O último capitão exibia uma expressão que passeava entre a desagradável surpresa e o completo repúdio. Seridath imaginou também ter vislumbrado um lampejo de medo nos olhos do ruivo.
– Se
você tá falando de usar essa coisa maldita aí,
pode esquecer – disse Balgata, apontando para a espada.
– Não
sei o que Aldreth te falou a respeito de Lorguth, mas é disso
mesmo que eu estou falando – retrucou Seridath, friamente.
– Não
quero saber, garoto. Se dependesse de mim, você já
estava com essa espada no fundo de um poço, preso ou morto.
– Vamos
ver então se essa é a vontade dos outros. Vamos expôr
a situação a todos e as opções
envolvidas. Vejamos se eles concordam com você.
– Pro
inferno com eles! - rugiu Balgata. - Eu sou o capitão! Eu
comando aqui!
Seridath
ergueu as mãos, como em rendição, dando seu
conhecido sorriso irônico, que tanto irritava Balgata. Os dois
eram altos, embora Balgata fosse quase um gigante. Aos outros, que
testemunhavam aquela discussão, parecia que dois titãs
disputavam com suas forças catastróficas. Mas Seridath
brincava. Sentia uma vontade mórbida de saber o quanto Balgata
agüentaria as provocações antes de partir para
cima do cavaleiro. Qual seria o último sentimento do capitão
quando fosse atravessado por Lorguth? Contudo, ainda não era o
momento. Tinha que controlar-se, minar a autoridade do outro e tomar
seu lugar. Logo, aqueles homens veriam a fraqueza de seu líder
e a única escolha para eles seria buscar refúgio junto
ao guerreiro da espada negra.
Enquanto
Seridath maquinava sua traição, Balgata já
estava longe. Havia agradecido Lucan pelas informações
e ordenado ao arauto que repousasse. Partiriam logo após o
nascer do sol. Com sorte, levariam pouco mais que três horas
para chegar a Arnoll, embora o plano fosse passar de largo pela
cidadela. Era uma decisão difícil, mas teria que deixar
os outros à própria sorte.
Aguardando
as horas passarem, Balgata caminhou em silêncio até um
grupo de árvores próximas. Não tivera tempo para
respirar durante aquela fuga. Precisava de um pouco de ar. Aldreth
aproximou-se do capitão, que apenas virou seu rosto para o
arqueiro, fitando nele seus olhos cansados. O rosto abatido de
Balgata, banhado pelo luar, parecia cadavérico. Ao longe,
Seridath observava a cena, mas não estava a uma distância
suficiente para que pudesse ouvir o que conversavam. Aldreth parecia
o de sempre: com aquele patético olhar de desespero. Balgata,
apesar de resistente, começava a mostrar sinais de estar
cedendo à fadiga. O cavaleiro negro assentiu, enquanto
suspirava. Isso mesmo, esperava que todos chegassem ao seu limite.
"Testados," pensou ele, "estamos sendo todos testados,
como antes da Montanha. Como ele falou, um teste antes e um
depois. E vou vencer em ambos."
Nesse
instante, o rapaz sentiu um tremor quase imperceptível abaixo
de seus pés. Embora insignificante, essa sensação
deixou-o alerta. Seridath fechou os olhos e foi imediatamente tomado
pela estranha impressão de estar se expandido, estendendo-se
pelo solo. Era como se estivesse correndo metros e metros sob o chão,
para todos os lados. A cada momento, o tremor ficava mais forte. O
rapaz pôde perceber que esse tremor repetia-se em um ritmo
constante. Continuou a percorrer o solo até sentir o tremor
retumbar, como se ele fosse esmagado de uma vez por dez mil pés.
Seridath
abriu os olhos, assustado. Todo seu corpo era sacudido diante da
tensão. O tremor ainda estava lá, tênue. Mas em
breve ele retumbaria sobre todos, pois aproximava-se, tornando-se
mais intenso a cada segundo. O rapaz partiu com rapidez na direção
de Balgata.
–
Capitão! – chamou ele – Capitão Balgata!
Balgata
virou-se para Seridath, furioso, enquanto Aldreth alternava seu olhar
assustado entre ambos. Parecia uma criança surpreendida
fazendo em grande travessura e esperava um castigo severo. O
cavaleiro percebeu e lançou, por um instante, seus olhos frios
para o seu pajem. Em seguida passou a ignorar a presença do
rapaz, enquanto pensava em uma forma de ser convincente.
–
Capitão, temos problemas – disse o cavaleiro.
– Você
é um sério problema, tenho certeza – reagiu Balgata.
– E se não tiver uma justificativa, minha espada também
será problema seu!
–
Calma, capitão – Seridath ergueu novamente os braços,
em tom apaziguador -, peço que venha comigo por um instante.
Algo muito sério está acontecendo aqui perto e preciso
que você mesmo o veja.
Balgata
pôs a mão no cabo da espada, enquanto via Seridath
afastar-se rumo à orla do bosque. Olhou para Aldreth, que
parecia totalmente amedrontado.
– Não
tenha medo, garoto – murmurou o capitão. – Eu cuido
daquele traste. Se quiser vir conosco, não irei proibir.
–
Tu-tudo bem, senhor – respondeu Aldreth. – Eu também vou.
Seguiram
Seridath, que margeou a orla do bosque, na direção da
campina. O cavaleiro quase corria, de forma que precisaram apertar o
passo. Logo os três estavam juntos, usando como cobertura um
capim alto, totalmente ressequido, que crescera naquelas matas.
Passaram um córrego insignificante, infestado de juncos.
Andaram por quase uma hora. Algo iluminava de forma lúgubre as
colinas à frente. Seridath logo mudou o rumo, para o interior
do bosque, corrigindo-o em seguida na direção original.
Agora os três corriam por entre as árvores, rumo ao
local de onde brotava a estranha luminosidade. O cavaleiro parecia
ter um bom olho para ambientes escuros, pois traçava seu
caminho evitando qualquer obstáculo. Os outros dois seguiam à
risca o caminho por ele escolhido.
Balgata
então começou a escutar um som ritmado que retumbava na
noite. Rapidamente reconheceu o som de tambores de guerra. Sem dúvida
guiavam a marcha de um exército que se aproximava. Venceram a
colina, conquistando uma visão panorâmica. Do lado
direito, a campina se estendia, banhada pela luz da lua cheia.
Contaminando a campina, como um câncer, estava uma enorme e
escura massa que se movia de forma disciplinada, avançando de
acordo com o ritmo dos tambores. O exército quase não
possuía tochas, pois seus soldados não precisavam de
alguma iluminação para seus olhos sem vida. Eram
sombras humanas que se moviam, embora fosse possível
identificar os contornos do que pareciam ser homens gigantescos,
carregando os tambores que marcavam a velocidade da marcha.
O capitão
sentiu seu corpo estremecer, enquanto observava. A palavra "Tominaro"
veio à sua mente. Uma lenda infantil; uma brincadeira comum
entre as crianças pobres. Os mais velhos procuravam assustar
os mais novos com histórias assim. Gigantes comedores de
gente. Então eles existiam de verdade e estavam auxiliando os
inimigos. Com um olhar resignado, Balgata comentou para Seridath:
– É,
garoto, acho que vamos precisar usar mesmo essa coisa aí.
Continua...