seridath continuou a seguir o capitão. A sala
de estar estava apinhada de gente, em sua maioria velhos e crianças.
Culliach andava para todos os lados, atarefado em curar feridas e
consolar camponeses desesperados. Seridath
e Balgata conseguiram identificá-lo devido ao longo manto
sacerdotal que o destacava. Não havia sinal de Anfard ou
Denor.
– Mestre
Culliach – chamou Balgata, respeitosamente –, como vão as
coisas?
– Nada
bem, caro capitão – suspirou o sacerdote. – Rheena não
parece favorável esta noite e por isso clamo a Nisia e
Talman. Temo que as feridas dessas setas tragam maldição
para os que foram atingidos. Agora é cedo para qualquer
afirmação. Alguém teve a ideia louca de
incendiar as casas e por isso tenho muitos tocados pelo fogo, alguns
em estado grave, mas creio que tenha sido a plácida escolha de
Nereth. Por outro lado, não fosse por essa ação
impensada, talvez todos nós já teríamos nos
tornado vítimas des...
Seridath cortou o monólogo
do religioso:
– Olha,
padre, não quero parecer rude, mas precisamos ser rápidos.
Preciso falar com o Senhor da vila. O nome dele é Denor, estou
certo?
O sacerdote estremeceu de uma
maneira que Seridath entendeu tudo. Pelo visto, não iria ficar
com as cobiçadas botas. Balgata também pareceu
entender. O capitão bufou, cerrando os punhos com tal força que chegava a tremer.
Ante a fúria daquele homem gigantesco, o sacerdote encolheu-se
mais ainda. Olhando para um Balgata totalmente diferente, Seridath
ficou maravilhado ao ver como aquele almofadinha havia mudado tanto
em apenas algumas horas.
O capitão
estendeu a mão direita na direção do sacerdote,
que encolheu-se ainda mais, soltando um gemido quase inaudível. Ele
parecia ter pouco mais de trinta anos, era magro e de estatura
mediana. Tinha olhos grandes e caídos, numa expressão
de constante desamparo. Culliach era um dos muitos sacerdotes plebeus
que gastaram o mínimo de seu tempo em seminários
estudando a parte teórica da religião e passavam a
exercer seu ministério nas regiões mais remotas do
reino. Mas ele nunca tivera tanto trabalho como agora. Muitos dentre
os sobreviventes haviam sido feridos pelo incêndio, outros
pelas setas malignas. E justamente nessa noite sombria ele estava
diante do único capitão sobrevivente de um exército
desesperado.
Balgata tocou
de leve o ombro de Culliach, que ergueu os olhos, surpreso. O
capitão falou, calma e pausadamente:
– Padre,
com o perdão da palavra, estamos todos na mesma merda. Eu
posso ser um mercenário, mas depois de tudo que vi nesta luta,
estou aqui por convicção e não por pagamento. Eu
quero ver as pessoas em segurança. Denor e o Juiz fugiram, não
é?
– Si-sim...
– suspirou o sacerdote. – Fo-foram logo depois que as setas
começaram a cair.
Sem aviso aparente, Balgata
esmurrou a parede às costas de Culliach. O sacerdote, sobressaltado, deu um ligeiro pulo e emitiu um
grito estridente e abafado.
– Maldição!
– bufou Balgata. – Filhos da puta! Nos deixaram para retardar sua
fuga!
– De-desculpe...
– gemeu Culliach.
– Não
precisa se desculpar, padre – Balgata pareceu acalmar-se diante da
fragilidade do sacerdote. – O senhor somente estava obedecendo as
ordens do seu amo, conforme mandam os deuses. Eu também não
estou em condições de querer acertar as contas.
– Já
estava tudo preparado – informou Culliach, um pouco mais animado
com a simpatia do capitão. – Sabiam que as terras estavam
perdidas, que os mortos já começavam a lutar em bandos
organizados. A passagem leva a sudeste, rumo a Arnoll. Denor tem uma
amante na cidadela e usava a passagem com... bastante frequência.
Mas sua esposa e filhas estão com ele, talvez sigam direto
para o sul.
Balgata olhou de relance para
Seridath, que tinha um sorriso de escárnio no rosto e encolhia
os ombros, como se dissesse: "Não vá esperar que
eu não busque acertar as contas!". O capitão
suspirou e voltou-se novamente para Culliach.
– O
senhor sabe onde fica essa passagem? – perguntou o guerreiro.
– Si-sim. Fica atrás da adega.
– E
quantas pessoas podem passar por vez?
– Nã-não
sei... Acho que po-poucas.
Balgata
suspirou mais uma vez, enquanto se
virava para Seridath.
– Vamos
dividir os sobreviventes em três grupos – disse o capitão,
ainda sem conseguir disfarçar o quanto estava contrariado. –
O terceiro grupo vai ser uma isca. Colocamos a maior parte dos velhos
e crianças no segundo grupo, que tem mais chance de
sobreviver. Queria Anfard ou Denor para fazerem isso, mas você
vai ter que liderá-los.
– Nem
pensar – respondeu Seridath. – Eu vou no terceiro grupo. Vai
você, que quer protegê-los.
– Não
entendeu o que eu disse, orgulhoso de merda? As vidas desses
camponeses estão em jogo. Não é hora para
brincadeiras!
– É
isso mesmo, capitão. Você é um oficial de verdade
e eu não passo de um soldado raso. O velho Urso Pardo não
aprovaria que você me desse qualquer liderança.
– Dobre
essa língua em vez de falar do Andarilho, maldito! – rosnou
Balgata. – Honre a memória dos mortos.
– Eu
não desonrei ninguém. Só disse o que acredito
que o velho faria. A propósito, fui o último a estar
com ele na hora de sua morte. Não confunda as coisas,
capitão.
Tudo isso foi dito com o máximo
de sarcasmo por parte de Seridath. Balgata deu de ombros, deixando
evidente todo seu cansaço.
– Faça
como quiser. Não te considero guerreiro da Companhia. Padre,
por favor, reúna os camponeses e divida os três grupos.
– Ma-mas...
– hesitou Culliach. – E os feridos?
– Faça
o que puder, padre. Você é o representante dos deuses.
Fazer milagres é um trabalho seu, não meu.
O sacerdote
baixou novamente a cabeça, enquanto Balgata silenciosamente
deixava o recinto, seguido
por Seridath. O capitão ardia em ira, mas tentava manter seu
autocontrole diante da situação crítica. Não
queria provocar baixas por causa de seu orgulho ferido. A prioridade
era tirar as pessoas daquela aldeia condenada.
Seridath olhava
para ele, divertido. Adorava aquela situação, como se
estivesse vendo um
espetáculo na primeira fila. Andaram até o salão
comunal, onde haviam sido acomodados os feridos mais
graves. O capitão Aleigh estava entre eles, ardendo em uma
sinistra febre, dizendo coisas sem sentido. Do seu peito as hastes de
duas setas negras despontavam. Haviam sido quebradas pela metade, na
tentativa de serem arrancadas. Naquele momento, a realidade veio a
Balgata. Murrough não fora visto, não estava entre os
feridos. Murrough estava morto.
Continua...