Embora acreditasse impossível, Kain consegue um trabalho na Biblioteca da Cidade Suspensa. Ele sabe, porém, que o cargo é provisório e que ainda há muito a conquistar...
O tempo era confuso na Cidade Suspensa, mas pelas observações de Kain, fazia dois ou três dias desde que ele fora abrigado na biblioteca. Apesar disso, sua situação ainda era incerta. Sua admissão como intendente não era formal, de modo que logo que a Cidade Suspensa pousasse novamente, ele seria expulso da cidade. Bem, talvez expulso não fosse a palavra mais adequada e sim expelido. O viajante procurava não pensar nisso, lançando-se com afinco ao novo trabalho, procurando aprender e aplicar os conhecimentos que já possuía.
A Biblioteca era fascinante. Uma torre cilíndrica, gigantesca e cada andar era incrivelmente extenso. As escadas que levavam aos andares superiores eram retas e não acompanhavam o formato circular do edifício. Cada andar era composto de um salão de livros, uma sala de leitura e dormitórios, que poderiam ser coletivos ou individuais, como o de Kain.
Os volumes eram ainda mais fascinantes que o prédio. Um visitante inadvertido, ao abrir um livro, não encontraria palavra que fizesse sentido. Logo no primeiro dia, o Bibliotecário havia explicado que o acervo era protegido com uma magia poderosa. O conhecimento neles encerrado era destinado aos iniciados.
O salão de livros era composto por estantes de madeira escura, baús e prateleiras, onde as escrituras eram armazenadas. Os iniciados que residiam na Biblioteca, aprendizes do Bibliotecário, vagavam entre as estantes, buscando os escritos que mais lhes interessavam, para poderem desfrutá-los na sala de leitura. Alguns não aguentavam a ansiedade e já se entregavam ao vício da leitura logo que punham as mãos no livro. Por vezes, estudiosos se esbarravam por não olharem o caminho à frente.
Quando um estudioso procura um livro e não sabe como encontrá-lo, a solução sempre estará no grande catálogo em posse do intendente. Kain era consultado o tempo todo. Havia muito trabalho a fazer. Auxiliar o bibliotecário a catalogar os livros novos, conferir cada códex, cuidar para que os pergaminhos não fossem arruinados pelo clima. Quase não havia tempo para bisbilhotar o que estava escrito em cada livro que eles manuseavam.
Kain também raramente encontrava Marília. A jovem permanecia quase o tempo todo no alto da torre, no andar privado do Bibliotecário. Muitas histórias rondavam a figura da moça. Diziam que ela e o pai viveram nos campos, criando gado, quando ela era uma adolescente. Naquela época, o Bibliotecário havia decidido aposentar-se para cuidar melhor da filha. O ambiente era repleto de campos verdejantes e ar puro, bem diferente dos sufocantes edifícios, cobertos de fuligem, da Cidade Suspensa. Mas não era somente o ambiente campestre que fazia a garota feliz. Naqueles dias, Marília tinha um amor.
Era um jovem pastor que compartilhava os mesmos sonhos e aspirações que a garota. Viviam pelos campos, juntos, como irmãos. Diziam que ele era excelente músico e encantava a garota com suas melodias. Mas um dia, quando Marília estava em casa e seu amado pastoreando nos campos, um trágico acontecimento fez com que o rapaz fosse perdido para sempre. Desse desastre, Marília nunca se recuperou. Buscando afastar sua filha das lembranças amargas, o Bibliotecário revogou a aposentadoria e retomou imediatamente o trabalho na Biblioteca. Marília nunca se recuperou do choque.
Kain pensava no trágico destino da moça, enquanto dirigia-se para seu quarto. Estava muito cansado, e a história de Marília não saía de sua cabeça. Mas o que Kain queria mesmo era uma boa soneca. Ainda estava pelo meio da tarde, mas ele e o Bibliotecário haviam passado a noite e a manhã trabalhando em indexar novos itens para o acervo. Os ombros de Kain doíam e seus olhos estavam pesados. Ele teria desabado na cama se não tivesse percebido um pequeno e estranho pedaço de papel depositado sobre o colchão.
Sem demora, Kain pegou o papel e desdobrou-o, lendo com avidez o conteúdo. O viajante oscilou à beira da cama. Seus sentimentos se misturaram, revolvendo seu peito. Depois de tudo, aquele era o momento. Deveria partir sem demora.