quinta-feira, abril 25, 2019

TESTE

se eu morrer
digitalmente
onde enterrarão
meus dados
dedos
gatilhos
e medos?
os restos
de minha existência
virulados pela nuvem
já são cinza
são pó
e como apagar tanto
rastro?
um suicídio digital
é menos perceptível
talvez sequer seja notado
se não for deixada uma carta.
mas onde deixar um story
de um ser que
mesmo sendo
já não é?

segunda-feira, abril 22, 2019

A maquininha do senhor

Era um completo devoto. Frequentava o culto em todos os horários previstos. Participava de todas as reuniões, das convocações para panfletar na rua, dos atos beneficentes e dos retiros espirituais. Seu tempo livre era ainda mais extenuante que aquele gasto no expediente da fábrica. Menor ainda era o período em que podia passar em casa.
Não se importava. Afinal, morava sozinho em um barraco de um cômodo, nos fundos do lote de um conhecido de seu finado pai. O aluguel não era alto e na verdade era o único que ele tinha condições de pagar com o salário magro que tinha.
Seus compromissos financeiros eram sagrados. Antes do aluguel, o dízimo. Havia também o montante para as ofertas alçadas, além do sacrifício. Como o pastor sempre afirmava: Se não fizer falta, não é sacrifício.
Em duas ocasiões, o dinheiro não foi suficiente para comprar comida para o mês inteiro. Aproveitava para jejuar. Dizia para si mesmo que era o senhor providenciando momentos para que seu humilde servo pudesse desenvolver a espiritualidade. Sua marca era de sete dias consecutivos sem comer nada, apenas bebendo água. Lembrava-se de Elias, que jejuou por quarenta dias e quarenta noites, sem ao menos beber água. Sentia-se mais próximo dos heróis da fé.
O mais importante era manter a fidelidade. E segundo o seu pastor ensinara, o dízimo selava a fidelidade. Para ser próspero, era preciso alçar sacrifícios ainda maiores. Como a vez em que ele tentou passar o mês apenas com dez por cento de seu salário, doando o restante para a igreja. Foi difícil, quase impossível, sua fé quase fraquejou. Por isso, ele acreditava que precisava tentar outra vez, para sentir que era purificado de qualquer dúvida.
Enquanto se preparava, ele seguia sua vida entre os dízimos e as ofertas. Sempre fazia questão de ter algum dinheiro na carteira para ofertar durante o culto. Na maioria das vezes, doava até o vale-transporte e voltava a pé para casa.
Os tempos mudaram, o vale foi substituído por um cartão eletrônico. Para manter a busca pela prosperidade, ele deixou o cartão na cesta de ofertas. Com o tempo, esse ato para ele foi perdendo sua profundidade. Afinal, não era a mesma coisa que, noite após noite, deixar aquele papelzinho no cesto e ofertar uma caminhada ao Senhor.
Certa noite, o pastor parecia mais radiante e anunciou que tinha uma grande notícia. Exibiu uma máquina de cartão e declarou que agora deus tinha conta-corrente. Todos poderiam entregar seus dízimos e ofertas, mesmo se não tivessem dinheiro em papel nas bolsas e carteiras.
Os obreiros assumiram seus postos em cada fileira de bancos. Sob a estrondosa voz do pastor, vigiavam rigorosamente o cesto com a maquininha passando de mão em mão. Fosse por barreira tecnológica ou ausência do valioso plástico, poucos fiéis acabaram usando a tal máquina. 
Chegou a vez dele. Tinha dinheiro na carteira, mas não o suficiente para o dízimo. Havia pensado em entregá-lo no domingo, dia mais abençoado da semana. Mas então se lembrou de que tudo acontece como desígnio do senhor e por isso aquela maquininha era uma ordem clara para que o dízimo fosse logo entregue. Suspirando, ele retirou o cartão magnético da carteira, inseriu-o no dispositivo, selecionou débito, digitou o valor e depois a senha. Concluiu a operação, deixando uma via do comprovante na cesta de ofertas e a segunda mantendo consigo.
Sentiu paz, mas por pouco tempo. As coisas logo começaram a ficar confusas. No mês seguinte, o pastor ofereceu aos dizimistas o "modelo assinatura". Assim, o valor do dízimo seria debitado automaticamente na fatura do cartão de crédito. O rapaz, que nunca tivera usado a modalidade crédito de seu cartão, acabou aderindo. E então ele passou a receber, mensalmente, uma fatura com o valor de seu dízimo. No rodapé, havia os dizeres: "Débito em conta. Para cancelar, favor entrar em contato pelo número abaixo". Ele não queria cancelar, é claro. Apenas sentia-se um pouco desanimado, pois amava o momento de levar os dízimos e ofertas até o altar. Amava separar o dinheiro a ser ofertado ao senhor. Amava o momento de cerimoniosa gratidão diante da congregação.
Até que um dia, ele recebeu a mesma fatura, mas com uma quantia absurda em débito. Preocupado, ele procurou o pastor e depois o banco. Todos negaram qualquer conhecimento sobre o caso. Ninguém foi capaz de ajudá-lo. Fez um financiamento de 30 anos para quitar a dívida e largou a igreja. E para todos que perguntassem o motivo de ter abandonado a fé, ele apenas declarava que depois de anos achando que deus era fiel, descobrira que ele era nada mais que um golpista.

quinta-feira, abril 18, 2019

Se eu fosse

Eu queria
ser
outra
Pessoa.
Pose
Habilidade.

Se eu fosse o
Hulk
seria
Incrível.

Ou mais um IDiota
tentando na força
vencer a razão.

Talvez outro
Hyde
Menos senhor de mim.
Monstro não mais
escondido.

A força estúpida e ingênua
do ódio mais puro
o estalar da loucura
ante o absurdo
da vida.

Ou talvez a
Ternura
Travestida em fúria
Ante a negação do
Amor.

segunda-feira, abril 15, 2019

Ouvindo Mia Couto à beira do rio das palavras

Fonte: divulgação
Na quarta-feira passada, dia 10 de abril, tive a oportunidade de ouvir o grande Mia Couto, escritor Moçambicano. Ele esteve no Sesc Palladium, aqui em BH, para falar um pouco da influência que a literatura de Guimarães Rosa teve em seus livros. 
Eu estava super nervoso. Enquanto esperava para entrar no Grande Teatro, sentia que teria um treco ali mesmo, perto da entrada da rua Rio de Janeiro. O hall estava lotado, havia fila para quem tinha a esperança de que houvesse desistentes e sobrassem lugares. Eu, felizmente, tinha conseguido meu convite com antecedência.
Era a primeira vez que eu veria Mia Couto pessoalmente, ainda que bem de longe. Não tinha problema. Eu já estava apaziguado com a ideia de que talvez nunca possa ter uma conversa próxima com escritores como o Mia. Mesmo trabalhando com literatura há tantos anos, minha ingenuidade já sofreu abalos o suficiente para saber que os encontros por vezes são apenas isso: encontros. E por vezes a pessoa de carne e osso menos tem a acrescentar que suas palavras impressas, pois estas são pesadas, medidas e polidas à exaustão. O universo de celebridades cria a percepção de que pessoas famosas são quase divinas, embora sejam... apenas.
Mia Couto apareceu diante de aplausos e ovações, depois de uma belíssima apresentação das meninas do projeto Miguilim. Ele pediu licença para ler um texto e o fez com tal habilidade que parecia tirar o discurso de cabeça. Ele construiu belas e tristes imagens poéticas ao falar da tragédia em Beira, sua cidade natal. Couto mencionou outras tragédias, estas mais próximas, como a de Brumadinho. Também classificou como tragédia a situação política de nosso país, que corre o risco de ter sua história, mais uma vez, deturpada.
Ao falar do cenário político do Brasil, Mia pediu licença para ler uma carta que ele escreveu juntamente com o José Eduardo Agualusa. A carta era um apelo ao diálogo, ao respeito e à democracia.
As palavras de Mia Couto ecoaram no Grande Teatro do Sesc Palladium e foram aplaudidas de pé. Ele deixou o palco com seu passo simples e tranquilo, enquanto nós, o público, continuávamos aplaudindo. Saí do Sesc Palladium um pouco melhor. Em um ano em que minhas palavras secaram, senti-me como o velho Siqueleto, pois senti novamente a magia das palavras fluindo em mim.