quarta-feira, agosto 31, 2011

Cachalote - Para além da superfície

Ler Cachalote, graphic novel de Daniel Galera e Rafael Coutinho, foi uma experiência de profunda imersão. Ainda que toda a forma de narrativa busque proporcionar a seu leitor essa experiência, creio existem graus de imersão. Esta será mais profunda de acordo com a empatia do leitor, mas também conforme a competência e a genialidade do artista.

Cachalote não só permite o mergulho em vidas alheias como também, através de sua narrativa, busca proporcionar, numa profunda catarse, que o leitor esteja na pele de cada personagem. Ainda que pareça óbvio dizer que sua na narrativa é extremamente visual, a expressividade do traço de Rafael Coutinho criou um ambiente quase delirante. Fragmentado, o roteiro guia o olhar do leitor por um universo em que 5 vidas se desdobram. 

Cachalote não poupa o leitor, assim como não poupa seus personagens. Construído numa complexidade que torna difícil falar em tema (o que enriquece a obra), pode ter várias interpretações, diferentes interações, como um cubo mágico em quadrinhos. E o tom quase kafkiano que permeia cada história realça essa alegoria. Não só o tom. Há uma sexta história, que entra como prólogo e epílogo da graphic novel, e que faz jus ao título. Ao falar em interpretações, considero por bem fazer menção a duas abordagens: uma, a mais superficial, fala da relação aparência versus essência. A outra, talvez mais profunda, aborda a tensão entre maturidade e criatividade. Talvez maturidade não seja a melhor palavra, mas velhice, ou decrepitude, decadência. A resignada degeneração da beleza.

Essa degeneração deixa lacunas por todo o enredo. Cabe ao leitor completar essas lacunas, intuir dos mistérios tecidos em torno dos personagens. Como metáforas de almas velhas, artísticas, que passam por crises criativas, como se encalhadas após sequencias de pequenos fracassos que aos poucos se tornaram em uma tragédia. E uma ausência de um desfecho tradicional como maior alegoria da própria incompletude dos personagens e de nós mesmos.

Título: Cachalote
Editora: Companhia das Letras
Autores: Daniel Galera e Rafael Coutinho
ISBN: 9788535916737
Ano: 2010
Edição: 1
Número de páginas: 320
Acabamento: Brochura
Formato: 21.00 x 27.00 cm

domingo, agosto 28, 2011

A Cidade Suspensa – Parte III


Kain chega à enigmática e titânica Cidade Suspensa. Agora, ele deve encontrar uma maneira de permanecer na cidade. De forma inusitada, o estranho Ambulante Chinês apresenta-se para ajudar.

"Pra ficar na Cidade, só tem três jeitos: Um emprego, Um laço com um cidadão, Uma moradia. Se conseguir qualquer um, pode ficar."

Essas palavras ecoaram na cabeça de Kain, que manteve seu silêncio enquanto fitava o Ambulante Chinês. Aquilo era mais que simples informação. E sem nenhum custo? Kain continuava a desconfiar do mascate, que exibia um riso estranho, quase com um ar de deboche.

"Sei o que deve pensar agora o freguês, né? Pensar deve que não sabe o que fazer... Que difícil começar... Dessa avenida, do lado de onde eu tava vindo, tem uma taberna. Procura Scarlate a Cortesã. Ajudar o freguês pode, né?"

O Ambulante Chinês apontou para algum lugar ao longo da avenida imersa em sombras. Uma tímida luz parecia lutar contra a escuridão, como a fraca chama de uma vela. Com seu típico sorriso matreiro, ele voltou à frente da carroça e passou a puxá-la, numa corrida regular, no sentido contrário ao destino de Kain. Enquanto o mascate se afastava, o viajante resolveu que não custava nada seguir aquela dica.

A taberna estava envolta em uma luz parca e não havia música ambiente. Alguns clientes espalhavam-se pelas mesas mal-cuidadas, com umas poucas garotas a acompanhá-los. Todos se vestiam de forma quase miserável e conversavam aos sussurros. Kain procurou a moça referida pelo Ambulante Chinês. Um dos clientes apontou com a relutância de um ébrio para os fundos do estabelecimento.

Scarlate, a Cortesã, cuidava do balcão. Era de longe a moça mais bonita daquela taberna, com seus volumosos cabelos vermelhos e olhos verdes. E não seria mentira que ela ficou impressionada quando Kain surgiu à porta do estabelecimento. A Cortesã viu um homem alto, vestido com um capote cinza e cabelos compridos e grisalhos. Era bonito e tinha uns olhos assustadoramente negros. Kain aproximou-se de Scarlate e depositou duas moedas de cobre sobre o balcão.

"Uma bebida e uma noite com você." disse o viajante, com um olhar apertado, perturbador.

Scarlate fez mofa, enquanto apanhava as duas moedas e segurava-as entre os dedos finos. Olhou o viajante com deboche.

"Você deve ter vindo de um lugar cheio de garotas bonitas e baratas, estrangeiro, mas aqui, isso só paga a cerveja."

Enquanto segurava as moedas com a mão direita, Scarlate passou a esquerda por baixo do balcão, de onde tirou uma velha caneca de madeira, que foi depositada em frente ao viajante. Ainda com a mão esquerda, a Cortesã pegou na alça de um jarro, derramando seu conteúdo no interior da caneca, até enchê-la. Enquanto servia o cliente, a jovem começou a esfregar as duas moedas de cobre entre os dedos, fazendo a cor amarronzada começasse a despregar-se como se fosse ferrugem. Ela agora tinha duas moedas de prata nas mãos. Kain não parecia surpreso. Em muitos lugares que conhecera, cortesãs também eram feiticeiras.

"Bom, agora você tem o suficiente." Disse Scarlate. Ela havia gostado do visitante. "Mas só para um pequeno pedaço."

A Cortesã então guardou as duas moedas no avental, enquanto Kain tomava uns bons goles do copo de cerveja. Scarlate sorriu enquanto observava o pomo-de-adão do viajante fazer movimentos vigorosos. A moça passou a língua pelos lábios, esboçando um sorriso malicioso e enigmático. 

domingo, agosto 21, 2011

A Cidade Suspensa – Parte II

O som dos guizos trouxe um homem chinês, de baixa estatura, vestido com uma bata oriental de cor indefinida, por causa da pouca iluminação. Ele vinha puxando uma pequena carroça abarrotada de bugigangas. Pelo visto, o homem era um mascate e carregava uma quantidade de mercadorias maior do que a carroça podia normalmente suportar. O homem também tinha uma trança comprida e bem cuidada caindo pelas suas costas. Usava um chapéu justo, característico, que se encaixava muito bem em sua cabeça. O Ambulante Chinês parou diante de Kain.

"Um viajante, um viajante." Repetiu, feliz, o homenzinho. "Bem-vindo freguês. Sua sorte esse encontro, sim. O senhor pode comprar coisas boas, coisas muito boas aqui, né?"

"Não tenho interesse." respondeu Kain, evasivo. "Com licença."

Mas o Ambulante Chinês não pareceu querer desistir do novo cliente, pois desvencilhou-se da carroça e tentou barrar o caminho do viajante. Suspirando, Kain abriu e fechou os olhos lentamente, como se decidisse dar uma chance ao mascate. Alegre, o Ambulante Chinês começou a retirar de sua carroça os mais variados objetos.

"Amuletos, tenho sim; patuás, livros de feitiçaria, poções milagrosas, tenho tudo, freguês. Mas o melhor com certeza é uma alma forjada. Uma raridade, né? Tenho uma aqui na medida certa, né?"

Kain estava surpreso, mas não tinha dinheiro para comprar almas, mesmo falsas. Se não podia cobrir o preço nem mesmo da sua...

"Escuta, eu quero saber o que faço para poder ficar na Cidade." 

"Mas isso é informação, né?" respondeu o Ambulante Chinês. "Informação também tenho pra vender, né? Mas o freguês é novo, é amigo, vou dar de graça."

Kain olhou-o, ainda surpreso. Ele parecia mesmo querer dar essa informação sem cobrar por ela. Não existe nada de graça, pensou o viajante. Não conseguia adivinhar qual era o objetivo daquele vendedor em ser tão amigável. Kain suspeitava que talvez as forças que conspiravam contra o êxito de sua missão já estivessem em movimento.

quinta-feira, agosto 18, 2011

Testemunhas de um tempo distante


Para muitas pessoas, o passado é fascinante e, quanto mais longínquo for o tempo, mais perguntas ele desperta. Seria isso verdade? Pois essa é a premissa de tantos arqueólogos. Ao encontrar um esqueleto, é inevitável ao estudioso perguntar: quem foi essa pessoa? Por que ela estava aqui? O que costumava fazer em seu dia-a-dia? A História hoje fornece um grande volume de informações, mas as perguntas continuam, inesgotáveis. Surge então uma obra destinada a um passado distante da terra, quando pesquisadores afirmam ter vivido os primeiros exemplares do homo sapiens (cro-magnon), que teriam convivido ainda com os neandertais.

É nessa época que nasce Ayla, uma menina cro-magnon que havia sobrevivido a um terremoto em que toda a sua família morrera. Vagando sem destino e superando terríveis perigos, a menina é acolhida por Iza, uma neandertal que viajava com o seu grupo em busca de um novo lar. A caverna dos neandertais havia sido destruída pelo mesmo terremoto que vitimara os pais da menina cro-magnon. Decidida por adotá-la, Iza dá a ela o nome de Ayla. 

A princípio, os demais integrantes do bando não desejam a presença de uma estranha entre eles. Brun, o líder, é um dos maiores opositores à permanência da menina, mas a influência de Iza, que é curandeira, garante que Ayla seja acolhida e iniciada nos costumes do grupo. 

Enquanto cresce, Ayla faz amigos, como Creb, o Mog-ur (feiticeiro), e inimigos, como Broud, o filho de Brun e futuro líder. Com o passar do tempo, Ayla descobrirá que quanto mais amigos tiver, mais perigosos serão seus inimigos.

Ayla, A Filha das Cavernas é o primeiro volume da saga Os filhos da terra, de Jean Auel. É uma narrativa fascinante sobre um povo já extinto e seu possível contato com o ancestral do homem moderno, que o substituiu. Com grande conhecimento e um talento inegável, Jean Auel tece a trama da garota cro-magnon ao longo da sua infância e adolescência, criando uma personagem apaixonante, tanto por sua perspicácia quanto inteligência mas, sobretudo, por sua coragem. Tudo isso torna Ayla, a filha das cavernas um verdadeiro épico, uma leitura indicada para todos os gostos.


Ficha Técnica

Editora: Record
Autor: JEAN M. AUEL
Ano: 2003
Edição: 1
Número de páginas: 556
Acabamento: Brochura
Formato: Médio
Volume: 1

Também disponível em edição de bolso.

domingo, agosto 14, 2011

A Cidade Suspensa – Parte I



Era início de noite quando Kain chegou aos portões da Cidade. Na verdade, ainda estava claro o bastante para que ele pudesse distinguir os tons alaranjados dos raios de sol que abandonavam com rapidez o horizonte. Kain suspirou, enquanto batia as mãos nos joelhos cansados, para afastar a poeira do caminho. Por duas semanas ele havia viajado, sem parar, e agora chegava àquela cidade de edifícios escuros e imponentes, silenciosa quando não se movia. Era bom ter chegado a tempo.

O viajante deu seus primeiros passos para abandonar a estrada empoeirada e atravessar os limiares da Cidade. Os portões enferrujados permaneciam fechados, mas ele sabia que aquilo era uma ilusão. O grande enigma que tomara grande parte de sua vida: como penetrar na Cidade Suspensa.

Estava bem assentada no chão, era verdade. Outro viajante menos experiente pensaria que se tratava de apenas mais deplorável aglomerado de almas enclausuradas. Um aglomerado impenetrável para aqueles que não conhecessem seus segredos. Uma encruzilhada poeirenta, um crepúsculo e um peito vazio. Essas eram as três condições para penetrar naquele lugar.

Sem hesitar, Kain dirigiu-se aos portões em passos firmes. Um segundo antes de penetrar na Cidade, os portões permaneciam em solene imobilidade. No segundo seguinte, como previra, o viajante os havia ultrapassado, parando apenas para observar as construções titânicas e opressivas que compunham os edifícios da Cidade. Kain suspirou, enquanto lembrava que tinha pouco tempo. Logo a Cidade se suspenderia e começaria mais uma jornada. Era necessário encontrar um lugar para ficar antes que ela fizesse um novo pouso.

Dentro do gigantesco complexo, Kain não sentia o vento. Era tudo parado e morto naquelas ruas que pareciam feitas de aço e fuligem. "Isso tudo parece enorme um labirinto de carvão." pensou ele. A Cidade era um gigantesco emaranhado de avenidas e edifícios escuros, banhados por uma luz lúgubre. Suspirando, procurou ao redor uma porta ou janela com luz acesa, algo que denunciasse vida. Não encontrou nada a não ser penumbra. Segundos depois, ouviu o agudo tilintar de guizos que se aproximavam pela avenida à direita.

quarta-feira, agosto 10, 2011

As marcas da mão dela


Era para ser um blog literário. Mas hoje será somente um blog. Um diário, sim, com a única função de tentar capturar um momento que, ainda que não saibamos por qual motivo, consideramos precioso.

Cheguei à casa dela por mero acaso. Digo que não foi planejado. Já queria visitá-la, tentava ligar com certa regularidade e ficava imerso em culpa por não conseguir concretizar esse intento. Sabia que ela sempre estaria lá, nessa inércia que atua em cumplicidade com as culpas cultivadas e administráveis.

Toquei o interfone, subi os dois lances de escadas e descobri a porta aberta. Gesto tácito de que sempre seria bem-vindo, sempre aguardado. Apesar de tudo, foi com a hesitação dos filhos pródigos que entrei.

Descobri, então, que ela não estava no sofá de costume. Na verdade, ela repousava em um recanto que eu ainda não conhecia. Acuada pelo calor, ela repousava em uma área interna. Beijei-a e fui beijado, enquanto perto dela procurava refazer suas memórias, costurando com a linha das palavras, embora sem agulhas.

Ela parecia distante, alheia, formal demais. Em determinado momento, desistiu e caiu em pranto: "Eu não consigo lembrar quem é ele..." Enquanto eu, com um copo de suco na mão, o estômago pesado, senti, ainda que por um segundo, ser algo sem existência, um ínfimo espaço nulo, negado.

Consternado, busquei forças para voltar a existir, para me impor no mundo dela, ser alguém de novo. Com suas mãos entre as minhas, eu tentava repetir o gesto que sempre fazia quando criança, seguindo com o polegar e o indicador as marcas da mão dela, segurando com a pontinha a pele, sentindo sua leveza carregada de idade. Ela então, meio que aliviada, disse que estava agora lembrando, enquanto eu ainda parecia não acreditar que havia sido devolvido à existência.

Carreguei-a no colo de volta à sala. Massageei seus pés com óleo, acariciei seus cabelos. Mas nada arrancava de mim a sensação de nulidade, enquanto eu a via em luta constante com insetos invisíveis e visitas indesejadas, imaginadas.

Enfim foi preciso partir. Beijos, abraços, pedidos de bênção. E a sensação incômoda de que eu não poderia deixar com ela um pedaço meu. Deveria ir embora levando comigo todos os meus cacos.