sexta-feira, novembro 15, 2013

Anardeus - No calor da destruição: um épico pós-moderno

Isabel e Anardeus são irmãos gêmeos. À proporção que Isabel é bela, querida e desejada, seu irmão é feio, rejeitado e desprezado. Enquanto Isabel sofre com o calor, Anardeus precisa se cobrir com vários agasalhos. Não bastasse o desprezo alheio, Anardeus também é acometido por estranhas visões, que antecedem acontecimentos terríveis e inacreditáveis. 
Assim, o leitor testemunha o desenrolar deste épico fantástico de Walter Tierno. Construindo um texto sóbrio, econômico e equilibrado, Tierno guia nossa leitura através de um universo calcado no desequilíbrio. Sarcástico e niilista, o narrador, na figura do próprio protagonista, tece uma trama em que o total desprezo pelo mundo e pelas coisas está presente com toda a força. O mais interessante é que o desprezo de Anardeus não é resposta ao desprezo que todos lhe atiraram. Ele tem nojo do mundo e o despreza desde seu nascimento, quando descobriu-se com o dom de analisar o mundo ao seu redor e captar sua malícia.
Anardeus, porém, não é o único narrador. Os capítulos intercalam as vozes de outras personagens, conferindo um maior dinamismo à leitura e garantindo uma veracidade ainda maior e mais chocante ao mundo desenhado por Tierno.
Por fim, a primorosa ilustração reforça ainda mais a carga dramática do ambiente caótico que habita o interior dos personagens e que, gradativamente, irá expandir para além dos mesmos, invadindo todo o cenário ao redor.
Com um texto dinâmico, repleto dr ironia e personagens fascinantes, Anardeus - No calor da destruição é um épico angustiante, perturbador e certamente fascinante.

Ficha Técnica
Edição: 1
Editora: Giz Editorial
ISBN: 9788578552053
Ano: 2013
Páginas: 181


sexta-feira, novembro 08, 2013

Cira e o Velho: Onde mito e verdade se encontram

Conheci Walter Tierno no evento Livros em Pauta, ocorrido dia 19 de outubro de 2013. Fiquei impressionado com a postura sóbria, jovial e humilde desse escritor que tem muitos anos de experiência na área editorial e da publicidade. Fiquei também muito interessado quando soube que esse autor aborda o folclore brasileiro, pois eu também o abordo como matéria para meus textos, em especial no livro O Medalhão e a Adaga

Deixei o evento com dois livros de Tierno: Cira e o Velho e Anardeus. Comecei então a leitura do primeiro e já fiquei absorvido pelo narrador, por seu tom intimista de quem está nos contando um "causo". Outro elemento que me cativou foi a referência ao jogo do bafo, que brinquei na minha infância. Já completamente seduzido pelo texto, ingressei em um universo situado no Brasil Colônia do século 17, mundo povoado por criaturas mágicas, homens inescrupulosos e poderes ocultos. E habitado, principalmente, por Cira.

O texto é dividido em três grandes blocos narrativos. A primeira, mais fragmentada, é assumida pelo narrador do romance, em primeira pessoa. Acompanhamos os relatos desse narrador em sua tentativa de descobrir cada vez mais sobre a personagem Cira, filha de Cobra Norato com uma poderosa feiticeira chamada Guaracy. Assim, o narrador vai gradativamente nos introduzindo a um mundo fantástico, onde as pessoas vivem mais do que o normal, por mero capricho da Morte e entidades sobrenaturais existem, escondidas no submundo de nossa sociedade urbanizada. 

O segundo bloco narrativo narra a missão de Domingos Jorge Velho, o mesmo personagem histórico por trás da destruição do Quilombo de Palmares, para matar os filhos de Cobra Norato, a mando de Maria Caninana. Neste bloco conhecemos toda a ganância e mesquinhez do Velho.

Já o terceiro bloco narra o tema central do romance, que é a vingança de Cira contra o Velho. Essa vingança que concede ao livro o seu título. Descobrimos que Cira é uma personagem relativamente simples, embora viva em um mundo denso e complexo. Representando a inocência natural, Cira é feroz com os inimigos e benigna com os amigos. Seus sentimentos são francos, diretos. Talvez seja por isso que a protagonista do romance se aproxime tanto com o ideal heroico grego. Sem entregar demais o enredo, acredito que a missão de Cira, ou sua vingança, se aproxime também do heroísmo grego.

Aí se encontra toda a genialidade de Walter Tierno, que mescla com maestria elementos clássicos com a nosso folclore rico, dando forma a uma narrativa épica. Seus personagens são inesquecíveis, em especial Maria Caninana e Cobra Norato, com sua dualidade fáustica. A forma que Tierno utiliza para atualizar os elementos folclóricos lembra um pouco o que Neil Gaiman faz com o excelente Lugar Nenhum. Ainda assim, não devemos comparar os dois autores, pois a gravidade que Tierno concede ao seu romance, com seu tom épico, se afasta em muito da abordagem de Gaiman.

Novamente, sem querer entregar o enredo, digo apenas que o desfecho do romance é sem dúvida uma surpresa que passeia do agradável ao terrível e confirma todo o poder da criatividade desse autor.

Com um texto atual, cheio de ritmo e com muita dose de ação, Cira e o Velho mostra a força da nossa literatura de fantasia que, sem elfos, gnomos ou dragões, tem um rico universo a oferecer.

Ficha Técnica
Edição: 2
Editora: Giz Editorial
ISBN: 9788578550851
Ano: 2010
Páginas: 232

Página do livro no site do autor: http://www.waltertierno.com/p/cira-e-o-velho.html

terça-feira, novembro 05, 2013

Caminho da Sombra

Esgueirava pelos cantos. Arrastava-se por descaminhos. Era um reflexo de existência, a ruína de um "eu". Uma alma morta. Seguindo por trilhas dúbias, apenas dava prosseguimento a sua existência. Não sabia, porém. Apenas prosseguia.

Havia uma certa urgência em seu caminhar. Um certo motor secreto, como uma energia feita do puro breu, dos sentimentos mais nefastos. A decomposição gerando algo. Um cenário, no mínimo.

Aquela era apenas uma sombra. Disforme e órfã, essa massa escura deslizava por vãos esquecidos. Alimentava-se de pedaços de sonhos quebrados. Cada fragmento fortalecia seu interior, tornava-a mais escura e poderosa, inchava suas entranhas, inflava seus contornos. 

Ignorava o tempo de sua própria existência. Sim, eram quase séculos que essa coisa, aborto de vida, vagava pelos cantos escuros do mundo. A frustração personificada, que falhava até mesmo no desejo de ser.

Lentamente, tomou força e fôlego. Singelamente, sentiu-se. Percebeu-se. Era, afinal. Estilhaços de desejos devorados se recombinavam e borbulhavam em seu âmago. Aqueciam suas entranhas. E tal calor convulsionava o núcleo da Sombra. Criava rastros fumegantes em seu caminho, queimando o solo já escuro e crestado, soltando tímidas faíscas, revelando ocultos poderes.

E quando se deu conta, já surgia em si uma fagulha. Duas, várias. Uma profusão de desejos frustrados eram agora um furioso turbilhão de fagulhas que se ajuntavam em labaredas, queimando as entranhas da Sombra, que já não podia mais conter o calor que a consumia. 

E a Sombra, imersa em um profuso emaranhado de labaredas, morreu, consumida pelos sonhos que lhe concederam a existência. Dessa poderosa explosão brotaram asas douradas, que se abriram para além dos cantos do mundo. Brilhantes como a Aurora, as asas alçaram voo e revelaram uma ave feita de luz. Uma Fênix. E aquela ave, nascida da convulsão de diversos sonhos, galgou os ares, rumo a outros mundos.