domingo, dezembro 24, 2017

Frio: um conto de natal

Eu caminhava pelas movimentadas ruas do centro, tentando inutilmente me proteger do frio com a gola de minha jaqueta. Sim, este é um conto de natal, tem que ser ambientado em baixa temperatura, de preferência com neve e pessoas taciturnas, envoltas em seus casacos. Mas estamos em um natal dos trópicos e, por isso, não haverá neve e será verão.
Providencialmente, uma frente fria chegou, trazendo o frio que veio a calhar tão bem em nosso conto.
Estou andando, sim, tentando não esbarrar em nenhum dos frenéticos cidadãos que precisam fazer suas compras de véspera de natal. Inúmeras pessoas se acotovelam na calçada, em busca de tentadoras ofertas que façam valer seu presente até o último centavo. Eu, porém, não compartilho desse frenesi. Ando à revelia, estou buscando uma cena que sirva de inspiração para o meu conto. E apesar do frio, meu natal está pobremente provido de elementos inspiradores. Não existem papais noéis balançando sininhos e pedindo esmolas. Isso é coisa de filme norte-americano. E na verdade quase não vejo Papai Noel algum. Eles estão todos confinados aos Shopping Centers.
Uma ideia pipoca em minha mente. É isso! Talvez em um Shopping, devidamente sintonizado com o espírito desse mágico momento, eu possa encontrar a inspiração certa para um lindo conto.
Sigo quase que correndo para o Shopping mais próximo. Estou com pressa, assim como todos os compulsivos compradores, mas não quero comprar nenhum presente. Quero na verdade criar uma história mágica, comovente, talvez até mesmo ter de volta minha alma.

xxx

Entrei pelos altos portões de vidro e senti uma lufada do ar-condicionado, mais fria do que lá fora. O caloroso espírito do natal evidentemente já tomava conta dos corredores do Shopping, abarrotado de pessoas que só paravam poucos segundos diante das vitrines para examinar quase mecanicamente os produtos exibidos. Fiquei observando essa horda de zumbis, enquanto andava, calmamente, pelo largo corredor, já assimilando a magia que emanava dos enfeites de natal. Tudo é paz, tudo amor. Uma música natalina quase não conseguia superar o barulho de vozes e passos apressados. Segui pelo corredor até chegar ao pátio central, onde uma imensa árvore de natal havia sido armada.
Meus olhos pararam diante dos enfeites. O trenó, as renas, os duendes, todos inanimados. Somente o Papai Noel esbanjava vida, cobrando módicos valores aos afortunados pais que quisessem satisfazer a vontade de seus filhos de tirar uma foto sentados no colo do bom velhinho. Enquanto eu divagava diante da cena das crianças quase se esmurrando para ter a primazia junto ao Papai Noel, um tumulto começava a surgir alguns metros atrás de mim.
Antes que eu pudesse me virar para observar do que se tratava, o causador da bagunça já passava por mim e andava apressado na direção do trono do velhinho Noel. Assustei-me com a figura. Parecia uma criança, à primeira vista, por causa de sua baixa estatura. Investindo um pouco mais de atenção no exame, porém, qualquer um veria que aquela pessoa não seria uma criança de fato. Seus cabelos eram grisalhos e lisos, embora grossos e cobertos por um gorro verde. Tinha-os na frente aparados rente aos olhos e, atrás, na altura na nuca. Um par de orelhas pontudas despontava além do gorro, insinuando que aquela pessoa não era um ser humano. Seus olhos eram astutos e confiantes, embora estivessem um pouco tristonhos, adornados por sobrancelhas expressivas, também grisalhas. Um bigode espesso cobria o lábio superior, dando à criaturinha um certo ar de autoridade. Sua roupa era toda verde, guarnecida de guizos prateados.
A princípio, quis negar o que meus olhos denunciavam e imaginei que poderia ser um anão fantasiado, talvez um mendigo que conseguira driblar os seguranças, que seguiam atrás dele.
De fato, sua roupa não estava lá um primor. Estava suja, tinha vários remendos e alguns guizos faltavam, enquanto outros estavam manchados, escurecidos pela ferrugem. Aquelas orelhas não pareciam ser falsas, é verdade, mas existem hoje fantasias que simulam totalmente um personagem natalino. E esse sujeito era idêntico às estátuas de duendes que acompanhavam o trenó e as renas de mentira que enfeitavam a árvore de natal do Shopping.
O duende jogou-se aos pés do Papai Noel. As crianças, horrorizadas, foram esconder-se atrás dos seus pais. Estes, por sua vez, puseram a bradar contra a administração do Shopping. Os seguranças pararam a alguns metros de distância, como que para observar a conversa que aconteceria dali em diante. Apesar da confusão de todos, o bom velhinho continuava calmo e sereno.
– Papai Noel – disse o duende –, eu não posso acreditar que encontrei o senhor. Sou o único que restou de todos nós. Não sei mais dos outros. Agora estou feliz porque o senhor vai cuidar de seu duende-mestre, do supervisor da sua antiga fábrica de brinquedos.
– Afaste-se, Dimas. – disse o velhinho, calmamente – Nossa fábrica faliu, estou fazendo esses bicos para ver se pelo menos consigo tirar meu nome do SPC.
– Mas, Pa..Papai Noel... – o duende parecia horrorizado ante a frieza de seu antigo mestre. – Eu avisei ao senhor para que não mudássemos nossa moeda, que transferir-se para o Brasil não seria uma boa idéia,  que o clima faria mal para as renas, mas o senhor insistiu em não manter nossas transações em ouro e ainda por cima quis comprar um chalé na Serra da Mantiqueira...
– Eu sei, Dimas, eu sei – retorquiu o velhinho, com um sorriso entre a bondade e a tristeza. – Estou pagando caro por minhas inovações. Nossos investidores quebraram. A bolha imobiliária nos atingiu em cheio. O Banco do Pólo Norte pediu concordata e conflitos mundiais me encheram de temor. Pensei que seria um bom negócio vir para cá. O país ia bem, o povo ia bem a pobreza estava em queda. Não imaginava que tudo iria para o buraco tão rápido. Essa instabilidade na política brasileira, os escândalos nos jornais e uma crise de origem duvidosa acabou com nossas reservas.  E onde estão os outros?
– Acabaram-se – o duende baixou os olhos, com um olhar triste –, todos viraram gesso ou pedra. Eu acho que Kamil está entre aqueles enfeites ali.
E apontou para os falsos duendes do Shopping. Pelo visto um deles não fora falso um dia. Eu permaneci calado. É, parece que a crise atingiu até mesmo o Papai Noel! Pensei que o bom velhinho, um dos símbolos do Capitalismo, seria o único imune a suas adversidades e manobras. Os dois continuaram sua conversa. Noel mantinha uma expressão cada vez mais fria e severa. O duende, por sua vez, curvava-se cada vez mais.
– Papai, por favor, me aceite a seu serviço. Eu posso ser seu assistente, como antes!
– Impossível, caro Dimas. Eu só posso pagar duas assistentes e – Noel apontou as moças que o acompanhavam –, como vê, não há como eu deixar uma dessas duas lindas jovens sem amparo financeiro, em troca de um molenga como você!
– Mas, mas...
– Chega de “mas”, Dimas! – a voz do velhinho foi enérgica, fazendo o duende encolher-se. – Não quero mais ouvir suas lamúrias. Se quiser, torne-se gesso de uma vez e faça companhia para Kamil. Talvez o Shopping deixe você aí, junto com os outros enfeites e, no final da temporada, encontre um lugar quente e seco para te guardar até o próximo natal. Essa é minha única oferta!
Dimas, entristecido, baixou os olhos. Fora vencido, não havia para quem mais recorrer. Eu olhava com compaixão para o pequenino duende. Pensei até em convidá-lo para trabalhar para mim, como faxineiro talvez. Uma criaturinha daquela deveria comer tão pouco! Mas ter um duende em casa talvez não seria lá uma coisa muito comum de se ver. Eu seria alvo de curiosos, telejornais, mídia. Eu não queria publicidade, queria só um conto de natal. Enquanto eu ponderava sobre as vantagens e desvantagens de se ter um duende em casa, Dimas foi lentamente se transformando. Aos poucos tornava-se uma figura mais fictícia do que real, feita apenas de gesso e tinta. O duende agora não passava de uma estátua velha e mal pintada.
Esfreguei bem os olhos, como se estivesse saindo de um transe. Olhei para aquela figurinha triste, enquanto, para minha admiração, as pessoas voltavam às suas preocupações normais. Papai Noel já voltara a atender as crianças com o sorriso mais bonachão do mundo, enquanto os pais riam e conversavam uns com os outros, esperando na fila a vez de seus pequeninos. Somente eu estava maravilhado. Somente eu me preocupava com o duende. Deixei o Shopping com pressa, ouvindo uma música fúnebre, saindo de não sei que lugar, sobrepondo sorrateiramente a música natalina que enchia todo o ambiente.

quarta-feira, dezembro 20, 2017

Noite para renascer

Sabemos da força das palavras. Muitas vezes, porém, nos esquecemos disso. Na noite do último sábado, dia 16 de dezembro, fui testemunha dessa potência. Um poder renovador, capaz de inaugurar novos ciclos, fundar mundos.
Estávamos no Santo Chá, para a apresentação "Contos para Renascer" e tive o privilégio de dividir a palavra com pessoas experientes e talentosas, preciosas em tudo. Estavam comigo na apresentação Carlos Barbosa, Fernando Chagas, Isaac Luiz e minha amada, Pâmela Bastos Machado. Na direção artística, junto com o Fernando, estava a Aline Cântia.
Narramos histórias que nos levaram a outro patamar de vida, um renascimento interior, que procuramos compartilhar com os demais.
Além das pessoas já citadas, também contávamos com as presenças de colegas nos prestigiando, como a Bárbara Amaral, a Alessandra Nogueira, Nadja Calábria e Rodrigo Teixeira. 
Contamos, declamamos poesia e também cantamos. Abrindo a apresentação, fizemos um cortejo ao som de "Ô lá vem vindo..." Pâmela distribuiu sementes entre as mesas.
Carlos recitou um belíssimo poema do Thiago de Mello. Fernando cantava "Quem sabe isso quer dizer amor". Isaac narrou a lenda do Peixe Boi. Pâmela, "A pequena vendedora de fósforos". Lemos, juntos, "Os Estatutos do Homem". Carlos então narrou um lindo trecho do livro "O Dom da História: uma fábula sobre o que é suficiente", de Clarissa Pinkola Estés. Por fim, contei a lenda da mandioca, história que aprendi com o mestre Joca Monteiro.
Aline tomou a palavra e, com voz embargada, falou da importância dessas histórias e da necessidade de lutarmos contra o cenário atual, em que nosso país retorna para o mapa da fome. A emoção não deixou que ela continuasse. Aline olhou para nós, entre lágrimas.
Então, num arroubo de ousadia, falei algumas palavras inflamadas e gritei um "#ForaTemer!"
Confesso que foi um momento muito especial para mim. Sinto-me renascido. Amparado para força desse maravilhoso grupo, vejo-me como planta e também semente. Planta, por estar entre tantos galhos nós e seiva de histórias. Semente, porque sinto-me imbuído da potência das palavras, que me lançam a um horizonte que, espero, seja sempre melhor.

segunda-feira, dezembro 11, 2017

quinta-feira, dezembro 07, 2017

Dúvida

Não sei por que escrevo.
Talvez para afugentar
meus medos.
Ou então,
para
Alimentá-los.
Não sei se escrevo
ou
escravo.

5/12/2017 (com licença de Nete Brasil, Felipe Diógenes e Rodrigo Teixeira)

sábado, dezembro 02, 2017

Renegado - Parte III de IV

Ir para Renegado - Parte II de IV

Naqueles últimos dias, Seridath já tinha visto coisas horríveis, mas nada tão hediondo quanto a visão daquela cela, o palco de um massacre covarde. Sentiu o ímpeto de voltar-se contra a espada, castigá-la de alguma maneira por sua rebeldia. Em sua mente, percebia que de Lorguth emanava leviandade e despeito, como uma criança fazendo pirraça. Queria fazer a insolente pagar. Mas logo o rapaz ponderou de forma diferente. Talvez precisasse daqueles mesmos poderes para escapar da cidade. Sem a cooperação Lorguth, mesmo sua força e habilidade não evitariam sua morte. Com aquela barbaridade cometida pelos servos, seria para sempre odiado por Arnoll e pela Companhia.
Seus pensamentos foram interrompidos por um choque violento. O punho de Balgata atingiu com força o rosto de Seridath. Atordoado, o jovem sentiu suas costas baterem com violência nas barras de ferro de uma das celas. Suas mãos alcançaram quase automaticamente o punho da espada negra, mas ele controlou-se. O capitão ainda o olhava com fúria, mas não demonstrava intenção continuar a agressão.
– Saia – disse ele. – Saia da cidade agora. Não quero nunca mais ver sua maldita cara.
– Espere, Balgata. A culpa não foi minha, eu... – tentou dizer Seridath.
– Pro abismo de Nibala com suas desculpas, verme – cortou Balgata, a voz carregada de rancor controlado. – A culpa é sua por ter escolhido carregar essa espada maldita. Quero ter certeza que nunca mais verei você e sua espada. Se o encontrar novamente, farei você sentir o que é ter o ventre invadido por metal.
Seridath optou por permanecer em silêncio. Sentia a possante vibração de Lorguth em seu lado. A lâmina estava até mesmo aquecida, tal era sua euforia. E o rapaz sabia o sentido disso. Expulso da cidade, sua única escolha seria enfrentar os inimigos que, provavelmente, no final do dia alcançariam a campina que se estendia ao norte da cidade. O longo cerco seria inevitável. Mas, antes, o Viajante Cinzento seria obrigado a enfrentar o tal “ente poderoso” que comandava aquela legião de mortos.
Sem dizer mais uma palavra, Seridath voltou as costas para Balgata. Os outros guerreiros que desceram com eles à prisão acabavam de despedaçar as quatro criaturas, servas de Lorguth, que não ofereceram resistência. Balgata seguia logo atrás de Seridath, como que esperando qualquer reação inesperada da parte do guerreiro. Alguém ao longe gritou o nome do capitão. Um dos soldados chegava, segurando pelo pescoço um garoto franzino, sem camisa, cujas costelas revelavam-se de cada lado do seu tronco. O capitão olhou com surpresa para o soldado e perguntou:
– O que foi, Desmond? O que quer com esse garoto?
– Eu conheço esse "garoto", senhor. Não se deixe enganar, capitão. Esse "garoto" é um homem adulto. Já foi condenado a trabalhos forçados no reino de Renandart. Eu conheci o "Rouba Queijo" quando servi na guarda da capital. Parece um ratinho pequeno mas pode fazer um baita estrago.
– Sei... – respondeu Balgata, estreitando os olhos. – Mas chega de mortes por hoje. Joga esse espertinho pra fora da cidade, junto com o maldito lá. Vão fazer companhia um para o outro.
Antes que o sol se inclinasse rumo à tarde, Seridath atravessava o portão de Arnoll. As marcas cruas da luta estavam espalhadas pelo chão, enquanto os habitantes da cidadela, recém-libertos, auxiliavam os soldados da Companhia a arrastarem os corpos dos bandidos para fora dos muros e levarem para dentro os aliados mortos ou gravemente feridos. As carroças, que não haviam sofrido dano, aguardavam que o trabalho terminasse para serem levadas ao interior dos muros. Seridath passou pelo grupo de aldeões e guerreiros sem voltar o olhar. Sentia-se humilhado, mais uma vez, pela espada que escolhera por serva. O cavaleiro então notou que era seguido de perto por um rapaz franzino, que mais parecia uma criança. O coitado estava apenas vestido com uma calça de couro e um camisão de algodão grosso, tendo o corpo magro exposto ao vento frio do inverno que se aproximava. Seridath parou e encarou o garoto. Havia ignorado a conversa entre Balgata e seu subordinado, Desmond.
– O que faz aqui, moleque? – perguntou, com rispidez. Thin parecia querer desaparecer, de tão encabulado. Sentia-se mais intimidado do que nunca, principalmente por ter percebido com rapidez as circunstâncias em que estava metido. Sua mente perspicaz o fez entender que o homem da espada negra era encrenca, mas seria ainda pior ficar sozinho naquelas terras amaldiçoadas.
– Eu... eu v-vou com... – vacilou o ladrão.
– Vai merda nenhuma, rapaz – respondeu o guerreiro, deitando a mão no cabo de Lorguth. – Vai é alimentar o fio da minha espada.
O ladrão permaneceu parado, com os olhos arregalados para a mão que Seridath mantinha sobre o cabo da espada. Alguns moradores haviam ocupado a ameia e observavam a saída dos renegados. Alguém gritou um insulto e, segundos depois, um tomate podre bateu forte nas costas de Thin. O ladrãozinho virou-se, magoado, enquanto arqueava, como se estivesse ferido. Agora, as pessoas vaiavam com energia e algumas delas jogavam verduras podres em Seridath e em seu contrariado companheiro. O cavaleiro tremeu de ódio, enquanto fazia a espada deslizar para fora da bainha.