No final de 2019 e início de 2020, estive participando do curso à distância de curta duração Infâncias e Leituras, promovido pela parceria entre o Polo Itaú Social e o Laboratório Emília de Formação. Durante o curso, fomos instigados a refletir sobre diversos temas afins. Dentre eles, as bebetecas. Confesso que me senti especialmente desafiado, apesar de minha experiência de 10 anos de atuação como mediador de leitura para a infância. Afinal, o que seria uma bebeteca? Como ela se constitui? Quais são suas premissas e valores?
As bebetecas ainda são um conceito novo. Afinal, existe um senso comum que pressupõe que um bebê, por não saber ler, não seria um potencial leitor. Ainda que no meio acadêmico que pesquisa a infância e seus atravessamentos já exista uma fortuna crítica sobre o tema, a sociedade como um todo ainda carrega diversos preconceitos sobre os bebês e suas necessidades.
Uma das maiores referências no incentivo à leitura na primeira infância, Yolanda Reyes destaca, com muita propriedade, a necessidade de apresentarmos a palavra aos bebês quando estes ainda estão no ventre materno. Conversar com o bebê ou ler para ele durante a gestação não é um gesto vazio de sentido. O pequeno ser em formação dentro da barriga da mãe já se relaciona com o mundo externo através do corpo dentro do qual ele se desenvolve.
É importante observar também que o bebê é uma pessoa em franco desenvolvimento. Reyes, em seu livro A Casa Imaginária: leitura e literatura na primeira infância, aponta pesquisas que indicam que na primeira infância, as crianças apresentam um enorme potencial cognitivo, devido à enorme neuroplasticidade. Ou seja, o cérebro da criança, até seus seis anos de idade, está construindo sua rede sináptica e por isso sua capacidade de adaptação é enorme. E basta apenas observarmos uma criança para perceber o enorme avanço que é crescer. Até os 5 anos, a criança aprende uma enorme quantidade de habilidades, sejam elas motoras, cognitivas ou linguísticas. Não é à toa que uma criança tem muito mais facilidade de aprender um novo idioma que um adulto.
Portanto, nada mais natural que oferecer livros para os bebês, para que os mesmos possam adquirir maior familiaridade com esse objeto. Yolanda Reyes inclusive defende que não devemos temer que a criança rasgue ou morda o livro. Sua relação com o mundo é extremamente sensorial. Aprendendo com os sentidos, a criança se integra ao universo ao seu redor. Por ser extremamente explorador, o bebê irá manusear o livro à vontade, até se familiarizar com o mesmo.
Nesse ponto, acredito que é importante destacarmos o caráter interativo que o livro tem. É um objeto altamente manuseável, encerrando em si mesmo a metáfora do tempo. Com um livro em mãos, a criança observa o passar das páginas e vai percebendo naturalmente que existe uma sequência e que esta pode inclusive ser subvertida. Ao ler, avançamos as páginas, mas podemos muito bem retornar, ou seja, simbolicamente nós voltamos no tempo ao voltarmos as páginas.
Outro ponto importante a ser destacado é que os bebês aprendem pela imitação. Ao observar os adultos e crianças mais velhas lendo, eles também demonstrarão vontade de segurar um livro, passar as páginas e "ler", mesmo quando ainda não estão alfabetizados. E tal brincadeira irá se repetir inúmeras vezes.
Assim sendo, é fundamental inserir os bebês no universo letrado. E não estou falando de uma alfabetização precoce. Apenas estou apontando que os livros não devem ser poupados aos bebês, bem como as leituras em voz alta, seja de narrativas, seja de poemas. A poesia, por ter musicalidade e ritmo, é uma fonte rica de aprendizado para os bebês. E livros, muitos livros.
A criação de bebetecas ainda é um grande desafio. Trabalhei por anos na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil. Nela, pude constatar como atendemos ainda de forma muito precária os bebês e suas famílias. Por exemplo, além de acervo e mediadores, precisamos ter estrutura física para melhor atender esse público, como fraldários, espaço família, mobiliário adequado, entre outros elementos fundamentais.
Além disso, a produção literária para bebês ainda é escassa, se compararmos a outros segmentos literários. Carecemos de mais livros, fora do aspecto paradidático. Precisamos de livros que busquem explorar de forma criativa, sensível e inteligente o universo da primeira infância.
A carência, porém, esconde também uma enorme potencialidade. Há todo um universo a ser explorado, na escrita, na ilustração, no projeto gráfico, na pesquisa de novos materiais que sejam amigáveis aos bebês. A materialidade na primeira infância é fundamental. Nada de telas e suas barreiras de vidros. Os diversos materiais que podem compor um livro, as texturas, as superfícies, os cheiros e sabores são verdadeiros parques sinestésicos. E não é só isso. A primeira infância nos convida à criatividade, a romper os parâmetros da linguagem. E nos convida também a dialogar com o passado, com a tradição oral e suas cantigas, parlendas, trava-línguas e quadrinhas.
Que nós, mediadoras e mediadores possamos entender a enorme responsabilidade que temos. Que possamos entender que somos convidadas e convidados a oferecer o que há de melhor para a primeira infância. O desafio é também uma chamada à aventura, à experimentação. As bebetecas devem oferecer o que há de melhor. E com as pessoas mais bem preparadas profissionalmente, além dos melhores e mais seguros móveis. Sem nos esquecermos dos melhores livros. Os bebês merecem isso.