Mostrando postagens com marcador O Viajante Cinzento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador O Viajante Cinzento. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, agosto 21, 2023

O lançamento de "O Viajante Cinzento" na virada Cultural


O lançamento do livro O Viajante Cinzento na Virada Cultural foi um sucesso, apesar dos percalços. Os percalços ocorreram, primeiramente, por conta das questões de divulgação. Quando consultei a programação oficial, constava o lançamento do livro para o meio-dia. Bem, pensei que seria um horário ingrato, por conta do almoço de domingo. Porém, achei melhor relevar e comecei a divulgação do evento. Porém, dois dias antes do evento, quando fui conferir novamente a programação, ela havia mudado sem nenhum aviso prévio para às 10h. Respirei fundo, tratei de atualizar meus contatos sobre a mudança e fiz um comunicado no Instagram, como aviso.

Acontece que, no sábado, recebi uma mensagem da produção da Virada pedindo-me para chegar às 8h, para um lançamento conjunto. Fiquei meio desesperado mas pensei que, afinal, às 10h eu ainda estaria lá e receberia as pessoas que chegassem no horário que eu havia informado. Ainda assim, fiquei tenso. A programação previa uma apresentação de hip-hop às 11h. Sendo assim, deveria receber todo mundo até esse horário.

Acabei chegando tarde no domingo, por conta das vias fechadas para a Virada. Cheguei às 8h20 no local do lançamento. Havia um aglomerado de pessoas e a maioria estava lá para um piquenique literário, evento da Secretaria Municipal de Educação. Não havia ninguém da produção para me receber e também faltava mobiliário para colocar os livros. Só mais tarde, quase às 9h, encontrei uma pessoa da produção, que informou que as mesas e cadeiras seriam disponibilizadas em breve.

Felizmente, encontrei um amigo, o mediador de leitura Paulo Fernandes, que me fez companhia e com quem conversei sobre livros e experiências de mediação. Foi um momento muito bacana. Enquanto a gente papeava, aproximou-se a Aguida Alves, que foi a primeira pessoa a adquirir meu livro. A segunda, foi a amiga e parceira Soraia Magalhães. Em seguida, outras pessoas foram chegando, como o Marison Lacerda (representando a companheira dele, Samantha Vilarinho), o Tiago Ferreira, a Marluce Cerqueira, a Aline Cântia com o Fernando Chagas, a Áurea Leite com a Marly Alves Rezende. Uma nova amiga, a Andreia Lopes, chegou para me prestigiar e isso muito me alegrou. A Soraia Magalhães trouxe consigo a Cláudia Alves, que adquiriu um exemplar para o seu irmão.

No fim, eu que havia levado dez exemplares estava com nenhum. Além disso, sentia-me pleno de felicidade por tantas amigas e amigos terem comparecido ao meu lançamento. A todas essas pessoas queridas, meu muito obrigado!

domingo, fevereiro 05, 2023

Aprovada a capa do livro "O Viajante Cinzento"

 Sim, meus caros! O Viajante Cinzento agora será livro! O manuscrito foi aceito pela editora Letramento a partir da Temporada de Originais, que é um projeto que visa tornar acessível a publicação das obras de autores independentes.

Segue abaixo a versão aprovada da capa do livro:



Aguardem novidades sobre esse lançamento!

terça-feira, dezembro 28, 2021

O Imundo - Parte IV de IV

Ir para Parte III de IV


Minutos se passaram. Seridath, coberto de suor avermelhado, já estava sem escudo e o punho de algum gigante tominaro havia arrancado seu capacete, quase esfacelando seu crânio. Apesar de tudo, exceto alguns cortes leves, ele estava inteiro. Mas sentia-se estranho. Um punhado de kowas jazia aos seus pés e ele continuava disposto. Na verdade, tinha mais energia do que quando começara a batalha, uma disposição que beirava a excitação. Até estranhou quando, com um jogo de corpo, lançou um dos homens-porco a uma considerável distância. Estava também mais rápido, agia por reflexo, sem pensar, atingindo um pescoço ou uma virilha, perfurando pelas juntas da armadura de algum inimigo ao seu lado, lançando o corpo para trás enquanto desviava-se do poderoso ataque de um punho enorme.
Era o tominaro novamente, um gigante de cinco a seis metros, pele extremamente rígida, que repelia cortes e estocadas. Seridath era constantemente assaltado pelo pensamento de que deveria matar aquele gigante, mas ainda não havia conseguido uma oportunidade de bater-se com ele de maneira adequada. Aquele monstro era forte e resistente, um golpe de reflexo não iria perfurá-lo facilmente.
Mas algo dizia a ele para esquecer os "porcos" e concentrar-se no gigante. Com uma careta, fez Lorguth ser lançada para frente, como um bote de serpente, abrindo a garganta do kowa que o atacava. O oponente tentou segurar o sangramento, mas suas pernas fraquejaram e ele ajoelhou-se, obstinado. Por trás dele, Seridath viu que o gigante o espreitava para um novo ataque. O rapaz correu rumo ao titânico oponente. Escalou o kowa, que já estava morto, mas havia permanecido de joelhos. Antes que o corpanzil tombasse com o seu peso, Seridath apertou o punho da espada com as duas mãos e de um salto lançou-se sobre o peito do gigante. O tominaro olhou com surpresa ante a audácia do jovem. O potente soco errou Seridath por um triz. O rapaz continuou seu trajeto e, empregando toda a sua força em ambas as mãos, enterrou a lâmina bem no olho direito de seu inimigo.
Então aconteceu. Era como sentir seus braços sendo moídos por tanto poder. A dor passou para todo seu corpo, como se o mesmo fosse explodir, ou ser esmagado, ou ambas as coisas no mesmo segundo. Então a dor aliviou, mas permaneceu de forma tênue. Mesmo morrendo, o gigante tentou permanecer de pé, até ceder e tombar pesadamente no chão já coberto de inimigos abatidos.
Com Lorguth ainda presa ao olho do inimigo, Seridath quase não percebeu a oscilação e lenta queda. Deixou-se ficar por algum tempo deitado sobre o tronco do gigante. Estava tão atordoado que também não notou que os inimigos permaneciam ao seu redor, fustigando-o com machados e clavas. Mas sua pele estava rígida demais, os danos eram insignificantes. O rapaz se ergueu lentamente, recuando as lâminas inimigas, chegando a quebrar as hastes de alguns machados. Com um leve movimento de braços, ele atirou para o ar aqueles que o importunavam, fazendo-os voar sobre as cabeças dos outros tominaros, que atropelavam seus próprios aliados para vingar a morte de um de sua raça. "Agora, o povo exilado, o povo do poder" pensou ele. Não sabia quem eram esses, mas seu corpo moveu-se como que por instinto, atravessando o campo de batalha como se estivesse correndo livre na campina. Os inimigos sendo destruídos como se fossem incômodas moitas de mato.
Subitamente, ele deparou-se com uma daquelas criaturas vestidas com seus mantos brancos. "Ah, então esse é um do povo exilado." O ser rapidamente emitiu um "HAH", enquanto um forte feixe de luz partia rumo a Seridath, que bloqueou o ataque com Lorguth. A lâmina chorou, emitindo um forte som agudo e melancólico. Em meio ao espanto e à discreta satisfação de ver a espada sofrer, o rapaz ergueu-se e, fazendo sua tradicional finta para a esquerda, decepou os dois braços do ser antes que ele fizesse um segundo ataque. O seirane gemeu e fez uma hedionda cara de sofrimento. Sua última expressão, pois logo em seguida Seridath enterrou Lorguth na junta de suas costelas. A espada bebeu com satisfação aquela poderosa alma. A criatura explodiu em uma descarga de luz, enquanto mais dor penetrou no corpo de Seridath, desacostumado em receber tanto poder.
Agora, porém, ele sentia algo grandioso permeando seus membros. Os inimigos o rodeavam, mas somente os zumbis insensíveis ainda tentavam, sem sucesso, atingi-lo. Os vivos hesitavam, até mesmo os orgulhosos tominaros mantinham uma temerosa distância. O cavaleiro estendeu a mão esquerda. O poderoso relâmpago surgiu de seus dedos e destroçou os oponentes em seu caminho. Seridath deixou um sorriso leve brotar de seus lábios. "Agora estou pronto. Devo ir em busca daquela alma, Lorguth. Daquela alma que você tanto quer."
Aldreth observava atônito seu amo causar um enorme caos no exército de mortos. Naquela batalha, a confusão imperava. Não havia palavras de comando ou toques de trombeta. O exército de Dhar e a legião maligna engalfinhavam-se como uma só turba convulsa. Gritos de pânico e desespero eram sobrepostos pelos brados de horrendas criaturas. Muitos homens valorosos morriam naquele dia. Homens aleijados arrastavam-se para fora da luta, chorando, pedindo por suas mães, amaldiçoando os deuses. A Companhia ainda conseguia manter sua formação, uma linha cerrada com três camadas de escudos sobrepostos. O exército de Dhar, porém, havia sido reduzido quase à metade e o próprio estandarte do rei oscilava. Mesmo uma vitória seria cara demais para aquele reino. A batalha em frente às campinas de Arnoll seria uma lembrança amarga ao longo dos anos.
Enquanto isso, Seridath acabava de penetrar nos limiares do pavilhão central. Já havia bebido as almas de outros gigantes e meio-gênios. O jovem corrigiu o pensamento. Fora Lorguth quem bebera. Ele somente estava lutando por sua vida, enfrentando seus inimigos, só isso. Enquanto pensava, o jovem agia de forma contrária, estraçalhando quem estivesse à sua frente, fosse através da lâmina amaldiçoada, fosse pelos raios ou pela força bruta. Seus servos permaneciam ao seu lado, enquanto os sessenta bandidos já haviam sido destruídos. Os kowas e tominaros mortos levantaram-se, de forma que as forças de Seridath já tornavam-se uma horda que destruía as entranhas do exército maligno. A cada segundo, o cavaleiro ficava mais surpreso em como os servos eram úteis em batalha. Ágeis, fortes, obstinados, fiéis. Bem, fiéis nem tanto, assim como Lorguth. Mas para tudo há seu jeito.
Seus pensamentos pararam quando ele percebeu algo em sua mente. Olhou ao redor e viu-se em uma nuvem brilhante, de cor carmesim. Era a aura daquela alma que despertava os desejos de Lorguth. Era a própria mente do inimigo, expandida, envolvendo o jovem e sua espada. Seridath sentiu a hostilidade daquele ser. Sim, ele era considerado um incômodo, um inconveniente obstáculo. Mas o rapaz então percebeu outra coisa. Um temor, misto de surpresa e incredulidade. Então era isso. Sentiu satisfação ao saber que começava a ser temido.
De súbito, os mortos-vivos ao seu redor afastaram-se. À sua frente, kowas, tominaros e outros seres também foram recuando, abrindo espaço e formando um corredor. Através dele surgiu um outro ser. Um poder opressivo apertou o coração de Seridath, a ponto dele sentir que iria morrer. Olhou para frente, a forte luz carmesim quase o cegava. O rapaz decidiu voltar à sua visão normal e foi tomado de surpresa. Lá estava ele. Era um homem vestido com uma espécie de toga bem leve. Sua pele era enrugada, como se ele fosse incrivelmente velho, e tinha cabelos bem escassos. Mas não era somente isso. Ele se aproximava com os pés esticados, como se estivesse na ponta dos dedos, mas sem tocar o chão. Segurava uma pesada espada, de lâmina larga e espessa, à altura do peito, deixando-a pousar no ombro direito. Mas o detalhe mais marcante o fato de que aquele ser não tinha olhos, nem pálpebras. Dois redondos buracos escuros ocupavam o lugar dos globos oculares, o rosto de uma caveira ainda coberta com sua pele.
Um pensamento veio forte à mente do cavaleiro, distinto e urgente, como uma súplica infantil. "É ele! O Urd!" Mas não era somente Lorguth que o queria. Seridath desejava a glória de ter destruído o líder daquele exército. O ser olhou do alto, sua boca com uma expressão que beirava o desprezo.
– Desloquei-me do centro de meu pavilhão para dar-te as boas vindas – começou a dizer a criatura – mas então descubro que o ser poderoso a atrasar meu exercício é um simples humano. Tens sorte por carregares essa lâmina, garoto.
– Não sou um garoto, imundo. Não sabes o que eu sou de fato. Mas eu sei quem tu és, Cormorant!
– Ah, que agradável surpresa – o Urd, o Imundo, falou em tom de gracejo –, de fato tens sido por ela informado. De fato, é um privilégio usá-la. Mas saber meu nome não muda a situação, de fato. Tu és fraco para os poderes de Lorguth, larvinha. Não me dirige esse olhar espantado, garoto, pois sabes que é impossível que um ente antigo e poderoso como eu não saiba de Lorguth.
– Sabes então que chegou o dia de teu fim – bradou Seridath, ameaçador, mas em seu peito algo o alertava que havia informações omitidas por Lorguth. O ser soltou uma gargalhada altiva.
– Meu fim? Não sabes o que dizes, menino. Nós não temos fim! Já fomos erguidos para lutar outras épocas, e o seremos, sempre que necessário. Se fosse possível a ti matar-me, apenas estaria submetido a outro senhor, pois minha alma há séculos está amaldiçoada. Ora, não creio que tu sejas capaz de sequer cortar minha pele. Enfrenta o teu inexorável fim!
O ente mergulhou com uma rapidez incrível rumo a Seridath, a lâmina pesada de sua espada apontada para o peito do rapaz. Em meio à surpresa do ataque, foi impossível ao jovem esboçar reação alguma. Apenas sentiu em seu peito como era afiada aquela rústica lâmina. 
E o último pensamento do altivo guerreiro foi a certeza do definitivo desfecho daquela batalha.


Fim...? 

segunda-feira, dezembro 27, 2021

O Imundo - Parte III de IV

Ir para O Imundo - Parte II de IV


Um baque forte lançou-o longe e seu corpo rolou sobre o escudo, trombando e derrubando o que deveriam ser corpos de inimigos. A primeira coisa que fez foi verificar se estava ferido. A armadura invisível parecia fornecer alguma proteção, pois a cota de malha havia resistido bem e o escudo estava somente arranhado. Apesar disso, a dor era aguda no ombro direito. Ao menos, não estava ferido. Tentou localizar seu poderoso agressor, mas as bordas do elmo limitavam sua visão. Seu esforço foi desnecessário, pois uma enorme criatura de quase dois metros de altura, corpo humano e cabeça de porco, abria caminho entre os zumbis para enfrentá-lo, com uma clava nas mãos. Seridath entendeu que fora aquela coisa enorme que o havia atingido com tanta força. "Mate-o! Enterre a lâmina bem fundo em sua carne!" pensou o rapaz para si mesmo, enquanto via pelos olhos da espada como era forte o sangue daquele ser vivo. Jogou-se contra o peito do brutamontes, enquanto Lorguth penetrava fundo naquela carne esbranquiçada. O monstro era um kowa, homem-porco das terras do Oeste longínquo. Logo o gigante caiu, Seridath viu-se cercado por vários outros. Estava cercado por um pelotão inteiro.
Com a respiração suspensa, Aldreth observava toda a movimentação da batalha, que se tornara uma confusa e hedionda mistura de corpos, sons de carne e ossos sendo rechaçados, gritos de ódio e desespero. Percebeu então um grande bando de umas quinze ou vinte criaturas mutantes, com suas cimitarras, correndo na direção dele e de seus companheiros. O jovem não hesitou. Entesou seu arco e deixou as flechas subirem com rapidez. Já havia derrubado três deles quando viu que já estavam próximos demais. O rapaz voltou a desembainhar a espada, embora tivesse plena certeza de que não escapariam. Ignorava os talentos de Thin, mas não considerava-se bom o bastante para enfrentar tantos inimigos. Lucan estava muito ferido e dentre eles o arqueiro acreditava que somente Uri era bom em combates corpo-a-corpo.
Mas antes que os inimigos os alcançassem, um punhado dos servos de Lorguth surgiram em seu encalço. Eram mais rápidos que as aberrações sem rosto. Aldreth suspirou aliviado quando viu as criaturas destruindo os inimigos com uma rapidez silenciosa e eficiente. Sentiu também uma discreta gratidão. Seridath não se esquecera deles.

***

Continua...

domingo, dezembro 26, 2021

O Imundo - Parte II de IV

Ir para O Imundo - Parte I de IV

A lâmina escura pareceu mudar de forma, contorcendo-se cada vez mais rápido, até tornar-se uma labareda nas mãos de Seridath. Uma forte chama negra e maldita agora crepitava nas mãos do guerreiro. De repente, a labareda inclinou-se levemente para o lado e bifurcou-se, até que uma forma feita de chama desmembrou-se da espada e partiu para longe. Enquanto afastava-se, essa língua de fogo assumia uma forma quase humana. Seridath entendeu. Era uma das almas que a espada havia roubado quando Seridath fizera sua vítima. Uma alma que agora partia em busca de seu corpo. Várias outras labaredas de almas mutiladas surgiram da da espada e partiram para ocupar os corpos apodrecidos mais próximos. Conectado com Lorguth, Seridath descobriu que aqueles quatro servos destruídos em Arnoll não foram efetivamente mortos. Eles ocupariam os corpos mais próximos para continuarem a servir seu senhor.
Enquanto Seridath mantinha-se naquele êxtase de descobertas, Aldreth observava perplexo, com os demais companheiros. Ele e os outros não podiam ver as chamas negras brotando da espada de seu senhor e as labaredas amaldiçoadas buscando corpos sem vida. Seridath era o único que experimentava aquele segredo.
E Lorguth acabava de transmitir uma informação valiosa. Os corpos dos bandidos que haviam sido lançados pelos muros de Arnoll jaziam próximos dali. Um acréscimo de mais ou menos sessenta homens seria interessante. Não teriam a força e agilidade dos servos mortos diretamente pela lâmina negra, nem poderiam retornar depois de destruídos, mas teriam alguma utilidade. Seridath, com um sorriso cheio de malícia e ambição, invocou esse poder. "Sim, minha querida, reanime esses corpos também."
Subitamente, Aldreth e os outros foram surpreendidos com o tropel de um enorme grupo que se aproximava por trás atrás deles. "Emboscados!" pensou ele, em pânico. Desembainhou a espada, enquanto Thin sacava sua adaga. Lucan ainda vacilava, mas Uri o havia largado para empunhar seu machado. Mas ao olhar para trás os dois rapazes e o anão viram uma enorme turba de bandidos ultrapassando-os e correndo rumo ao exército inimigo. Todos tinham o olhar vazio daqueles que já foram abandonados pela vida. Alguns corriam com as vísceras pendendo de suas barrigas ou se arrastavam, como animais quadrúpedes, enquanto outros estavam em bom estado, podendo até enganar alguém à distância, passando-se por vivos. Mas estavam todos bem mortos. O líder Berak, com a cabeça pendendo grotescamente para o lado, cruzou com o grupo dos guerreiros de Seridath. Thin bateu no ombro de Aldreth, enquanto observava Berak afastar-se com uma rapidez desengonçada.
– E pensar que eu poderia ser um desses, né? – disse o ladrãozinho, com um sorriso matreiro.
Aldreth suspirou, sentindo um misto de medo e alívio. Seridath mais uma vez o surpreendia. 
Em frente ao exército inimigo, o cavaleiro ergueu a flamejante lâmina. Não precisou gritar uma ordem de ataque. As criaturas agora o entendiam. O rapaz sentia-se ligado à mente dos "seus" mortos, como se fossem a sua própria. Flexionou os joelhos e partiu com velocidade rumo à ponta da formação de vanguarda inimiga. Aldreth observava, cheio de assombro. "Ele é louco!" pensou, "Vai morrer!"
Mas Seridath estava a poucos passos da linha de frente. Os [ragrans] não puderam disparar seus dardos antes que o jovem estivesse cara a cara com os primeiros inimigos. As criaturas de Lorguth já o alcançavam e com saltos medonhos lançavam-se sobre seus oponentes. Ossos e pedaços de carne apodrecida eram espalhados pela campina. Seridath jogou o corpo para a direita, enquanto fazia seu braço direito acompanhar o movimento e traçar um percurso horizontal, decapitando o zumbi à sua frente. Estava alegre, eufórico. Havia descoberto para que nascera. Era um Destruidor.
Seridath viu-se então cercado por criaturas com espadas de lâminas recurvadas e rostos disformes, aqueles mesmos que quase o mataram em Keraz. Então ele já fora localizado, oponentes mais fortes já haviam sido enviados para liqüidá-lo. Arrancou com a espada a perna direita de uma das criaturas, que perdeu o equilíbrio e tentou apoiar-se com uma das mãos, enquanto um braço desconjuntado sacudia-se, nascendo da perna ferida. O jovem pôs o pé esquerdo sobre o ombro do monstro e, com um forte impulso, lançou-se sobre as cabeças dos inimigos, para dentro daquela turba enlouquecida.

Continua...

segunda-feira, dezembro 13, 2021

O Imundo - Parte I de IV

Ir para O Embate - Parte V de V

Os cinco desceram com rapidez a encosta da colina, rumo ao campo aberto. Seridath dispunha de uma velocidade incrível, e já ganhava distância dos outros, correndo com rapidez mesmo com o pesado escudo pendendo em seu braço esquerdo e com a longa cota de malha cobrindo seu corpo.  O escudo era largo e comprido, de bordas na parte de cima anguloso em baixo. A cota de malha, formada por vários anéis de ferro sobrepostos, não era das melhores mas estava bem conservada. O rapaz parou de chofre de costas para Arnoll e diante do exército de mortos, que havia voltado a se mover rumo à cidadela. Num movimento brusco, Seridath desembainhou Lorguth e fincou a lâmina maligna no chão da campina. Emitiu sua vontade, enquanto sentia a espada vibrar. Estava para começar a batalha de sombras dentro de sua alma.
"Lorguth, quero que preste atenção. Hoje satisfarei sua vontade e enfrentar esse exército diante de nós. Caçarei a alma que você quer provar. Mas é a última vez que sua vontade se sobrepõe à minha."
A espada emitiu uma vibração tão forte que um som agudo e irregular tocou os tímpanos do rapaz, como se Lorguth imitasse uma forte gargalhada, zombando da ingenuidade do guerreiro, embora fosse impossível dizer se aquele som havia soado realmente ou se a lâmina amaldiçoada estava pregando mais uma peça na mente do jovem.
"Você pode rir. Mas se está sintonizada à minha alma, sabe que minha vontade é forte. Você irá se arrepender caso me contrarie novamente."
Lorguth parou de vibrar. Seridath acreditou que ela havia levado aquelas palavras a sério, embora fosse impossível saber. Tinha a consciência de que havia um longo caminho até dominar a espada, mas agora não dispunha do tempo necessário. Ordenou que a espada entrasse em ação. A lâmina vibrou novamente, excitada, fazendo Seridath sentir a palma da mão direita, que segurava a espada, formigar. O Viajante Cinzento viu um círculo se expandir a partir da escura lâmina e tomar todas as direções. Onde as bordas desse círculo tocavam, a paisagem mudava. O chão ficou negro, o céu vermelho qual sangue. Penetrando no plano espectral da espada, o rapaz passou a ver com outros olhos, com grande intensidade e nitidez.
Olhou para a esquerda, para o pequeno exército de Serpente Flamejante, que estava mais próximo a ele. Os corpos estavam transparentes, ele podia ver ossos, veias, corações com suas batidas regulares. E foi com grande surpresa que descobriu também a alma, um corpo dourado e brilhante, que permeava os limites de cada corpo físico. Assim também estavam seus quatro homens às suas costas e o exército do Senhor de Dhar.
Olhou para si mesmo e, para sua surpresa, sua alma não estava à mostra. Curiosamente, o rapaz permanecia coberto por uma armadura negra, sólida, com placas, manoplas e peitoral. Não era a velha cota de malha, mas uma armadura luxuosa pesada, destinada aos grandes senhores e cavaleiros de alto nascimento. Aquela armadura ilusória, visível apenas para ele, era a forma espiritual que o poder de Lorguth conferia ao seu portador. E ao ver-se vestido assim, Seridath sentiu-se um verdadeiro senhor.
Voltou sua atenção para o exército inimigo, cujo flanco direito já se envolvia em encarniçada luta contra os homens de Dhar, enquanto o flanco esquerdo era alvejado por flechas da Companhia. Os corpos reanimados dos mortos-vivos não tinham uma entidade corpórea e brilhante permeando-os, mas uma espécie de massa luminosa de cor azulada ou arroxeada, sem forma definida. Em alguns lugares, espalhados ou agrupados, havia pontos brilhantes, indicando almas vivas, como argros, os gigantes tominaros, kowas ou qualquer outra criatura viva que fosse integrante daquele exército.
Mas havia um outro ponto brilhante. Um corpo completo, luminoso, mas incrivelmente maior que qualquer outro em toda aquela horda. Sua cor era carmesim, forte, de forma que Seridath percebeu-a de bem longe. Estava situada no pavilhão central do exército inimigo e não dava indicações de mover-se. Sua aura expandia-se em ondas, indicando que o poderoso ser deveria estar, naquele momento, emitindo poderosos encantamentos. Seridath riu. "Então é essa a alma que você tanto anseia, Lorguth?" A espada vibrou de satisfação, confirmando as suspeitas do jovem. "Então vamos começar. Chame-os."

segunda-feira, dezembro 06, 2021

O Embate - Parte V de V

Ir para O Embate - Parte IV de V

As explosões ecoaram junto com os brados de júbilo dos moradores de Arnoll. Mais da metade do flanco esquerdo e parte da vanguarda foram destruídos nessa investida dos magos. Os gigantes e os meio-gênios, mais uma vez, não fizeram caso do ataque. Mas era uma cena perturbadora, ver argros e kowas em chamas, correndo e ganindo em desespero. No centro do exército sombrio, um ser maligno sorriu. O único que pôde perceber quantidade de pulsante energia liberada foi Seridath, pois Lorguth transmitiu-lhe um sentimento quase esmagador de poder emanado do exército dos mortos-vivos.
Subitamente, a alegria fez-se espanto, e logo medo aterrador. Começou com os gritos de um mago, que ergueu os braços, largando seu bastão, como se o mesmo o tivesse queimado. Os demais magos o olharam assustados, enquanto o homem que gritava aumentava seus berros, que se tornaram gorgolejos de sangue. Os olhos saíram das órbitas, uma fumaça fina emanou de sua boca, junto com sangue escuro. O homem parecia queimar por dentro e logo as chamas brotaram de sua pele, incendiando seu manto, enquanto ele desabava ao chão. Seus companheiros se afastaram, mas logo os berros recomeçaram e foram multiplicando-se.
Os fenômenos eram diversos. Um mago arranhou-se em loucura, enquanto outro parecia desmanchar-se como se derretesse. Na confusão que se tornara o esquadrão de magos, a única certeza era o sofrimento. Em segundos, praticamente todo o esquadrão se transformou em pedaços de corpos humanos espalhados pelo chão. Os poucos sobreviventes, cobertos de sangue, observavam atônitos a cena bizarra.
Todos pararam, inclusive os homens da própria Companhia. As cornetas voltaram a tocar. Os andarilhos de Serpente Flamejante dobraram seus corpos ao chão e emitiram uma série de cantos antigos, suplicando piedade aos deuses esquecidos de eras remotas. Uma névoa luminosa passou a envolver lentamente os guerreiros que compunham a Companhia. Por ordem das trombetas de Dhar, os lanceiros foram à frente, com rapidez, enquanto a divisão de clérigos, fortemente protegidos por pesadas armaduras, os seguiam carregando suas armas de quebrar cabeças.
As orações para dispersar mortos ecoadas pelos clérigos teriam poder para reverter a maldição, desorientando ou até mesmo destruindo os zumbis. Enquanto os homens de Dhar se aproximavam, alguns mortos-vivos começaram a sentir o efeito da aura dos clérigos, ficando desnorteados e saindo de suas formações. Lançadores de dardos disparavam setas a esmo, alvejando integrantes de seu próprio exército. A linha de frente dos mortos embaralhava-se. Alguns dos espinhentos ainda tentaram atingir os clérigos com seus dardos, mas os escudos da infantaria, somados à pesada armadura dos religiosos, ofereciam uma proteção quase perfeita.
Nisso, os meio-gênios, aqueles vestidos de branco, entraram em ação, tomando a frente dos poucos soldados zumbis que restaram no pavilhão que compunha a vanguarda. Estendendo para frente suas mãos finas e pontiagudas, dobrando os joelhos, eles abriram suas bocas e emitiram um longo "HAH", que veio acompanhado por um poderoso feixe de luz brotado de seus dedos. O raio luminoso pegou em cheio soldados e clérigos de Dhar, destroçando-os. A vitória tão lógica para o rei começava a tornar-se uma enorme derrocada.
Seridath desceu rapidamente, seguido de perto por Thin e Aldreth. Ao pé da árvore ele parou por alguns segundos. Uri e Lucan, que antes conversavam em voz baixa, cessaram sua conversa, aguardando ordens.
– Vamos, – disse o Viajante Cinzento a todos – temos uma batalha para enfrentar.

Continua...

segunda-feira, novembro 29, 2021

O Embate - Parte IV de V

Ir para O Embate - Parte III de V

Três pavilhões dos mortos-vivos se uniram num perfeito sincronismo, formando um "v" invertido, a vanguarda como uma ponta de lança, que se estendia pelos dois flancos. Os lançadores de dardos claudicavam por cima da infantaria que ocupava a linha de frente. Os toques de ataque dos exércitos aliados foram simultâneos. "Pelo visto, eles querem mesmo ser heróis." pensou Seridath, ao ver praticamente todo o efetivo da Companhia mover-se rumo ao inimigo. Os arqueiros fizeram suas flechas descerem como uma chuva cortante contra os mortos-vivos, que ignoraram e mantiveram a marcha na direção da cidadela.
Vendo que o exército maligno estava decidido a ignorar as duas forças, o Senhor de Dhar sorriu ante a arrogância de seus inimigos. Deu ordem para que o esquadrão de magos entrasse em ação. Uma coluna organizada postou-se atrás da infantaria e iniciou uma série de invocações. Em segundos o céu tornou-se mais escuro e os últimos traços de claridade desapareceram sob espessas nuvens. Do céu, fortes relâmpagos desceram sobre as linhas inimigas, destroçando kowas, mortos-vivos, argros e qualquer outra criatura, viva ou não, embora os gigantescos tominaros e os pálidos seiranes tivessem permanecido inabaláveis. Nenhum dos gigantes ou dos seres de branco caiu.
Outra sequência de palavras arcanas surgiu dos lábios daquela poderosa multidão de conhecedores de magia. Esferas flamejantes surgiram do alto da cabeça de cada um deles e partiram rumo aos inimigos. Os arqueiros dispararam em conjunto e o céu cintilou com flechas incandescentes, fortalecidas e inflamadas pela magia.

Continua...

segunda-feira, novembro 22, 2021

O Embate - Parte III de V

Ir para O Embate - Parte II de V

As trombetas dos arautos da Companhia iniciaram uma seqüência de toques, tentando comunicar-se com os seus aliados. O exército de Dhar respondia com os toques de suas imponentes trombetas de prata, enquanto suas bandeiras davam repetidas voltas, em sinais combinados. Lucan conhecia aqueles sinais, mas ficara no pé da árvore.
– Os mortos estão em desvantagem – comentou Thin, com seu olhar aguçado.
– Isso é óbvio. – replicou Seridath, ríspido – Se o exército da Companhia for sacrificado, a vitória será garantida, já que o inimigo terá que lutar em duas frentes.
– Pelo que ouvi de Berak, o chefão que vocês mataram, – continuou dizendo Thin, com indolência – esse exército vem de Quirite-mon. Mas correm boatos de que há muito mais. Outro exército bem maior desses fedorentos partiu direto para o sul, para as planícies drenadas do reino de Marzan.
– A sombra se estende com rapidez. – replicou Aldreth entre um ar sombrio e infantil – O que faremos mestre?
– Nada por enquanto. – respondeu Seridath.
O rapaz via-se em difícil situação. Era evidente que Lorguth continuaria a contrariá-lo se ele não entrasse nessa batalha. O exército inimigo mantinha sua marcha constante e logo alcançaria os portões de Arnoll. Mas Seridath não deu ordem nenhuma aos seus homens. Por enquanto, estaria lá, observando. O exército de Dhar e a Companhia responderam à mobilização inimiga assumindo suas formações ofensivas. A batalha já era uma realidade.



Continua...

segunda-feira, novembro 15, 2021

O Embate - Parte II de V


Havia uma linha imensa das bizarras criaturas sem pernas e com braços mais longos que o corpo, aqueles malditos lançadores de dardos. Thin comentou rapidamente que eles eram chamados de ragrarans, os espinhentos. Atrás desses seres, estavam enfileirados zumbis uniformizados e armados com machados, martelos, clavas, maças e machetes. Eram colunas compactas, formadas por oito fileiras de vinte soldados cada. Logo além desses zumbis havia uma desorganizada turba de criaturas homanóides, embora tivessem um rosto que mais assemelhava-se ao de um suíno. Eram os kowas, homens-porco habitantes de Nareg, terra inóspita no extremo oeste. Misturados com os homens-porco estavam os seres abomináveis, de forma mutável, que carregavam espadas curtas. No momento, assumiam braços e pernas humanos, embora seus rostos exibissem feições perturbadoras de olhos e bocas que se misturavam. Eram chamados de Scliabs, mas também conhecidos como flagelos de Nibala, a Deusa da Loucura e do Engano. Mais para o interior de cada pavilhão, além dos desorganizados kowas e horrendos Scliabs, estavam os verdadeiros terrores daquele exército. Os gigantescos tominaros, que talvez chegassem a cinco ou seis metros de altura. Eram eles que tocavam os tambores. Vestiam calças revestidas com placas de ferro, embora mantivessem o tronco nu da cintura para cima. Tinham negros e longos cabelos, bem como barbas densas e revoltas. Seus rostos pareciam feitos de puro ódio, com olhos sombrios e ferozes.
Junto aos gigantes, contrastando com a cor escura do exército maligno, estavam homens e mulheres vestidos de mantos brancos e leves. Aliás, tudo neles era alvo como algodão, seus compridos e lisos cabelos, bem como sua pele. Ainda que parecessem humanos, qualquer que os visse negaria com veemência sua humanidade. Eram representantes de uma raça antiga, exilada há milênios de seu próprio mundo. Os seiranes, os portadores do poder, os jurados, também chamados de meio-gênios.
Nos espaços entre cada pavilhão, bandos de argros andavam de um lado para o outro, como se não tivessem lugar. Era uma força considerável. O exército inimigo chegava a quase doze mil seres.

Continua...

segunda-feira, novembro 08, 2021

O Embate - Parte I de V


Ir para Reminiscências - Parte IV de IV

Os cinco subiram a colina. Uri negou-se a escalar a árvore e Lucan não estava em condições para isso. Os outros três chegaram ao topo com facilidade. Na verdade, quando Aldreth e Seridath chegaram, Thin já os esperava calmamente, com um sorriso matreiro. Eles observaram a campina por algum tempo. Nenhum dos blocos se movia. O pequeno exército de Serpente Flamejante não poderia alcançar seu aliados antes de ser rechaçado pelas forças sombrias, marcando o fim da Companhia. Seria mais lógico que o exército de mortos os atacasse primeiro.
A atenção dos três aumentou quando viram que o exército inimigo começava a se mover. E, incrivelmente, não foi na direção da Companhia, e sim de Arnoll. Ambos os exércitos aliados tocaram suas trombetas, indicando prontidão de armas. As lâminas desembainhadas refletiram a luz das tochas e dos feitiços nos estandartes.
Do centro do exército inimigo surgiu uma coluna de chama mágica. Logo em seguida, outra chama surgiu, em outro ponto da massa sombria. Outras três chamas surgiram, em pontos diferentes do exército maligno. Cada coluna de chama parecia marcar um pavilhão. Mas, estranhamente, essas colunas de fogo não pareciam iluminar absolutamente nada. O exército de mortos parecia tão escuro quanto antes, talvez até mais. 


Continua...

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

Reminiscências - Parte IV de IV

Ir para Reminiscências - Parte III de IV

 – Si-sim.
O jovem arqueiro desceu habilmente pelos galhos. Um vulto cruzou com ele numa velocidade surpreendente. Assustado, olhou para cima a tempo de ver Thin dar saltos enquanto subia pelos galhos, como se fosse um esquilo. Aldreth alcançou o chão e desceu a encosta aos tropeções. Correu rumo à pequena caverna. Enquanto aproximava-se, notas claras de uma suave canção alcançaram seus ouvidos.
Chegando à fenda, deparou-se com Uri sentado em frente a Lucan que, já desperto, tocava uma flauta de madeira. Ou melhor, quase fazia o pequeno instrumento chorar. A melodia era tão bela e aconchegante, que Aldreth entrou e sentou-se. Sentia-se confortável, uma felicidade crescente tomando conta do seu peito. Não sabia quanto tempo ficara a ouvir Lucan tocar seu instrumento, embora nem se importasse com isso. A flauta o fazia lembrar de ribeiros cristalinos, o sol incidindo em verdes folhas, o cheiro do pão fresco da sua mãe...
– Mas o que é isso!? – bradou alguém atrás de Aldreth, na entrada da fenda.
O rapaz deu um sobressalto, enquanto sentia com tristeza a música desaparecer. Lucan tinha um olhar assustado. Seridath estava parado na entrada da caverna, com seu olhar implacável. Thin estava um pouco atrás, meio que se divertindo ao prever o que iria acontecer.
– Mandei que os chamasse, garoto! – vociferou o guerreiro. – Não foi para ficar escutando música! E você, arauto, se pode tocar uma flauta, também poderá empunhar uma espada! De pé!
– A culpa foi minha, senhor Seridath – replicou Lucan. – Uri comentou que estava com fome e, como essa música faz esquecer muitos males, pensei que o agradaria se escutasse um pouco.
– Música não enche barriga, seu pedaço de bosta! – replicou Seridath, ainda furioso. – Essa tolice no mínimo irá denunciar nosso esconderijo aos inimigos. Quero todos fora!
Os três levantaram-se. Aldreth ainda estava atordoado pelas palavras duras. Aqueles olhos azuis, de gélida impiedade, sempre o perturbavam, mas ele não estava conformado com a injustiça sofrida pelo arauto. Aldreth queria que o bravo Uri falasse algo, já que o anão parecera tão satisfeito enquanto ouvia a música. Lucan mostrava dificuldades para se pôr de pé. Uri bateu levemente nas costas do arauto, enquanto o ajudava a se levantar.
– Foi uma bela música, meu rapaz – resmungou o anão. – Até esqueci a fome.
Seridath ouviu o comentário, mas manteve silêncio. Ele também ficara um tempo ouvindo a melodia da flauta de Lucan antes de interrompê-lo. E a música despertou nele imagens e sentimentos há muito adormecidos. Olhos verdes, bondosos, o fitavam, adornados por um rosto queimado de sol e cabelos castanhos, mas claros como o mel. Uma mão quente o afagando. Sorrisos, verdadeiros diamantes de alegria. Poesia de algum tempo perdido. E aquele caldo grosso que matava sua fome, perto da lareira, enquanto a neve batia de leve na janela.

O jovem balançou forte a cabeça, afastando aquelas lembranças, enquanto subia a colina com os outros. Detestara aquela música.

Continua...

segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Reminiscências - Parte III de IV

Ir para Reminiscências - Parte II de IV

 Então ambos viram o povo de Arnoll nas ameias dos muros, balançando os braços. O barulho da algazarra era tão grande que alcançava os ouvidos dos dois rapazes. Ao sudeste de Arnoll, despontava uma massa compacta e organizada de homens, soldados fortemente armados e equipados, sendo guiados pelo estandarte dourado de uma torre encimada por uma coroa e com cavalos de ambos os lados. Nenhum dos dois rapazes disse palavra, mas o pouco tempo passado na capital fora o suficiente para poderem reconhecer o estandarte e seu dono, um velho senhor de armadura dourada. Era o Senhor do Reino de Dhar, chegando para defender seus súditos. O exército do rei deveria contar com cinco mil lanceiros, além dos homens que formavam cavalaria, arqueiros, um esquadrão de magos, outro de clérigos. Os poderosos senhores dos feudos de Dhar marchavam ao lado de seu soberano. O exército chegava a dez mil homens. Seridath imaginou se os traidores Denor e Anfard teriam sobrevivido para encontrar o exército do rei. Mas para ele os fatos começavam a encaixar-se. Aquele campo de batalha havia sido planejado há muito tempo. Urso Pardo e seu destacamento deveriam ser somente uma distração, homens enviados para morrerem sob as lâminas dos inimigos, para atrasá-los, enquanto as forças oficiais faziam seus últimos preparativos. Mas onde estaria Serpente Flamejante com seu destacamento de apenas três mil? O cavaleiro sentiu vontade de rir ao pensar na enorme diferença entre a Companhia e o imponente exército de Dhar.
Antes que Seridath erguesse a voz e fizesse um gracejo contra seus antigos senhores, ele viu uma massa de homens proporcionalmente menor surgindo de um vale a oeste. Não era noite ainda, mas os homens da Companhia já carregavam tochas, que acentuavam a pobreza desse exército, frente aos estandartes de Dhar, iluminados por magia, quase fazendo aquele final de tarde tornar-se manhã. Do exército sombrio de mortos, notava-se apenas o som dos horríveis tambores.
Seridath por um tempo manteve sua atenção na Companhia em marcha. Três mil teria sido um número considerável na batalha em Keraz, mas diante daquele novo exército de mortos era inexpressivo. Examinando com mais cuidado, o guerreiro pôde perceber a formação da Companhia, com seus blocos e divisões, bem organizados. A infantaria estava dividida em blocos simétricos, guiados por seus respectivos capitães, com arqueiros a flanqueá-los. Guiando blocos maiores e auxiliados pelos arautos, homens vestidos de forma extravagante, com roupas de pele e chapéus de pluma, caminhavam apoiados em seus bordões. Seridath inquiria a si mesmo qual deles seria o ilustre Serpente Flamejante. Talvez fosse um dos velhos recurvados que se agrupavam, ocupando o centro do exército. "Aquele deve ser o conselho tão comentado pelo velho Urso" ponderou Seridath.
Aldreth olhava deslumbrado toda aquela movimentação. Nunca tinha visto exércitos tão grandiosos quanto aqueles. Os mortos tomando um horizonte e o exército de Dhar tomando outro. Seridath tocou-o no ombro.

– Os outros – disse o rapaz –, vá chamá-los.

Continua...

segunda-feira, fevereiro 12, 2018

Reminiscências - Parte II de IV

Ir para Reminiscências - Parte I de IV

 Enquanto o sol gradativamente declinava, um pequeno grupo aguardava em uma estreita fenda formada pelo encontro de duas rochas. O esconderijo estava estabelecido em um vale oculto pelas árvores do bosque, situado a pouco mais de meio quilômetro a leste de Arnoll. Eram cinco pessoas e todas estavam deitadas, em silêncio. Aguardavam a chegada do exército que em breve condenaria a cidadela à condição de total obliteração. Seridath levantou-se. Aldreth e Uri cochilavam. Apenas o ladrãozinho Thin estivera acordado todo o tempo, velando ao lado de Lucan, que dormia um sono leve e febril.
Seridath aproximou-se de Aldreth e o sacudiu levemente. O rapaz despertou assustado, com a mão na espada. Seridath, com um olhar, sossegou-o.
– Vamos sair – sussurrou ele ao jovem.
Ambos deixaram a caverna para avaliar a situação que em breve iria tragá-los. Seridath esperava observar melhor o exército inimigo. Subiram a encosta do vale, escalando o aclive da colina maior, passando por grama alta, arbustos e algumas árvores esparsas. As colinas da região tinham sua crista coberta por um conjunto cerrado de uma variação de pinheiros de grande porte e fortes galhos. Escolheram com cuidado o pinheiro que parecia mais alto. Aldreth era bom em escalar árvores, mas Seridath, o misterioso Viajante Cinzento, sempre o surpreendia. Em questão de minutos ambos estavam no topo da árvore escolhida. De onde estavam, poderiam ver a sombria massa que chegava pelo norte na campina de Arnoll.
Vem de muito longe o mal... – sussurrou Aldreth, mais para si mesmo do que para o amo, lembrando-se de um texto antigo.
– Cale-se. – falou Seridath, com rudeza – Não devemos temer o Mal. Ele está aqui, preso à minha cintura, e é meu servo.
Aldreth sentiu um calafrio. Detestava quando Seridath falava nesse tom. O rapaz, ao contrário do amo, não queria um pacto com o Mal. Queria saber o que havia de errado em simplesmente viver. O próprio Seridath parecia não estar certo de suas próprias palavras. Ainda estava em batalha com Lorguth. Algo interrompeu seus pensamentos, enquanto Aldreth murmurava:
– Olha!

Continua...

segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Reminiscências - Parte I de IV

Ir para Renegado - Parte IV de IV

 As longínquas montanhas daquela terra há anos parecia não receber um raio de sol sequer. Não chovia, mas o céu permanecia nublado, fechado por nuvens escuras que prenunciavam tempestade. Um vento frio persistia. Não era forte, mas agourento, sempre trazendo uma sensação de perigo, a expectativa de algo terrível que estaria para acontecer a qualquer momento.
Koen apertou levemente os olhos, como que tentando captar toda a agudeza daquelas montanhas. Dominando a paisagem, um pico imponente capturava a concentração do garoto. Sentia frio, sua túnica fina não o protegia. Dez anos, ocaso da infância, marcada pelo trabalho duro e pelo constante treinamento nas lutas. Outros meninos estavam parados junto com ele, formando um grupo de vinte e duas crianças. Entre eles estava o Velho. Não que fosse idoso, mas gostava que o chamassem assim. O Velho pôs a mão no ombro de Koen, seu favorito.
– Prepara-te, rapaz. É possível que teus próximos cinco anos sejam todos passados nessas montanhas. As rochas não te permitirão sair até reclamares a posse da espada.
– Si-sim – gaguejou o garoto, engolindo em seco.
– Lembra-te – o Velho sussurrava ao ouvido do menino –, os outros também estarão em sua busca, mas só tu terás poder para dominá-la. Eles tentarão, mas hão de perecer.
Um trovão ecoou ao longe. Seridath acordou sobressaltado. Suas lembranças de infância às vezes voltavam em forma de sonhos, ou melhor, pesadelos. Aquele último, enigmático sonho, o fez pensar novamente na figura que o havia guiado até Lorguth. A espada estava bem segura entre seus braços. Apertou-a mais para junto de si. A lembrança da Montanha e do Velho era o único laço que ele conseguira manter com o seu passado. A única memória intocada. O resto era nada mais que ruínas em sua mente, cinzas de um esplendor perdido. Imagens confusas que se mesclavam com ilusões e incertezas.

Caía a tarde sobre as terras a nordeste do continente uma vez conhecido como Dredhera. Nos últimos anos esse nome fora esquecido, a não ser por escassos estudiosos que ainda mantinham os escritos antigos de uma língua considerada morta. A noite em breve chegaria, caindo sobre o reino de Dhar. Mas as sombras que se estendiam não provinham do ocaso próximo. A cidadela de Arnoll era gradativamente coberta por uma sombra espessa que se espalhava, vinda do norte, uma sombra que se instalava no peito dos guerreiros mais bravos e fazia estremecer cada habitante de Arnoll. Ainda abalados pelo assalto e pela retomada da cidadela, os moradores, quase em pânico, encolhiam-se em suas casas, imersos na expectativa da morte.

Continua...

terça-feira, janeiro 30, 2018

Renegado - Parte IV de IV

Ir para Renegado - Parte III de IV

Thin caiu de joelhos, enquanto a população na ameia mergulhava em profundo silêncio. Os trabalhadores no portão pararam imediatamente e os guerreiros desembainharam suas espadas, encarando o cavaleiro com um tom belicoso no olhar. Seridath ainda era um guerreiro. Estava com todo o equipamento que recebera quando ingressara na Companhia. A cota de malha, o elmo com proteção nasal e o escudo, tudo permanecia em bom estado. A sua presença ainda era uma forte ameaça. Seridath embainhou novamente Lorguth e olhou para Thin, que continuava agachado junto ao chão.
- Se quer mesmo vir comigo, vermezinho - declarou Seridath -, é melhor jurar me servir manter o seu juramento.
- Sim, senhor - respondeu Thin, que parecia ter recuperado a fala. - Eu juro servi-lo e manter minha fidelidade à sua espada.
Seridath não levantou outras objeções. O jovem olhou para trás, enquanto observava que os guerreiros e camponeses ainda não haviam retornado ao trabalho. Pelo visto, esperavam que o famigerado Viajante Cinzento executasse com sua espada negra o ladraõzinho vil. De súbito, um pequeno tumulto começou no meio da turba. Aldreth, amparando o arauto Lucan, fazia caminho entre as pessoas, para fora da cidade. O anão Uri também seguia com eles. As vaias recomeçaram, enquanto os guerreiros do portão fizeram menção de impedir a saída dos três, mas desistiram ao cruzarem com o olhar ameaçador de Uri, que carregava seu machado ainda sujo de sangue. Seridath observou em silêncio a aproximação dos três, enquanto Thin erguia-se, aliviado. Por um tempo sua vida estaria garantida.
– O que você está fazendo aqui? – perguntou Seridath, atordoado ao ver Aldreth aproximando-se.
– Cumprindo meu juramento – respondeu o rapaz, timidamente. E acrescentou: – Ainda que seja por medo...
– E vocês? – perguntou ele aos outros.
– Queremos jurar ao senhor nossas lâminas – respondeu Uri, enquanto cuspia para o lado. – Aqueles vermes não sabem o que é uma guerra, senhor. Vão se arrepender de te expulsar, ah se vão!
Aldreth levava alguma bagagem. Mantimento, roupas e o ouro que Seridath lhe havia confiado quando ingressaram na Companhia. O rapaz tirou de um dos sacos uma camisa velha, um gibão e um par de botas furadas para Thin. Seridath nada respondeu. Não podia acreditar que não estava mais sozinho. Sua força não era somente a de um homem só. Conseguira em tão pouco tempo ganhar homens que o seguissem. E homens motivados. Os primeiros do seu exército.

sábado, dezembro 02, 2017

Renegado - Parte III de IV

Ir para Renegado - Parte II de IV

Naqueles últimos dias, Seridath já tinha visto coisas horríveis, mas nada tão hediondo quanto a visão daquela cela, o palco de um massacre covarde. Sentiu o ímpeto de voltar-se contra a espada, castigá-la de alguma maneira por sua rebeldia. Em sua mente, percebia que de Lorguth emanava leviandade e despeito, como uma criança fazendo pirraça. Queria fazer a insolente pagar. Mas logo o rapaz ponderou de forma diferente. Talvez precisasse daqueles mesmos poderes para escapar da cidade. Sem a cooperação Lorguth, mesmo sua força e habilidade não evitariam sua morte. Com aquela barbaridade cometida pelos servos, seria para sempre odiado por Arnoll e pela Companhia.
Seus pensamentos foram interrompidos por um choque violento. O punho de Balgata atingiu com força o rosto de Seridath. Atordoado, o jovem sentiu suas costas baterem com violência nas barras de ferro de uma das celas. Suas mãos alcançaram quase automaticamente o punho da espada negra, mas ele controlou-se. O capitão ainda o olhava com fúria, mas não demonstrava intenção continuar a agressão.
– Saia – disse ele. – Saia da cidade agora. Não quero nunca mais ver sua maldita cara.
– Espere, Balgata. A culpa não foi minha, eu... – tentou dizer Seridath.
– Pro abismo de Nibala com suas desculpas, verme – cortou Balgata, a voz carregada de rancor controlado. – A culpa é sua por ter escolhido carregar essa espada maldita. Quero ter certeza que nunca mais verei você e sua espada. Se o encontrar novamente, farei você sentir o que é ter o ventre invadido por metal.
Seridath optou por permanecer em silêncio. Sentia a possante vibração de Lorguth em seu lado. A lâmina estava até mesmo aquecida, tal era sua euforia. E o rapaz sabia o sentido disso. Expulso da cidade, sua única escolha seria enfrentar os inimigos que, provavelmente, no final do dia alcançariam a campina que se estendia ao norte da cidade. O longo cerco seria inevitável. Mas, antes, o Viajante Cinzento seria obrigado a enfrentar o tal “ente poderoso” que comandava aquela legião de mortos.
Sem dizer mais uma palavra, Seridath voltou as costas para Balgata. Os outros guerreiros que desceram com eles à prisão acabavam de despedaçar as quatro criaturas, servas de Lorguth, que não ofereceram resistência. Balgata seguia logo atrás de Seridath, como que esperando qualquer reação inesperada da parte do guerreiro. Alguém ao longe gritou o nome do capitão. Um dos soldados chegava, segurando pelo pescoço um garoto franzino, sem camisa, cujas costelas revelavam-se de cada lado do seu tronco. O capitão olhou com surpresa para o soldado e perguntou:
– O que foi, Desmond? O que quer com esse garoto?
– Eu conheço esse "garoto", senhor. Não se deixe enganar, capitão. Esse "garoto" é um homem adulto. Já foi condenado a trabalhos forçados no reino de Renandart. Eu conheci o "Rouba Queijo" quando servi na guarda da capital. Parece um ratinho pequeno mas pode fazer um baita estrago.
– Sei... – respondeu Balgata, estreitando os olhos. – Mas chega de mortes por hoje. Joga esse espertinho pra fora da cidade, junto com o maldito lá. Vão fazer companhia um para o outro.
Antes que o sol se inclinasse rumo à tarde, Seridath atravessava o portão de Arnoll. As marcas cruas da luta estavam espalhadas pelo chão, enquanto os habitantes da cidadela, recém-libertos, auxiliavam os soldados da Companhia a arrastarem os corpos dos bandidos para fora dos muros e levarem para dentro os aliados mortos ou gravemente feridos. As carroças, que não haviam sofrido dano, aguardavam que o trabalho terminasse para serem levadas ao interior dos muros. Seridath passou pelo grupo de aldeões e guerreiros sem voltar o olhar. Sentia-se humilhado, mais uma vez, pela espada que escolhera por serva. O cavaleiro então notou que era seguido de perto por um rapaz franzino, que mais parecia uma criança. O coitado estava apenas vestido com uma calça de couro e um camisão de algodão grosso, tendo o corpo magro exposto ao vento frio do inverno que se aproximava. Seridath parou e encarou o garoto. Havia ignorado a conversa entre Balgata e seu subordinado, Desmond.
– O que faz aqui, moleque? – perguntou, com rispidez. Thin parecia querer desaparecer, de tão encabulado. Sentia-se mais intimidado do que nunca, principalmente por ter percebido com rapidez as circunstâncias em que estava metido. Sua mente perspicaz o fez entender que o homem da espada negra era encrenca, mas seria ainda pior ficar sozinho naquelas terras amaldiçoadas.
– Eu... eu v-vou com... – vacilou o ladrão.
– Vai merda nenhuma, rapaz – respondeu o guerreiro, deitando a mão no cabo de Lorguth. – Vai é alimentar o fio da minha espada.
O ladrão permaneceu parado, com os olhos arregalados para a mão que Seridath mantinha sobre o cabo da espada. Alguns moradores haviam ocupado a ameia e observavam a saída dos renegados. Alguém gritou um insulto e, segundos depois, um tomate podre bateu forte nas costas de Thin. O ladrãozinho virou-se, magoado, enquanto arqueava, como se estivesse ferido. Agora, as pessoas vaiavam com energia e algumas delas jogavam verduras podres em Seridath e em seu contrariado companheiro. O cavaleiro tremeu de ódio, enquanto fazia a espada deslizar para fora da bainha.

segunda-feira, abril 17, 2017

Renegado - Parte II de IV


O capitão ainda não havia conseguido se convencer de que eram vencedores. Voltou seus olhos ao portão, lugar de maior angústia, e viu a cena deprimente de mortos e feridos que se arrastavam pela terra. O sol do meio-dia brilhou sobre a barba ruiva de Balgata, que tocou seu rosto com a mão direita e sentiu a pele pegajosa. Devia estar horrível. Percebeu que Seridath chegava pelo portão. O rapaz o fitava com uma expressão de triunfo, enquanto apontava para o ombro direito de Balgata.
– Capitão, tem uma seta em seu ombro – anunciou o cavaleiro.
– Ah, é mesmo – respondeu Balgata, enquanto virava o rosto, surpreso, como se tivesse acabado de notar a existência do projétil perfurando sua carne. – Deixa eu tirar isso.
O capitão segurou a haste escura com a mão esquerda e puxou com violência, soltando um grunhido rouco e curto. Voltou-se para Seridath com um olhar ainda aparvalhado e percebeu que o rapaz o fitava em expectativa. Balgata suspirou, balançando a cabeça.
– Está bem, rapaz – admitiu o capitão. – "Seus" mortos nos salvaram. Mas está na hora de tirá-los daqui.
– Certo, capitão – respondeu o jovem, com um meio-sorriso.

Seridath enviou um comando mental à espada: "Lorguth, chega. Faça os servos deixarem a cidade e voltarem ao seu repouso". Quase que instantaneamente, um sombrio pensamento invadiu sua mente. "Eles não terão repouso" pensou Seridath, como se estivesse falando consigo mesmo. Era a resposta rancorosa de Lorguth. O jovem sentiu uma corrente gelada percorrer seu coração.

– Balgata! Os prisioneiros! – gritou ele.

Sem pensar muito, correram todos à torre da guarda, onde ficavam as prisões. Atrás da construção, junto ao muro, um estreito alçapão se abria, como uma boca escancarada, dando acesso ao porão do prédio. De fora, só escuridão. Mas podiam ouvir as vozes abafadas dos prisioneiros. O choro angustiado e os gritos de desespero chegavam fracos à superfície. Entraram pelo alçapão e desceram às cegas a íngreme e estreita escada. Ao penetrarem no fundo do corredor, sentiram suas botas escorregarem em algo pegajoso, enquanto o forte cheiro de sangue os enojava.

Eram oito celas de cada lado de um largo e escuro pavilhão, lotadas de todo o tipo de pessoas. Habitantes da cidade, o Conde de Arnoll, guerreiros sobreviventes da Companhia e os pobres camponeses de Keraz. Uma das celas havia sido arrombada e todos os prisioneiros foram mortos de forma brutal. Eram quarenta pessoas, entre velhos, mulheres e crianças. Dentro da cela, em meio a um tapete de corpos ensanguentados, permaneciam quatro "servos" de Seridath. Lorguth dera a ele sua lição.

Continua...

segunda-feira, abril 10, 2017

Renegado - Parte I de IV

Ir para O Assalto - Parte III de III

Thin observava as horrendas criaturas percorrerem as ruas da cidadela. Agora o ladrão tinha a certeza que as sombras se multiplicavam. Sentia que Dhor com certeza viera cobrar as suas dívidas. Eram seres de corpos escurecidos, roupas em frangalhos e pele arruinada, repleta de erupções, bolhas e furúnculos. Os olhos, vermelhos, moviam-se para além das órbitas, como se eles estivessem em constante transe. Se é que a expressão “eles” pudesse ser utilizada para aquelas criaturas. Emitiam sons guturais que passeavam entre gemidos e uivos.
Até que o ladrão caiu em si. Aqueles podiam ser os mensageiros de Dhor, mas o rapaz sempre considerou que o deus amava seus servos mais criativos e astutos. Não era momento para perder a calma. “Tenho que dar o fora” pensou ele. Jogou a besta para um lado, desafivelou o cinto da bainha, lançando-a longe, com espada e tudo. Enquanto corria pela ameia, ia jogando fora tudo que denunciasse sua posição como bandido inimigo. Descalçou até mesmo as botas. Apenas ficou com sua adaga, escondido de forma hábil na parte inferior de sua pequena coxa. 
Um dos monstros subia a escada que levava à ameia. Evitando o encontro, Thin jogou-se sobre o telhado de um prédio próximo. Era um edifício de dois andares, que parecia ter sido morada de algum comerciante abastado de Arnoll. Com a invasão, passara a ser moradia provisória de Berak, o líder do bando. O rapaz retirou a capa e o gibão, deixou as peças caírem do alto, ficando vestido com uma camisa surrada de lã e sua calça de couro, tingida de preto. Talvez tivesse uma chance de escapar, se conseguisse esgueirar-se como sempre, sem ser notado. Quem sabe se chegasse às prisões antes e se passasse por prisioneiro... Mas algo lhe dizia que era melhor não rumar para aquele lugar.
Agilmente, desceu do telhado e atirou-se com uma cambalhota para o interior de uma das janelas do prédio. Era um aposento claro, ornado com leve luxo. Havia uma cama de madeira, com colchão, uma estante contendo alguns livros e um baú de tamanho médio num canto. Thin, com sua capacidade profissional de avaliar rapidamente um ambiente, lamentou não haver tempo para procurar algo valioso. Desceu com rapidez as escadas a tempo de topar com um criado.
– Os mortos! – gritou o rapaz a Thin – Eles estão tomando Arnoll! Todos morreremos!
O ladrão atrapalhou-se e ambos rolaram da metade da escada até o primeiro andar. 

Enquanto o jovem se embaralhava com o criado, Balgata e seus homens avançavam pelos portões. Andavam com calma, ainda tentando recuperar-se dos ardores da batalha. Os inimigos haviam sido praticamente exterminados. Volta e meia um grito desesperado soava em algum lugar, um bandido pedindo misericórdia, enquanto era despedaçado por uma das criaturas.

segunda-feira, junho 20, 2016

O Assalto - Parte III de III

Ir para O Assalto - Parte II de III

 Berak observava a escaramuça, ainda sem processar o que acontecia. Não eram camponeses, e sim soldados. Não devia ter mandado vinte homens, mas cinquenta. O bandido praguejou, enquanto berrava ordens para que os demais integrantes do bando auxiliassem na defesa do portão. Uma turba correu para a confusão que se formava.
Havia alguns homens nas ameias com bestas, armas que lançavam setas mortais.
A formação circular com escudos unidos estava desajeitada e dois morreram recebendo estocadas nos espaços entre as bordas dos escudos. Os bandidos também não eram profissionais e isso garantiu a Balgata que as mortes não fossem tantas. Ele havia determinado que dois guerreiros estivessem de um lado e do outro de cada aldeão. Dessa forma, as duas brechas abertas pelas mortes foram logo fechadas, mas o círculo ficou menor. Balgata percebeu que ainda havia bandidos dentro dos portões e, se fossem rápidos, poderiam tentar empurrar os inimigos, levando a luta para aquela passagem mais estreita.
– Vanguarda, homens! Anões, retaguarda! Arqueiros, ameia!
O capitão deu ordens rápidas. Com movimentos sincronizados, os guerreiros empurraram os escudos, golpeando bandidos e assustando os cavalos daqueles que ainda estavam montados. Imediatamente o círculo tornou-se uma cunha, que quebrou o cerco de homens e pôs-se contra os inimigos que chegavam pelo portão, enquanto os anões lutavam pela retaguarda. Uri golpeou o peito de um cavalo com selvageria. O animal empinou, tendo ainda a poderosa lâmina empalada em seu corpo, enquanto o bandido que o montava foi ao chão, para ser cruelmente retalhado pelos furiosos anões. Uri largou o cabo do seu machado, deixando que o cavalo moribundo se afastasse com a arma, e puxou uma adaga que estava embainhada às suas costas. Aldreth e outros arqueiros faziam suas flechas estalarem nas pedras da ameia. E Thin quase foi alvejado, tendo se abaixado com rapidez, enquanto as pontas de metal ricocheteavam na rocha. Guerreiros e anões gritavam em fúria, enquanto camponeses choravam ou faziam coro aos furiosos gritos. Guerreiros nasciam naquela desesperada escaramuça.
“Nibala!” pensou Balgata. “Onde está aquele maldito?” Tiveram a surpresa como aliada, mas estavam em minoria e seriam aniquilados, ainda que levassem boa parte dos inimigos com eles. Os bandidos nas ameias despejavam setas sobre os atacantes, que já estavam acumulados no portão. O capitão sentiu a fisgada de uma seta que penetrou em seu ombro direito. O braço que sustinha o escudo fraquejou, mas o guerreiro deu um berro, enquanto golpeava o oponente à frente num movimento transversal, decepando sua orelha direita e fazendo a espada penetrar na junção do pescoço com o ombro. O guerreiro ao lado de Balgata cedeu, desabando como se tivesse sido puxado para o chão. Uma lança havia feito um rombo em seu elmo. O inimigo puxou de volta o cabo da lança, tentando soltar a ponta que estava enganchada no elmo do guerreiro da Companhia. O capitão pisou no cabo e girou a espada para a direita, de forma que o corte horizontal foi tão rápido que sibilou, atingindo o inimigo na têmpora direita. A espada já tinha perdido o fio, mas a lâmina atravessou de um lado a outro, fazendo o sangue ser lançado como um vapor escarlate, tingindo de vermelho os outros bandidos. Os homens recuaram e Balgata adiantou-se. Espumava como um cão raivoso e sua visão tornava-se um borrão, enquanto ele distribuía golpes cegos.
A razão voltou à mente de Balgata quando ele ouviu um grito medonho. Manteve sua posição, sem se virar. Os oponentes de repente mostraram uma expressão de espanto e horror em seus rostos para, logo depois, tentarem fugir, sendo mortos pelas costas ou por espadas, ou por flechas. Os bandidos que estavam mais próximos aos portões tentaram fechá-los, mas foram impedidos por uma turba de criaturas horrendas, putrefatas, que invadiam a cidadela com uma rapidez assombrosa. Corpos reanimados pelo maligno poder de Lorguth, a espada das sombras.

Continua...