quarta-feira, junho 22, 2016

Intriga



Chamou-me e fui sem pressa.
Vaguei entre devaneios.
Ao me aproximar, vi seus olhos
cuspirem ganchos rubros.

Cumprindo um ritual
em que palavras tomam formas agudas
Giramos num único infinito ponto.

segunda-feira, junho 20, 2016

O Assalto - Parte III de III

Ir para O Assalto - Parte II de III

 Berak observava a escaramuça, ainda sem processar o que acontecia. Não eram camponeses, e sim soldados. Não devia ter mandado vinte homens, mas cinquenta. O bandido praguejou, enquanto berrava ordens para que os demais integrantes do bando auxiliassem na defesa do portão. Uma turba correu para a confusão que se formava.
Havia alguns homens nas ameias com bestas, armas que lançavam setas mortais.
A formação circular com escudos unidos estava desajeitada e dois morreram recebendo estocadas nos espaços entre as bordas dos escudos. Os bandidos também não eram profissionais e isso garantiu a Balgata que as mortes não fossem tantas. Ele havia determinado que dois guerreiros estivessem de um lado e do outro de cada aldeão. Dessa forma, as duas brechas abertas pelas mortes foram logo fechadas, mas o círculo ficou menor. Balgata percebeu que ainda havia bandidos dentro dos portões e, se fossem rápidos, poderiam tentar empurrar os inimigos, levando a luta para aquela passagem mais estreita.
– Vanguarda, homens! Anões, retaguarda! Arqueiros, ameia!
O capitão deu ordens rápidas. Com movimentos sincronizados, os guerreiros empurraram os escudos, golpeando bandidos e assustando os cavalos daqueles que ainda estavam montados. Imediatamente o círculo tornou-se uma cunha, que quebrou o cerco de homens e pôs-se contra os inimigos que chegavam pelo portão, enquanto os anões lutavam pela retaguarda. Uri golpeou o peito de um cavalo com selvageria. O animal empinou, tendo ainda a poderosa lâmina empalada em seu corpo, enquanto o bandido que o montava foi ao chão, para ser cruelmente retalhado pelos furiosos anões. Uri largou o cabo do seu machado, deixando que o cavalo moribundo se afastasse com a arma, e puxou uma adaga que estava embainhada às suas costas. Aldreth e outros arqueiros faziam suas flechas estalarem nas pedras da ameia. E Thin quase foi alvejado, tendo se abaixado com rapidez, enquanto as pontas de metal ricocheteavam na rocha. Guerreiros e anões gritavam em fúria, enquanto camponeses choravam ou faziam coro aos furiosos gritos. Guerreiros nasciam naquela desesperada escaramuça.
“Nibala!” pensou Balgata. “Onde está aquele maldito?” Tiveram a surpresa como aliada, mas estavam em minoria e seriam aniquilados, ainda que levassem boa parte dos inimigos com eles. Os bandidos nas ameias despejavam setas sobre os atacantes, que já estavam acumulados no portão. O capitão sentiu a fisgada de uma seta que penetrou em seu ombro direito. O braço que sustinha o escudo fraquejou, mas o guerreiro deu um berro, enquanto golpeava o oponente à frente num movimento transversal, decepando sua orelha direita e fazendo a espada penetrar na junção do pescoço com o ombro. O guerreiro ao lado de Balgata cedeu, desabando como se tivesse sido puxado para o chão. Uma lança havia feito um rombo em seu elmo. O inimigo puxou de volta o cabo da lança, tentando soltar a ponta que estava enganchada no elmo do guerreiro da Companhia. O capitão pisou no cabo e girou a espada para a direita, de forma que o corte horizontal foi tão rápido que sibilou, atingindo o inimigo na têmpora direita. A espada já tinha perdido o fio, mas a lâmina atravessou de um lado a outro, fazendo o sangue ser lançado como um vapor escarlate, tingindo de vermelho os outros bandidos. Os homens recuaram e Balgata adiantou-se. Espumava como um cão raivoso e sua visão tornava-se um borrão, enquanto ele distribuía golpes cegos.
A razão voltou à mente de Balgata quando ele ouviu um grito medonho. Manteve sua posição, sem se virar. Os oponentes de repente mostraram uma expressão de espanto e horror em seus rostos para, logo depois, tentarem fugir, sendo mortos pelas costas ou por espadas, ou por flechas. Os bandidos que estavam mais próximos aos portões tentaram fechá-los, mas foram impedidos por uma turba de criaturas horrendas, putrefatas, que invadiam a cidadela com uma rapidez assombrosa. Corpos reanimados pelo maligno poder de Lorguth, a espada das sombras.

Continua...

sexta-feira, junho 17, 2016

A casa do girassol vermelho - A loucura arquitetada

Murilo Rubião, se fosse vivo, teria completado 100 no primeiro dia deste mês. Um escritor com uma obra não muito extensa, mas extremamente vasta. Tendo se dedicado exclusivamente ao gênero conto, Murilo Rubião é um dos grandes nomes do realismo fantástico no Brasil. E por isso resolvi explorar um dos seus livros. O escolhido foi  A casa do girassol vermelho.
O livro reúne os contos "A Casa do Girassol Vermelho" (1947), "Alfredo" (1947), "Marina, a intangível" (1947), "Os três nomes de Godofredo" (1947), "Memórias do contabilista Pedro Inácio" (1947), "Bruma" (1953), "D. José não era" (1953), "A lua" (1953), "A armadilha" (1965), "O bloqueio" (1974) e "A diáspora" (1998). Cada um deles caberia uma resenha robusta. A obra de Rubião não é fácil, longe disso. Sua escrita é impecável, direta, sem floreios ou maneirismos. Seu narrador é neutro, quase imperceptível. Os personagens, porém, parecem figuras do barroco mineiro que invadem o texto literário. Há grandes paixões e loucas convicções. Todas,porém, marcadas por uma forte repressão, que pode vir de uma figura externa, como no caso do conto que dá título ao livro, ou do próprio protagonista, como é possível ver em "Bruma", "A lua" e "Os três nomes de Godofredo".
Apesar da marcante repressão assinalada em muitos contos, Rubião evita moralismos e procura retratar a natureza humana com toda a sua incoerência, Uma natureza repleta de loucura, mas tal insanidade é arquitetada com lirismo e equilíbrio. O narrador de Murilo Rubião claramente joga um xadrez literário com o leitor, estabelecendo relações de claro-escuro que novamente remetem ao Barroco.
Vale registrar aqui o tom de galhofa do narrador do conto "D. José não era", dando à narrativa um tom leve e muito bem humorado.
Não posso deixar de mencionar o papel da realidade nos contos presentes em A casa do girassol vermelho. Como se fosse uma personagem qualquer do livro, a própria realidade é torcida e por vezes abandonada, de forma que a narrativa ganha contornos oníricos. Por vezes, a realidade retorna, como um defunto, ou como as mulheres de Godofredo, de forma a sempre lembrar ao leitor de que - infelizmente - o mundo do real continua sendo mais absurdo que qualquer ficção ou fantasia.
Assim, com um texto impecável, evocações oníricas e complexas relações de sentido, Murilo Rubião oferece ao leitor em A casa do girassol vermelho uma verdadeira incursão a um mundo de "loucura arquitetada", vívida e, sobretudo maravilhosa.

Ficha Técnica
Título: A casa do girassol vermelho
Autor: Murilo Rubião
Ano: 1980
Páginas: 62
Idioma: português
Editora: Ática

segunda-feira, junho 13, 2016

Coerência


Para Pâmela Machado.




Se por falar de amor eu me atrapalho
Não é engano ou falto entendimento
Pois quando estou sem ti um dia é um ano
E em tua presença um mês mero momento.

Feliz dia dos namorados! S2

quarta-feira, junho 01, 2016

Para além dos números

Sei que os números impressionam. É assim em qualquer lugar. Todo mundo quer a casa cheia, principalmente se estamos falando de eventos culturais. E com a Biblioteca isso não é diferente. Quanto mais pessoas aparecem, mais gente será alcançada depois, quando essas pessoas falarem do que viram aqui.
No dia seis de fevereiro deste ano, porém, tive uma experiência que me valeu por um público de cem pessoas. A Biblioteca estava com pouca procura, não tínhamos dado nenhuma oficina na semana. Eu já me conformava de que ninguém apareceria numa sexta à tarde. 
Mas então fui avisado que duas pessoas, mãe e filha, tinham vindo para a atividade. 
Sempre fico nervoso antes de contar uma história ou fazer uma oficina. E não foi diferente nesse caso. Procurei disfarçar da melhor forma o nervosismo e segui lendo “Que bicho será que fez a coisa”, do Ângelo Machado. A menina, de seis anos, decidiu desenhar uma borboleta e imaginou um cocô quase invisível. Parecia o pó que elas soltam das asas.
Quando a oficina estava quase no fim, a mãe pediu para a filha se apressar, porque elas ainda teriam que comprar o material escolar. A menina então pediu: “A gente pode voltar aqui depois?” E a mãe disse que sim. “Hoje, depois de comprar material?” Aí a mãe falou que não daria tempo. A menina não desistiu: “A gente volta amanhã, então?” E a mãe respondeu: “Amanhã é Carnaval, eles não abrem.” Ao que garanti que estaríamos abertos, sim. Os olhos da menina brilharam de esperança.
A mãe disse que já tinham compromisso para o final de semana, mas garantiu para a menina que voltariam à Biblioteca o quanto antes. E os olhinhos da filha não deixaram de brilhar.
Assim como os meus, que brilham até agora.

Texto originalmente postado no Facebook em 06/02/2016. Versão original aqui.