Ir para A retirada - Parte II de V
Para evitar qualquer desastre, caso fossem alcançados por
perseguidores, Balgata dispôs dois terços do grupo de
vanguarda para reforçar a retaguarda da caravana. Era um
remanejamento precário, mas o capitão procurava não
pensar na grande quantidade de pontos vulneráveis do grupo.
Na manhã seguinte, os fugitivos sofreram as conseqüências
de terem eliminado a patrulha de argros. O primeiro a perceber foi
Seridath, que de repente sentiu vontade de deixar a vanguarda e dar
uma espiada em Aldreth. O cavaleiro avistou-o na retaguarda, com
aquele mesmo olhar desenxabido, chutando pedras pelo caminho, logo
atrás do último comboio. O guerreiro achou graça.
Era um garoto miserável, aquele. Um menino que nunca chegaria
a lugar nenhum. Mas então algo chamou a atenção
do cavaleiro para as árvores atrás do ombro esquerdo de
Aldreth. Parecia que alguns troncos escuros moviam-se. Apressando o
passo, o cavaleiro desembainhou Lorguth, enquanto constatava que na
verdade não eram troncos e sim homens. Humanos degradados, sem
pele, vestidos com aqueles mesmos uniformes escuros, tendo a caveira
desenhada no peito. Um pelotão inteiro deles.
– Ataque! –
berrou Seridath, a plenos pulmões. –
Ataque inimigo!
O cavaleiro passou os últimos homens que compunham a
retaguarda e meteu-se entre as árvores. Os inimigos estavam
espalhados pelo bosque, de forma que era impossível determinar
seu número. Seridath podia somente presumir que eram vários.
Os demais sobreviventes repetiram os gritos do cavaleiro, de forma
que logo a vanguarda sabia da situação. Balgata
pigarreou, enquanto puxava a espada da bainha e a jogava da mão
direita para a esquerda. Esse era o preço. Não faria
sentido se os inimigos não fossem atrás da isca.
O capitão gritou ordens aos homens, orientando-os a agruparem
as carroças. Os comboios moviam-se lentamente, de forma que
não adiantava tentar fugir de um inimigo mais veloz que eles.
Ordenou que a tropa que compunha a retaguarda fizesse uma formação
em linha cerrada. A maior parte da tropa da vanguarda deveria recuar
e reforçar a linha, deixando a parte dianteira da caravana
praticamente exposta, contando com apenas 10 homens. Lucan não
havia voltado, de forma que era menor a chance de inimigos chegarem
pela frente, mas o arauto poderia já estar morto. Balgata
decidiu arriscar. Seridath havia sumido. A fileira de 35 homens,
formada por guerreiros e aldeões inexperientes, era mais do
que precária. Não havia como evitar que os inimigos os
flanqueassem, isolando-os das carroças que se agrupavam. O
capitão gritou:
– Homem contra homem! Arqueiros,
escolham seus alvos, linha longa no flanco direito!
Os guerreiros obedeceram, enquanto os camponeses atrapalhavam-se com
as armas, sem coordenação. Aquilo seria um massacre.
Balgata nunca fizera preces a deus algum, mas naquele momento ele fez
uma oração a Nereth, um dos Deuses da Morte. Pediu que
eles ao menos não se transformassem naquelas coisas contra as
quais lutavam. Os guerreiros se espalharam, usando as árvores
como apoio na escaramuça. Dois aldeões morreram logo no
embate, sendo mutilados a golpes de martelos de guerra. A diferença
era de três para um, mas o capitão procurava não
pensar em números. Ergueu o braço esquerdo e bradou:
– Avante,
Companhia! Vamos vender nossas vidas caro!
Como um demônio, o capitão
lançou-se entre as árvores, brandindo sua lâmina.
Equilibrando força e agilidade, Balgata já havia
derrubado quatro zumbis, quando ouviu um som agudo sibilando rente ao
seu ouvido direito. Um dardo cravou-se no tronco de árvore
mais próximo. Aqueles malditos cuspidores de setas também
estavam por lá, escondidos no interior do bosque. "E o
cachorro covarde sumiu..." pensou Balgata, referindo-se a
Seridath, enquanto desviava a trajetória de um machado de
guerra e lançava um contra-golpe, arrancando o maxilar do
zumbi que o enfrentava. A criatura tombou após o capitão
arrebentar sua testa, deixando o cérebro à mostra,
putrefato e repleto de vermes. O fedor dos mortos-vivos começava
a subir naquele bosque frio.
Os anões, orientados a não usar explosivos, lutavam com
maças e machados. Uri era de longe o mais habilidoso, usando
de seu tamanho como vantagem para mutilar os adversários. Um
dos anões foi morto com uma seta no alto da cabeça.
Eles usavam pouco equipamento de guerra, apenas peitorais de couro,
sendo que alguns nem dispunham de elmo, apenas gorros com cores
escuras. Mas eram lutadores mortais, velozes e de grande agilidade.
Dizia-se que também tinham talento nato para o arco, embora
nos últimos anos tivessem considerado o manuseio de tal arma
uma prática desonrosa.
Naquela manhã cinzenta, os únicos sons que enchiam o
bosque eram os canglores de metais, gritos de desespero e o som de
carne sendo cortada. A esses sons logo uniram-se os berros excitados
de meia dúzia de argros, que acompanhavam o pelotão de
zumbis e buscavam vingança por seus companheiros mortos.
Balgata caçava os cuspidores de setas, que estavam espalhados
de forma estratégica em torno dos humanos e anões. Por
três vezes o capitão esteve por um triz de ser alvejado
por uma das setas. Um ferimento daqueles poderia significar uma morte
lenta, dolorosa e a posterior zumbificação. O grande
guerreiro nem sabia mais as condições da sua tropa.
Havia entrado demais no interior do bosque, apenas ouvia os sons da
luta em algum lugar à esquerda. O capitão localizou
mais um daqueles monstros cinzentos e bizarros, com os dardos a
tamparem a bocarra sem lábios. Estava quase escondido atrás
de um grande tronco morto. Antes que o oponente notasse, Balgata
decepou sua cabeça, que rolou pouco sobre o chão
ressecado.
O capitão virou-se por instinto, ouvindo o som da madeira
podre ser estraçalhada. Com habilidade, um argro de tamanho
médio lançou-se sobre o grande guerreiro, brandindo um
machete. Balgata golpeou a cara da criatura com o escudo, enquanto
girava o braço esquerdo, brandindo a espada, que partiu o
machete e penetrou fundo na carne peluda do inimigo, à altura
do ombro direito. O argro uivou, mas Balgata deu um forte chute em
sua barriga e o homem-roedor bateu suas costas no que havia restado
tronco morto, mas a lâmina continuou presa. Mais setas
sibilaram perto do capitão, que girou o oponente, usando-o
como escudo. Os dardos foram penetrando em seqüência nas
costas do argro, que dava berros curtos e estridentes a cada vez que
era atingido. Balgata o empurrou, obrigando o inimigo a correr de
costas, diminuindo a distância entre ele e o lançador de
dardos, ainda usando o argro como escudo. O rosto do roedor estava
bem próximo ao de Balgata, que por um relance pôde
observar como aquele inimigo era diferente do prisioneiro executado
por Seridath. Ainda parecia um râmster, embora os dentes da
frente fossem mais pontudos, como se tivessem sido limados. Os olhos
estavam brancos de ódio e loucura. Era um inimigo robusto e
que ainda estava vivo, mesmo com uma espada presa em sua clavícula
e com pouco mais de dez setas cravadas em suas costas. Mesmo assim,
ele ainda berrava, espumava e tentava morder Balgata, que tinha
dificuldades em contê-lo.
Em um instante o argro calou-se, soltando um gorgolejo. Surpreso,
Balgata viu uma ponta negra surgir do pescoço do inimigo, que
amoleceu logo em seguida. O argro tombou, revelando Seridath, que
rapidamente tirou Lorguth do morto. Os dois, o capitão e seu
subalterno, olharam-se por meros instantes. Desprezo e indignação
trafegaram por aqueles dois fortes que fitavam um ao outro. Em
silêncio, Seridath agitou Lorguth, para retirar o sangue da
lâmina. Ainda sem embainhá-la, o guerreiro cruzou com o
capitão.
– Onde você estava? –
inquiriu Balgata.
– Aqui, lutando –
respondeu Seridath. –
Não se preocupe, capitão. Nossos
homens estão em segurança. Parece que alguém
matou mais da metade de nossos inimigos.
– Alguém? –
perguntou Balgata.
– Sim, alguém.
Seridath falava a verdade. Ele também estava perplexo. Havia
matado um bom número de argros e mais um punhado de cuspidores
de flechas. No meio das árvores, vira vultos movendo-se com
grande rapidez, mas apenas encontrou zumbis e argros despedaçados
pelo caminho. Estava tão intrigado quanto Balgata, embora
tivesse fortes suspeitas de que as mesmas criaturas aniquilaram os
inimigos em Keraz atuavam novamente e sabiam, de alguma forma
misteriosa, quem deveria ser eliminado. O rapaz continuou seu caminho
rumo à caravana, enquanto o capitão permanecia ainda
parado, em silêncio. Parecia chocado com a facilidade que
Seridath matara o argro que havia lutado tanto para viver.
– Está esquecendo sua espada,
capitão –
Seridath interrompeu os pensamentos de Balgata,
falando sem virar-se.
O capitão resmungou algo ininteligível, enquanto punha
o pé esquerdo sobre o corpo do argro morto, liberando sua
espada com um puxão violento. Balgata não limpou o
sangue da espada nos pêlos do inimigo. Ainda estava
impressionado, de forma que chegou a pensar em enterrar aquele
oponente. Mas não havia tempo para honras e gentilezas de
guerra. O capitão logo retornou à caravana. O saldo da
batalha fora pesado para um grupo tão pequeno. Ao todo 8
mortos, sendo quatro aldeões, três guerreiros e um anão.
Os demais não estavam sequer feridos. A luta durara poucos
minutos, de forma que todos estavam impressionados por terem vencido.
Lucan ainda não havia retornado, mas nenhum inimigo os
abordara pela retaguarda, e por isso Balgata acreditava que o arauto
continuava fazendo seu trabalho de vigiar o caminho à frente.
O capitão deu ordens rápidas para que os comboios
estivessem em movimento o mais rápido possível.
Seguiram no mesmo ritmo durante o dia inteiro e por toda a noite.
Continua...