segunda-feira, outubro 30, 2023

Fahrenheit 451 - A vontade que vence o fogo


Guy Montag é um bombeiro que ama o que faz. Se você acha que isso significa amor por apagar incêndios, eu já adianto que não. Montag ama causá-los. Sim, ele é um bombeiro e sua função é queimar. Em uma era em que as casas não mais se incendeiam, a missão dos bombeiros agora é queimar livros.

Seu amor pelo trabalho é então posto à prova quando ele conhece Clarisse McLellan, uma jovem diferente, que ama pensar e dar longas caminhadas por sua vizinhança. Os poucos mas significativos encontros com Clarisse aceleram uma mudança que Montag já sofria, fazendo com que ele questione sua vida, seu trabalho e toda a sociedade à sua volta.

Assim, vamos conhecendo a história do protagonista de Fahrenheit 451, obra-prima de Ray Bradbury, mestre da ficção especulativa. Nesse livro, situado em um futuro não tão distante, ter livros é crime e o papel dos bombeiros é incinerá-los. Nessa sociedade, as universidades e escolas foram fechadas e as mídias assumiram proporções assustadoras, com telões interativos que ocupam paredes inteiras, além de atrizes e atores sendo chamadas de "família".

Havia lido esse livro pela primeira vez há mais de dez anos e confesso que senti certa dificuldade nessa primeira leitura. A de agora foi muito mais fluida e prazerosa. Parecia até que eu lia outro livro, completamente novo. Foi maravilhoso e ao mesmo tempo assustador ver pelos olhos de Guy Montag esse mundo distópico e perturbador em que a busca pelo conhecimento é desencorajada e até mesmo punida.

Montag de início me pareceu um homem raso e ingênuo. Porém, com o desenvolvimento da narrativa, sua ingenuidade foi ficando menos evidente. Não que ele a tenha deixado de lado. Trata-se de um homem de sua "época", com suas características e peculiaridades. Porém, ele entra em contradição com essa dita época. Seu contraponto é o capitão Beatty, sempre cheio de argumentos e com uma carga de leitura assombrosa. O capitão é um homem amargo e cínico, disposto a demover Montag de sua jornada de autodescoberta. Fato é que, quando Guy começa a acreditar nos livros, Beatty usa os próprios para rebater e ridicularizar Montag. E as atitudes do capitão acabam trazendo consequências irreversíveis.

Outra coisa que gostaria de dizer sobre o livro é sua literariedade. O trabalho com a linguagem é fenomenal e nos proporciona uma leitura deliciosa.

A edição que li trazia uma série de textos suplementares, entre eles, a introdução escrita por Neil Gaiman para a edição de 2013. Sempre é bom ler palavras tecidas por Gaiman, um feiticeiro literário. Ao final do livro, há também uma coleção de capas, desde aquela feita para a revista "Galaxy Science Fiction", a qual traz o conto "O bombeiro", narrativa que originou Fahrenheit 451, até capas de traduções do romance para outros países. São as capas mais célebres. Há outros textos como o excerto do diário de bordo de Truffaut para a adaptação cinematográfica. Há, também, um delicioso relato feito por Margaret Atwood.

Trata-se, portanto, de uma edição maravilhosa, que vale muito a pena colecionar.

É interessante como Montag começa a questionar tudo à sua volta, a ponto de sentir nascer em si um desejo de descobrir o que os livros possuem que fazem mulheres e homens morrerem por eles. Mas como Faber, outra personagem emblemática, disse, não são os livros, mas aquilo que eles guardam.

Com um apuro literário e profundas reflexões, Fahrenheit 451 é um livro incrível, um clássico imortal e uma declaração de amor aos livros mas, principalmente, às ideias, que fogo nenhum pode queimar.

Você pode conferir a primeira resenha que fiz sobre este livro aqui.


Ficha Técnica

Fahrenheit 451

Ray Bradbury

Tradução de Cid Knipel

ISBN-13: 9786558300151

ISBN-10: 655830015X

Ano: 2020 

Páginas: 272

Idioma: português

Editora: Biblioteca Azul


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/fahrenheit-451-136ed11679666.html

quarta-feira, outubro 25, 2023

Uma biblioteca para todas as crianças



Falar sobre uma biblioteca que acolha a infância é um grande desafio. E esse desafio foi aceito por Fabíola Farias e Cleide Fernandes na oficina "Uma biblioteca para todas as crianças", acontecida na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH no dia 06 de outubro de 2023, sexta-feira, pela manhã. Fabíola deu início à sua fala nos convidando a pensar na infância e sua relação com a biblioteca. Disse que aborda a infância a partir da perspectiva do recorte etário. Sendo assim, ela fala de experiência de infância, ou seja, os muitos jeitos de ser criança.

Em seguida, ela nos convidou a pensar a biblioteca e lançou a pergunta: Qual o sentido de uma biblioteca hoje, quando tudo está às mãos no toque de um celular? Para que uma biblioteca hoje? Para pessoas com poder de compra? Ela perguntou se com o recurso gasto na biblioteca (água, luz, telefone, funcionários, acervo etc.), seria mais barato dar um tablet para cada leitor. O que ganhamos com a biblioteca? 

Dentre as participantes, algumas pessoas falaram da experiência de usar uma biblioteca. Outras disseram da importância do apoio de um bibliotecário. Uma outra pessoa disse que o livro físico é insubstituível. Fabíola contrapôs que sua filha de 17 anos discorda. Outra pessoa colocou que s questão seria a ação cultural e também da experiência num sentido mais amplo.

Eu aproveitei e coloquei minha opinião. Disse que o tecnológico se perde com muita facilidade. Um livro digital pode desaparecer no volume de informações. O advento de esbarrar com um livro que você nem sabia que queria é algo fabuloso. A IA não sabe o que eu preciso e não sei que preciso. Ela não favorece a descoberta. A preparação para as mediações que não são imediatas. O encontro. 

Voltando à questão da experiência num sentido mais amplo, Fabíola falou sobre as ações de ver, indagar, transformar o mundo e assim ter um contato menos ingênuo e menos imediato com o mundo. Uma possibilidade de formação e acesso ao conhecimento.

Dando continuidade, Fabíola pediu para pensarmos na representação das crianças na literatura. Quem são as crianças que imagino quando abro as portas da biblioteca? A criança "danoninho", idealizada? A criança que reflete os nossos desejos. Isso fala de uma romantização da infância. Estudos "identitários" mostram que a experiência da infância é muito mais ampla do que imaginávamos. Por fim, Fabíola nos convidou a pensar nos livros e como eles retratam as crianças.

Ela lançou então a seguinte pergunta: O que é uma criança? Podemos responder pelo viés da Sociologia, da Pedagogia, da Biologia, da Lei, da Psicologia. A lei é mais universal. Porém, existem características que singularizam a experiência.

Voltando à questão dos livros, de 20 anos para cá, a representação e a representatividade das crianças mudaram nos livros. Não havia antes livros com crianças negras e, quando havia, esta era estereotipada. Com a Lei Federal 10639 de 2003, o cenário começa a mudar. Foram surgindo livros que tratavam do tema ancestralidade, relação com o fogo, uso de tranças no cabelo. Havia uma romantização de pertencimento ao continente africano. A autoria nem sempre era de pessoas negras. O mercado teve que se adequar. Afinal, o dinheiro fala mais alto. Não podemos negar, porém, que essa fase foi importante. Contudo, outras representações foram surgindo, o que mostra um amadurecimento na produção editorial.

Existe o benefício da identificação. Com exemplo, há o livro À sombra da Mangueira. Está disponível sua versão digital para leitura. Ele mostra outro lugar para essa representação. Fabíola então contou a história do livro. Ângelo Abu foi para Moçambique pesquisar para fazer as capas dos livros do Mia Couto. Entrou em contato com uma ONG e ofereceu oficinas de arte em troca de casa e comida. No final, as crianças deram uma oficina para ele. Foi uma viagem transformadora.

Outro exemplo é o livro Brincar de livro que, dentre outras coisas, fala do direito ao tempo da leitura. Esse livro faz um deslocamento muito grande. Ele aborda personagens negras com tempo para brincar e ler. É uma história linda  com uma representação deslocada dos estereótipos. Outros livros foram apresentados com representações diversas. É importante pensar nas crianças com mãe ou pai privados de liberdade, adotadas, com pais gays, indígenas, com deficiência. 

E por falar em pessoas com deficiência, Cleide entrou abordando a questão das exigências que os editais atualmente estão fazendo. Trata-se de um avanço. Na perspectiva das pessoas com deficiência, nós temos que escutá-las. São vários os recursos atuais. Com o aumento de recursos utilizados, mais pessoas serão incluídas.

Um dos recursos mais comuns é o Braille. Mas nem todo cego vai ler em Braille. Se for cegueira de diabetes, não haverá sensibilidade nos dedos. Sendo assim, é importante ter sensibilidade, disposição para aprender e, principalmente, mediar. 

Ao final da oficina, saímos repletos de conhecimentos, com muita coisa para pensar. E principalmente, ficamos muito gratos pela Cleide Fernandes e pela Fabíola Farias pela oficina que nos foi ministrada. Que possamos nos sensibilizar para as diversas experiências de infância e que busquemos uma biblioteca mais plural e acolhedora.






















Registros feitos pela Marly Rezende. 

terça-feira, outubro 24, 2023

Minha participação no DiVera - II Festa da Palavra e da Cultura de Conceição do Mato Dentro


Os eventos literários e culturais são essenciais para qualquer artista, principalmente escritoras e escritores. Sendo assim, é fundamental também divulgar nossas participações nesses eventos tão importantes. No dia 28 de outubro, participarei da programação do DiVera - II Festa da Palavra e da Cultura de Conceição do Mato Dentro. São duas ações que contarão com a minha participação: Os lançamentos dos livros Uma visita inesperada, Aurora e O Viajante Cinzento, bem como a oficina "Meu Primeiro Livro".

Durante o lançamento, dividirei o espaço com importantes nomes da literatura e da ilustração, como Carol Fernandes e Nelson Cruz.

Para conhecer toda a programação, basta acessar o link do Instituto Periférico.

E você, venha também para Conceição do Mato Dentro e aproveite toda a programação do DiVera!




segunda-feira, outubro 23, 2023

Toda cicatriz desaparece - Pequenos pecados e grandes tragédias



Há pessoas que, desde que nasceram, enfrentam as mais diversas dificuldades. Fome, pobreza, doença. E tais dificuldades parecem moldar, definir as vidas dessas pessoas. Principalmente se essas tragédias aconteceram durante a juventude.

Toda cicatriz desaparece, livro de crônicas autobiográficas de Rogério Pereira, nos apresenta alguém marcado pela vida. Fome, miséria, alcoolismo, trabalho infantil, essas são algumas das tragédias que acompanham o cronista, que carrega o ar de quem foi marcado profundamente por elas. Melancolia é pouco para tentar definir o tom do livro.

As crônicas são pungentes, agudas, doem aos olhos e nos comovem. Rogério aparece como um náufrago, arrastando consigo seus fantasmas e memórias de pequenos pecados inconfessos. Destes pecados o mais destacado talvez seja o de furto. Um ladrão de comida. O de matador de passarinhos vem em segundo lugar. Em seguida, outros pecados aparecem, sempre apresentados num tom que passeia entre o desafio e a resignação.

Apesar das crônicas abarcarem o tempo cronológico da infância e da juventude, com uns lampejos da fase madura, não há uma sequência temporal. Ao invés de uma linha reta, nós nos deparamos com uma espiral, onde memórias dolorosas são revisitadas à exaustão. Assim, somos convidados a conhecer o inferno particular de Rogério Pereira, com suas dores e fugidias delícias.

De todas as tragédias pessoais abordadas no livro, talvez a mais referenciada seja a súbita morte da irmã, aos 27 anos. Uma morte abrupta e sem sentido. A forme que acossava a família é outra tragédia dissecada pela pena do autor. Há outras mais, como o vício do pai no álcool, que seguiu o autor como um atavismo, bem como as ameaças e surras que o pai dava na mãe e nos filhos.

Ninguém escapa da crueldade do pai. Nem a cachorra Princesa, que foi levada para ser abandonada em um bairro distante. Os dois meninos, levados para acompanhar a operação, podiam, inclusive, imaginar o perigo de sofrerem fim semelhante.

Nesse livro, toda a beleza é desconstruída, seja pela fome que se torna uma urgência, seja pelo piolho passeando livremente pela orelha da amada. As fealdades, porém, são destacadas, também pela fome, pela situação indigna dos personagens, na doença personificada pelo câncer, que tudo corrói.

Não há lugar para otimismos. Mesmo momentos de vitória, como a leitura de uma crônica em Frankfurt, se torna episódio de melancolia e da constatação de uma derrota pessoal, íntima e intransferível.

Todos os mortos são vasculhados, dissecados e expostos. Seja a mãe, com sua boca sem dentes e o furo da traqueostomia, seja a irmã, com seu silêncio, seu corpo franzino e as surras que levava. Até  alguns colegas mortos são evocados, através das travessuras provocadas pela forme e escassez, ou também pelos sonhos compartilhados em comum, de alcançar o estrelato em algum campo de futebol.

E por falar em sonhos, eles aparecem justamente para serem destroçados. Numa escrita poética e profundamente visceral, as crônicas nos falam desses sonhos frustrados numa narrativa que nos envolve e comove.

Com um emaranhado de memórias, uma narrativa de uma escrita primorosa, Toda cicatriz desaparece é um mergulho em lembranças dolorosas, escritas com apuro, uma jornada íntima ao passado de um homem que, a despeito de suas conquistas, nunca deixou de sentir cada uma de suas dores. 


Ficha Técnica

Toda cicatriz desaparece

Rogério Pereira

ISBN-13: 9786557982549

ISBN-10: 6557982540

Ano: 2022 

Páginas: 208

Idioma: português

Editora: Maralto


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/toda-cicatriz-desaparece-122245025ed122251461.html

quarta-feira, outubro 18, 2023

Devaneios sobre um guarda-chuva

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Quando criança, usava o guarda-chuva mais como brinquedo do que proteção para a chuva. Por vezes era espada, influência dos sabres de luz jedi ou dos filmes de cavalaria. Em outras ocasiões, era espingarda, com a qual combatia vietcongues, mafiosos e bandidos.

Em períodos chuvosos, quando precisava do guarda-chuva em sua função para o qual foi fabricado, imaginava-o como cobertura de um veículo sofisticado, fosse terrestre, aquático ou aéreo.

Hoje, com o esfarelamento da minha infância e da ludicidade inerente a ela, quase não uso guarda-chuva. Prefiro as capas, que por mais que me façam suar, cobrem minha vergonha.

Nunca brinquei com o guarda-chuva como um objeto vivo. Bem, já o imaginei como um bastão mágico, objeto onírico, com o qual fazia valer minha suposta vontade. Isso, porém, era mais delírio que brincadeira. 

Em minha juventude, nunca dividi o guarda-chuva com uma amada platônica ou uma paixão não declarada. Minhas chuvas sempre foram solitárias e melancólicas. Tanto que suspiro sempre que vejo a chuva. Sinto meu corpo todo arrepiado. 

Existe um mistério na chuva. A água que cai do céu, por mais que o fenômeno seja explicado, é sempre um milagre.

Por isso talvez não goste tanto de guarda-chuvas. Sentir a água em meu corpo é uma forma de também viver essa magia. Esse milagre tão singelo e gratuito.

segunda-feira, outubro 16, 2023

Ouça a canção do vento & Pinball 1973 - Quando nasce um escritor


Ouça a canção do vento & Pinball 1973 é a publicação conjunta das duas primeiras obras de Haruki Murakami. O livro caiu em minhas mãos e eu estive com ele durante alguns dias, aventurando-me por suas páginas. Ouça a canção do vento garantiu o primeiro prêmio de Murakami como escritor, fundando sua carreira. Pinball, 1973 foi escrito em sequência e teve grande aceitação.

Ouça a canção do vento é narrado em primeira pessoa e conta as peripécias de um jovem de 21 anos, estudante de Tóquio, durante um verão que ele passa na sua cidade natal. Em sua pegada pós-moderna, o livro não se preocupa com um enredo bem desenvolvido. Não há necessariamente uma linha narrativa. A premissa, escrita logo no segundo capítulo, é que a narrativa tenha durado 18 dias de um verão de 1970. Porém, como a própria vida, os capítulos parecem relatos desconexos, sem uma sequência clara entre eles. Cabe a nós, leitoras e leitores, criarmos o sentido que falta, costurarmos seus significados ocultos.

Algumas coisas são colocadas em sequência cronológica, mas nem tudo. Alguns capítulos poderiam, simplesmente, ser trocados de lugar. Outros, nem tanto. Os capítulos da rádio têm um significado alegórico secreto, para mim. Enfim, é um livro envolvente, com uma linguagem atraente que nos seduz e prende, do início ao fim.

O narrador, cujo nome nunca é mencionado, conta um pouco do seu passado. Faz um relato melancólico e saudoso, principalmente sobre as garotas que conheceu. O livro é curtinho, tem uma narrativa dinâmica. A premissa é simples, desprovida de mistério, embora algumas coisas fiquem no interdito.

Uma personagem nomeada é Rato, um rico e amargurado amigo do narrador-protagonista. Assim como ele, Rato bebe quantidades absurdas de cerveja. A principal fonte de sua amargura é justamente sua riqueza.

Outra pessoa mencionada é Derek Hartfield, um romancista fracassado e suicida. De Hartfield o narrador retira lições sobre escrever romances, embora essas lições não sejam lá tão confiáveis, por não terem garantido seu sucesso. Além disso, o próprio narrador ignora tais lições.

Outro ponto interessante é que o narrador está sempre lendo algum livro. De preferência de autoria de pessoas já mortas. Isso porque, segundo ele, pode-se perdoar o que essa pessoa tenha feito. Não concordei tanto assim com essa afirmação.

Com uma linguagem direta e ligeira, numa abordagem de estilo moderno e levemente melancólico, Ouça a canção do vento é uma novela sobre amadurecimento e a saudade de tudo o que já foi.

Pinball, 1973 é uma suposta continuação da novela anterior. Trata-se de uma narrativa tranquila, sem grandes percalços. Nela, o narrador se divide em contar suas experiências como tradutor, seu namoro com duas gêmeas e seu fanatismo pela máquina de pinball Spaceship, além de relatar as angústias existenciais do Rato, personagem da novela anterior.

O livro tem enredo simples como seu antecessor e, como este, é meio que um anti-enredo. O mais importante de uma história é quão bem ela é contada. Assim, a novela é cheia de descrições poéticas e imagens interessantes, assim como sua predecessora.

O narrador não passa por grandes transformações. Sua obsessão pela máquina de pinball e por Kant pode ser uma alegoria à perseguição obsessiva do artista pelo objeto artístico. Ao mesmo tempo, é uma narrativa também sobre amadurecimento e transformação, por mais contraditório que isso possa parecer. Afinal, quem se transforma não é o narrador, mas seu amigo, o Rato.

É interessante e curioso que em Pinball, 1973 não há qualquer menção das pretensões de Rato em escrever romances, algo que foi destacado com certa importância em Ouça a canção do vento. Contudo, isso é sumariamente ignorado. E afinal, os narradores das duas novelas seriam de fato a mesma pessoa? O próprio Rato seria o mesmo?

Existem coisas que me incomodaram em ambas as novelas. A posição das mulheres como objetos meramente sexuais foi uma dessas coisas. E seja nas pessoas das gêmeas, ou na mulher que se relaciona com o Rato, elas carecem de profundidade. É como se elas fossem figuras genéricas e surgem apenas como elemento pitoresco da narrativa, como figuras caricaturais.

Apesar disso, foi uma novela envolvente, com elementos visuais muito belos. Com esses trechos de descrições poéticas, Pinball, 1973 é uma narrativa esteticamente bela, dotada de um certo vazio, como uma flor artificial.

Assim foi o meu percurso pelas duas novelas que compõem a origem de Haruki Murakami como escritor. 


Ficha Técnica

Ouça a Canção do Vento &Pinball, 1973

Haruki Murakami

ISBN-13: 9788556520296

ISBN-10: 8556520294

Ano: 2016 

Páginas: 272

Idioma: português

Editora: Alfaguara


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/ouca-a-cancao-do-vento--pinball-1973-620249ed620931.html

segunda-feira, outubro 09, 2023

CONFINADA - Por trás das máscaras



A Pandemia de Covid-19 foi um divisor de águas em nossas vidas. Um período em que o mundo parou e muitas pessoas se sentiram forçadas a fazer o isolamento. Porém, aquelas que eram pobres continuaram se expondo e morrendo, fazendo os serviços que os ricos se recusavam a fazer. 

CONFINADA é um romance gráfico de Triscila Oliveira e Leandro Assis e conta sobre Fran, uma rica influenciadora digital que convive em isolamento com sua empregada doméstica Ju. Fran é a típica branca alienada e a pandemia irá escancarar ainda mais seus preconceitos.

A HQ de Triscila e Leandro mostra uma parcela significativa da população que explora a maioria preta deste país e não se envergonha disso. Pessoas que sustentam um discurso hipócrita, de meritocracia e moralização, mas vive na esbórnia, no desperdício e na libertinagem. Apesar de publicamente ser uma pessoa de discurso positivo e consciente, e apesar de não compactuar com algumas das atitudes de sua classe social, Fran logo mostra que não quer abrir mão de seus privilégios.

O roteiro é ágil e as imagens são marcantes. Trata-se de uma obra rica como registro crítico dessa época de pandemia. Um olhar aguçado para o interior dessas vidas de ricos decadentes (alguns, nem tanto) que pousam de boas pessoas mas não passam de bandidos exploradores, racistas e misóginos. 

Ju aparece então como a figura da razão, como aquela que irá, por uma ética pessoal, apoiar as amigas e companheiras de trabalho. Aquela que irá abalar as estruturas. Infelizmente, esse abalo não é suficiente para destruí-las, mas não deixa de fazer usas rachaduras.

Com um texto inteligente e imagens de impacto CONFINADA nos entrega uma obra mordaz sobre a Pandemia e todos os podres que esta escancarou.


Ficha Técnica

Confinada

Triscila Oliveira e Leandro 

ISBN-13: 9786556922133

ISBN-10: 6556922137

Ano: 2021 / Páginas: 128

Idioma: português

Editora: Todavia

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/confinada-12029125ed12017223.html

segunda-feira, outubro 02, 2023

Inhamuns - Uma pungente narrativa no sertão do Ceará



Por vezes nos deparamos com leituras que nos atravessam qual navalha e fazem sangrar nosso peito, nos compungindo e maravilhando. Foi o que aconteceu comigo ao terminar Inhamuns, romance da escritora cearense Kah Dantas.

No livro, a protagonista e narradora conta a história de seu retorno a Tauá, cidade localizada nos Inhamuns, Sertão do Ceará. Ela não volta por acaso, mas a trabalho, por conta de uma descoberta de um novo sítio arqueológico próximo a Tauá. Ao chegar, ela encontrará logo seu amigo de infância, e uma antiga paixão renascerá, trazendo consequências irreversíveis.

Pungente e melancólico, o livro de Kah Dantas é também altamente erótico, contando para nós, leitores, uma história de amor salpicada de tragédia.

A narradora, cujo nome não é informado, tem um passado conturbado, com a morte da mãe ainda jovem e o abuso físico de uma tia, em contraste com o amor da avó. Mas esta também está morta; morreu quando a narradora já não morava em Tauá, mas em Porto Alegre, onde fez carreira como jornalista. A cidade tem um enorme preconceito para com a mãe morta, chamando-a de prostituta. Fato é que a protagonista cresceu sem mãe ou pai, aos cuidados de uma avó zelosa, mas ameaçada por uma tia má. E agora ela retorna e revive antigos fantasmas, o amor clandestino do amigo de infância, enquanto enfrenta seus próprios demônios.

Inhamuns é cadenciado e poético. A protagonista não tem uma boa imagem sobre si mesma e ainda acontecem tragédias que pioram essa autoimagem. Há uma tênue tentativa de reconciliar-se consigo, mas não há muito jeito.

A prosa de Kah Dantas é linda e nos afoga em pleno sertão, compondo um romance cheio de águas, apesar da secura da própria narradora.

Com sua prosa pungente e profunda, Kah Dantas cria uma narradora que nos toma pela mão e nos guia por uma jornada a um sertão cearense mítico e erótico.

 

Ficha Técnica

Inhamuns

Kah Dantas

ISBN-13: 9786556810607

ISBN-10: 6556810606

Ano: 2021 

Páginas: 128

Editora: Moinhos


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/inhamuns-11976973ed11968477.html