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quarta-feira, novembro 27, 2024

Ainda estou aqui - Um brado por justiça



Vinte de janeiro de 1971. Seria um feriado como outro qualquer, não fosse a prisão clandestina, o sequestro e desaparecimento de um homem. E o crime foi perpetrado por agentes do Estado Brasileiro. Rubens Beyrodt Paiva, ex-deputado cassado, engenheiro, foi rendido em sua casa por militares da aeronáutica e conduzido para interrogatório. A família não imaginava que nunca mais o veria.

Esse é o fato sobre o qual gira o livro Ainda estou aqui. Um acontecimento histórico, investigado e documentado. O que mais assusta é que, décadas depois, o caso está longe de ser solucionado. Afinal, ele atesta crimes realizados por agentes do Estado, com a convivência do regime vigente. O que se sabe do caso é que Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas sofridas. Seu torturador e assassino, já falecido, foi devidamente identificado. A localização do corpo, porém, ainda é um mistério.

O livro, escrito por Marcelo Rubens Paiva, renomado e premiado escritor, filho de Rubens Beyrodt Paiva, nos guia por memórias pessoais, registros históricos e depoimentos, de forma que o autor busca montar um quebra-cabeças em que há peças faltando, praticamente impossíveis de serem recuperadas. Outro ponto importante da narrativa é a luta de Eunice Paiva, viúva da vítima. Uma mulher forte, assertiva, que aos 41 anos se viu sem o marido, com cinco filhos para cuidar. Decide então batalhar duro, estudar Direito. Torna-se uma referência no Direito dos Povos Indígenas, com contatos como Ailton Krenak.

Por fim, apresentado de forma entrecortada, está o doloroso processo do surgimento e evolução do Alzheimer de Eunice Paiva. O autor narra o adoecimento dessa mãe que sempre foi referência de mulher forte e decidida. Uma mulher prática. Não é sem pesar que ele descreve os sintomas e estágios de evolução da doença.

É um livro sobre memória mas também sobre esquecimento. Uma narrativa que busca, de forma contundente e encarnecida, reconstituir todo o cenário e contexto do desaparecimento de Rubens Paiva. É também uma obra sobre os melhores anos de um menino, e como sua vida foi arrancada desse ambiente idílico e lançada rumo a uma nova realidade. E a crueldade da vida é tão grande que além de ter perdido o pai no início da adolescência, o autor tem que testemunhar também o definhamento da mãe, seu desaparecimento em vida. Apesar disso, Eunice declara, de tempos em tempos: Ainda estou aqui. É um brado de protesto contra o próprio sumiço dentro de si. Uma declaração de vida e resiliência.

Trata-se, portanto, de um intrincado emaranhado de narrativas, guiadas magistralmente por um artífice da palavra. Marcelo Rubens Paiva tem uma prosa cativante, um misto de confidência com testemunho, narrado na melhor forma. Seria um livro árido, não fosse o trabalho excelente que o autor faz da linguagem, relacionando acontecimentos, lembranças, notícias e depoimentos. Uma obra que busca lançar luz a um evento sombrio e também procura ainda que um mínimo senso de justiça.

Como apêndices, estão a denúncia do crime contra Rubens Paiva e seu acolhimento judicial. Realizei a leitura de ambos com grande pesar. É de fundamental importância que esses apêndices sejam de conhecimento geral, por um mínimo de reparação histórica. Esses documentos expandem a experiência de leitura e tornam o caso ainda mais palpável, ao oferecer detalhes do que já foi apurado sobre o acontecimento, o que contribui para a sua memória histórica

Por fim, uma nota que aponta que o caso está suspenso pelo STF. O que mostra que o brado por justiça continua a morrer na boca de todos aqueles afetados pelos crimes hediondos contra a humanidade promovidos pela sanguinária ditadura iniciada em 1964.


segunda-feira, outubro 03, 2022

História universal da infâmia - uma volta ao mundo pela sua sordidez



Há livros em que o texto nos guia por contos que apresentam personagens infames e pérfidos. Um exemplo é justamente História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges. Os contos são quase crônicas, quase perfis literários dessas personalidades odiosas, todas tendo feitos memoráveis nos diversos continentes da terra.

Borges é um mestre do texto e nos envolve com seu discurso pretensamente neutro. Nessa neutralidade ele apresenta os feitos pavorosos de uma escória que sofre e faz sofrer. Na edição que eu li há um longo ensaio, assinado por regina L Zilberman e Ana Mariza R. Filipouski, e que aborda a questão da origem da infâmia ocorrer por conta da opressão de classes. Ao mesmo tempo, aborda a fascinação que Borges tem pelo romance policial e assim ele aproveitaria o mote do gênero para escrever esses contos. Esse mote seria justamente da origem dos males ser condicionada à opressão das classes mais pobres. Ou seja, haveria um falso engajamento político nessa obra de Borges.

O livro tem ainda dois prefácios redigidos pelo autor, onde ele apresenta seus contos e alega que o motivo de tê-los escrito ser a simples e pura diversão.

Os últimos textos do livro são pequenos excertos redigidos a partir de livros orientais, onde Borges relata casos de magia com reviravoltas surpreendentes. Antes dele há ainda o conto enigmático "O homem da equina rosada", que narra um caso de desafio e morte ocorridos nos pampas argentinos.

O livro é curto e dinâmico, com uma linguagem altamente imagética, visual, a qual bebe claramente no cinema. A ação e a rapidez ditam o tom.

Com uma linguagem hipnótica e cativante, o domínio da literariedade e da ação cênica, Borges nos concede uma experiência ímpar com o livro História universal da infâmia. Um livro que é aula de cinema e literatura.


Ficha técnica

História Universal da Infâmia

Jorge Luis Borges

Tradução de Flávio José Cardoso

ISBN-13: 9788525004956

ISBN-10: 8525004952

Ano: 1989 

Páginas: 77

Idioma: português

Editora: Editora Globo

sexta-feira, novembro 26, 2021

Água de Barrela - Sangue e dor na luta por um futuro


Quem foram nossos ancestrais? O que fizeram? Como viveram? Se fosse possível traçar nossas árvores genealógicas e resgatar a história de cada pessoa nelas, o que descobriríamos? Encontraríamos atos heroicos ou crimes hediondos? Será que nos arrependeríamos de buscar as histórias dessas pessoas?

O romance Água de barrela talvez tenha surgido de alguma das perguntas acima. Escrito por Eliana Alves Cruz, este romance histórico é um primoroso trabalho de pesquisa histórica e criação literária. De início, não sabia o que era barrela. Posteriormente, soube que é uma mistura feita para alvejar as roupas, usado pelas mulheres escravizadas para lavar as roupas de seus senhores. Após a declaração da abolição, essas mesmas mulheres continuaram nesse trabalho, como se esse fosse o destino inevitável para elas. 

O livro me encantou já de início, quando vi árvore genealógica que vai de Ewá (Helena), passando por Anolina, Martha, Damiana, Celina, até chegar à Eliana, a autora desse romance histórico que mostra o Brasil a partir da Bahia e das vidas de uma família marcada pela escravização.

Enquanto lia, meus olhos da mente criavam imagens de um país que se transformou de um império colonial a uma república de fachada, como se os tais valores republicanos nada mais fossem do que a tinta que caia um sepulcro. Afinal, essa democracia tão defendida pelos maiores intelectuais brasileiros não alcançou a grande maioria da população, que continuou vítima da exploração, da violência e do preconceito.

Com o objetivo de ultrapassar as barreiras sociais e alcançar ainda que o mínimo de liberdade e dignidade, uma família recorreu à educação. Apesar disso, foi a duras penas e muita roupa lavada que as matriarcas Martha e Damiana foram mudando os destinos dessa família.

Foi através desse livro que conheci Juliano Moreira, médico, um dos maiores do seu tempo. E negro. também conheci Matheus Cruz, grande mecânico, que até os 83 anos lecionava no Liceu Artes e Ofícios.

Mas esse livro é principalmente sobre mulheres. Sobre Martha e Damiana, que vendendo quitutes e lavando roupas foram buscando um futuro melhor para as filhas. Sobre Dodó, explorada até a morte pelo mesmo clã que no passado escravizou, torturou e estuprou suas ancestrais. É sobre Celina, corajosa professora, capaz de enfrentar o risco do cangaceiro Lampião, sem no entanto esmorecer.

Ao terminar o romance, senti culpa por minha branquitude, pelos privilégios estruturais que carrego na minha pele. Senti tristeza por saber que o país continua matando jovens negros. Senti também uma profunda comoção ao ver a justiça de Xangô, que nos descendentes de Ewá, Anolina, Martha, Damiana e Celina elevou essas heroínas, imortalizando-as nesse livro potente e profundo.


Ficha Técnica

Água de barrela

Eliana Alves Cruz

ISBN-13: 9788592736408

ISBN-10: 8592736404

Ano: 2018 

Páginas: 322

Idioma: português

Editora: Malê

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/agua-de-barrela-743875ed834219.html

sexta-feira, julho 23, 2021

O Crime do Cais do Valongo - O poder das vozes de além




É difícil falar de um livro tão complexo e rico como O crime do Cais do Valongo. Escrito como uma narrativa composta, com mais de uma voz, o texto de Eliana Alves Cruz nos brinda com um enredo envolvente, com motivo histórico, mostrando que muitas de nossas mazelas são antigas.

No romance, conhecemos Nuno, um rapaz jovem e alegre, amante da vida e muito esperto. Por saber que, sendo mestiço, tem poucas chances de ascensão social, Nuno busca nos negócios uma chance de melhorar sua vida. O problema é que o jovem tem uma dívida com um português, aparentado com o Intendente Geral de Polícia, que responde diretamente a D. João VI.

A situação se complica para Nuno quando o credor da dívida aparece morto e seu corpo, mutilado. Temendo que a culpa caísse sobre ele, o jovem inicia uma investigação por conta própria, enquanto se aproxima do responsável pelo caso, o intendente em pessoa.

Além da voz de Nuno, temos também Muana Lómuè. Ela foi escravizada e trabalhava para a vítima. Moçambicana, Muana tem poderes que os olhares europeus não conseguem explicar. Muana fala de seu povo, macua, e sua Grande Mãe, Nipele. Muana tem capacidade de enxergar os mortos. Há outras duas personagens que trabalhavam para a suposta vítima: Roza e Marianno. Cada um deles tem características marcantes e poderes misteriosos.

Enquanto acompanhamos as vozes de Nuno e Muana, vamos nos questionando qual seria o verdadeiro crime. Não seriam os horrores provocados pelos traficantes das pessoas escravizadas? Cada capítulo se abre com um anúncio de jornal e alguns deles são de pessoas vendidas para o tráfico de escravizados. Os anúncios foram de fato consultados em documentos dos jornais do Brasil colonial. E mostram a vileza dos portugueses em negociar vidas inocentes, inclusive crianças. 

Um elemento interessante é que a autora com sua obra homenageia o romance policial, com reviravoltas e mistérios que envolvem cada personagem. O livro, porém, não é um romance policial e sim uma obra de denúncia social e um romance histórico. Uma obra poderosa sobre a resistência de povos que foram retirados à força de sua terra, mas que lutaram para que sua terra não fosse arrancada deles.


Ficha Técnica

O crime do Cais do Valongo

Eliana Alves Cruz

 Nenhuma oferta encontrada

ISBN-13: 9788592736279

ISBN-10: 8592736277

Ano: 2018 

Páginas: 202

Idioma: português

Editora: Malê


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-crime-do-cais-do-valongo-782206ed787048.html

sexta-feira, junho 18, 2021

Ouvindo: A menina que roubava livros - Markus Zuzak


Desde Esperando Bojangles, eu fui cooptado para o universo dos audiolivros. Tem sido uma experiência mágica. Viajei pelo Oriente com As Mil e uma Noites, fui a um porão suíço em O Aquário e conheci relatos de experiências transcendentais em A Profecia Celestina e A Décima Profecia. Agora, estou retornando à Alemanha Nazista nessa jornada de infância, amizade, sacrifício e Morte. Este é o meu reencontro de mais de dez anos depois com A menina que roubava livros.


Ficha Técnica 

A Menina que Roubava Livros

Markus Zusak

 Nenhuma oferta encontrada

ISBN-13: 9788580574517

ISBN-10: 858057451X

Ano: 2013 

Páginas: 480

Idioma: português

Editora: Intrínseca

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-menina-que-roubava-livros-7ed410101.html

sexta-feira, março 19, 2021

As lendas de Dandara - Uma heroína nas bordas da História



Dandara é uma figura misteriosa. Descrita como a companheira de Zumbi dos Palmares, pouco se sabe dela. A partir dessa escassez de informações, a escritora e cordelista Jarid Arraes resolveu cercar a heroína de magia e dar-lhe o caráter épico que ela merece. Assim, nascem As lendas de Dandara.

Com um ar mítico, a narrativa nos leva pela vida de Dandara, desde seu nascimento até sua "morte", ou melhor, seu retorno à essência divina. A protagonista desse romance juvenil é uma mulher determinada, destemida e cercada de um poder transcendente. Dandara é uma figura de muita força e com um talento nato para a guerra.

Ao ler a obra de Jarid Arraes, encontrei elementos muito interessantes. O primeiro é a origem de Dandara. Filha de Iansã, Dandara foi concebida pela iabá* como enviada para a libertação do povo negro, que se encontrava escravizado. Assim, a personalidade de Dandara foi sempre a de guerreira, de mulher questionadora e inventiva. A ausência da figura masculina na concepção de Dandara é emblemática, pois assim ela se coloca como uma figura divina, da encarnação da vontade de Iansã, da personalidade guerreira da poderosa iabá.

É importante destacar que a narrativa não assume uma perspectiva histórica. Apesar de haver um elemento biográfico, marcado por fatos históricos (afinal, é a vida de uma pessoa histórica), a autora e narradora faz questão de construir uma trama épica, com heroísmo e fantasia. Um dos pontos de destaque nessa construção está na própria personalidade de Dandara, como uma enviada divina, com a missão de liderar o povo negro na luta contra os escravocratas e na proteção do poderoso quilombo de Palmares.

Outro elemento que me chamou atenção foi como Dandara foge aos padrões físicos que cercam o imaginário contemporâneo. No lugar de uma figura esguia e esbelta, temos uma mulher de quadris largos e membros grossos. Uma mulher que no seu corpo também desconstrói os padrões dominantes.

Não posso deixar de comentar também que há uma pitada de romantismo no livro. Apesar de coadjuvante, Zumbi dos Palmares recebe algum destaque, principalmente em suas conversas com Dandara, nos encontros amorosos dos dois e na exigência da guerreira pelo merecido reconhecimento de suas capacidades como líder do exército de Palmares.

Com muita ação e heroísmo, apresentando uma Dandara que, embora divina, também não deixa de ser humana, As lendas de Dandara aparece como uma obra seminal, importante para a construção de um outro imaginário, com a importante mensagem de que um outro mundo é possível. E que uma outra História também precisa ser contada.

* Feminino de orixá.


Ficha Técnica:

As lendas de Dandara

Jarid Arraes

ISBN-13: 9788529301945

ISBN-10: 8529301943

Ano: 2016 

Páginas: 128

Idioma: português

Editora: Editora de Cultura


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/as-lendas-de-dandara-517636ed639273.html

sexta-feira, maio 01, 2020

O homem que amava os cachorros - A Utopia Assassinada

Entre a História e a ficção literária existe uma tensão, que é ainda mais patente em romances históricos. Quando estes assumem um cunho biográfico, então, tal tensão pode ser quase insuportável. Afinal, temos de um lado a veracidade, o compromisso com os fatos, por mais absurdos que estes possam parecer; e do outro, a verossimilhança, ou seja, uma aparência de verdade.

O romance O homem que amava os cachorros, do cubano Leonardo Padura, caminha nessa corda bamba, sem perder o equilíbrio. A obra conta a da vida e da morte de três homens: Leon Trótski, Ramón Mercader e Ivan Cárdenas, sendo o último o fio condutor do romance, a testemunha que recebe as confissões atravessadas de um misterioso homem e se lança na busca pela verdade.

Já no prefácio do livro, o mesmo é definido como um "thriller histórico", estabelecendo assim a natureza dúbia desse texto que, já de início, apresenta seu narrador a partir de um ponto de vista intimamente ligado a suas personagens. Assim, quando começamos a ler sobre a vida de Trótski, temos contato com um homem aturdido, angustiado com as injustiças e perseguições que sofre.

Ao mesmo tempo, os capítulos destinados a Mercader mostram um jovem idealista, com uma relação complicada com a mãe e apaixonado por uma militante comunista cuja devoção aos ideias beiram à loucura. A proximidade que a narrativa estabelece entre nós, leitores, e seus protagonistas é de uma perturbadora intimidade, de forma a ser impossível buscarmos lados.

Não deixa de ser um fato, porém, que o romance apresenta lados. Em uma ponta está Leon Trótski, antigo líder do Exército Vermelho e um dos maiores líderes da Revolussão Russa. Na outra ponta está Ramon Mercader, o obscuro soldado da Guerra Civil Espanhola que será lentamente forjado para ser o assassino do ex-líder soviético. E no centro está Cárdenas, o narrador, responsável ficcional por construir uma unidade nessas narrativas convergentes.

Mas se o romance apresenta lados, como seria impossível para nós, leitores, assumir um posicionamento? Bem, para este leitor foi impossível. Tanto Trótski quanto Mercader são por demais humanos, repletos de paixões e defeitos, sendo que nenhum dos dois é retratado como um abjeto vilão. Ambos aparecem como pessoas que decidiram sacrificar tudo - até mesmo a família - por seus ideais.

Outra figura histórica que aparece com peso no romance é o próprio Josef Stálin. O líder soviético nunca surge pessoalmente, mas sua figura está sempre presente nas sombras. O romance não poupa Stálin, que aparece como o maior responsável pela morte da utopia comunista.

Portanto, é importante frisar que este não é um romance fácil. É uma obra densa, pesada, repleta de sombras e dor. O percurso pela narrativa é também uma jornada que mostra como a maior utopia do século passado pode alcançar seu ápice e também sua derrocada, tendo sido destruída de dentro para fora.

Ficha Técnica 
O homem que amava os cachorros 
Leonardo Padura 
ISBN-13: 9788575593578
ISBN-10: 8575593579
Ano: 2013 
Páginas: 592
Idioma: português

Editora: Boitempo

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/359958ED404651

segunda-feira, abril 27, 2020

O objeto de nosso desejo

Muito se pode dizer sobre o livro. Existem conceituações práticas e outras mais românticas. Os mais pragmáticos podem apenas afirmar que o livro é um objeto que serve para armazenar informações. Já os românticos vão chamá-lo de "janela para outros mundos", "objeto que nos faz viajar sem sair do lugar", entre outras definições ufanistas. 

Nenhuma delas, porém, vai abarcar todas as dimensões do livro. Sim, trata-se de um objeto de múltiplas dimensões. O livro é, antes de tudo, um lugar de muitos lugares. Um espaço de muitos espaços. Não foi à toa que o escritor Jorge Luis passou sua vida inteira perseguindo a ideia do livro e da biblioteca, explorando suas infindáveis facetas, buscando ultrapassar seus limiares.

O livro é um objeto de aprendizado. Ao afirmar isso, não quero dizer que ele deva servir para o aprendizado, ou que ele deva servir para algo. Como um objeto sólido, ele pode servir para muita coisa: pode impedir que um monte de papéis sejam levados pelo vento. Pode segurar uma porta. Pode até servir como projétil a ser arremessado contra uma testa incauta. E pode, inclusive, servir para nada.

Como disse anteriormente, o livro tem múltiplas dimensões. Trata-se de um artefato cultural. Em si ele encerra milênios de história humana. Ele evoluiu, mudou ao longo dos séculos. Não é à toa que os objetos mais importantes das duas maiores religiões do mundo sejam justamente livros.

Portanto, o livro atrai para si um fascínio único. Posso arriscar sem errar muito que ele é um dos poucos artefatos que reúnem em si o espírito da memória humana. É um objeto interativo, feito para ser manuseado, explorado, descoberto. Sendo assim,  ele estimula a sensibilidade de seus leitores. Basta dar um livro a uma criança para observar como ela se ocupará por um bom tempo apenas em manuseá-lo de várias maneiras, experimentando qual seria a forma correta de lidar com esse objeto misterioso. 

Através dessa interação, o leitor tem como refletir sobre o tempo, a memória, os sentidos. O livro é um objeto navegável, pois nele podemos ir para frente e para trás, podemos pular páginas, retornar em algum trecho que nos tenha chamado atenção. 

Esse aspecto interativo do objeto livro foi evocado por mim anteriormente. Porém, sou tão fascinado com tal poder de interação que não me canso de evocá-lo. Perder-me em páginas de um livro, apenas para folheá-lo, ainda é algo muito recorrente para mim.

Alegoria do próprio conceito humano de tempo, cada livro nos permite construir uma relação pessoal e específica com ele. Assim como cada pessoa é única, sua relação com cada livro também o será, seja de forma consciente ou não. Esta relação pode então se expandir, crescer, transformando no livro em uma ideia que ultrapassa suas dimensões físicas. 

E assim o livro se torna um outro lugar. Um jardim secreto, um esconderijo para além do tempo, o lugar onde se revela e se esconde o nosso desejo.

sexta-feira, fevereiro 28, 2020

Um defeito de cor - a voz e a força de uma mulher negra

Há muitos anos vinha desejando ler Um defeito de cor, obra épica de Ana Maria Gonçalves. Adiei por tempo demais. Até que o destino nos colocou juntos: fui escalado para mediar uma mesa com a Ana Maria e com Marcelino Feire no terceiro FLI-BH. 

Assim, o desafio de ler essa obra de centenas de páginas era algo do qual não poderia mais fugir. Afinal, essa é a obra de referência da autora e o motivo de sua escolha para a mesa com o tema que unia a vivência e a escrita.

Foi com essas questões em mente que dei início à leitura de Um defeito de cor. E o que a princípio seria uma leitura técnica se tornou um percurso selvagem e apaixonado, através da voz de uma africana, chamada Kehinde, que confidencia em uma longa carta sua vida, suas escolhas e lutas.

De fato, Kehinde é, antes de tudo, uma lutadora. Vítima e testemunha de uma abjeta violência ainda em sua terra natal, a ainda menina vai desenhando aos olhos dos leitores suas experiências com uma grande carga de inocência. Mesmo quando, mais tarde, ela e a irmã são sequestradas e levadas como escravas, a menina mantém essa pureza que a faz forte, capaz de superar as violências.

A partir do percurso feito para atravessar o Atlântico, tem início o que eu considerei a parte mais difícil do livro. Ter consciência quase gráfica das violações suportadas pelos africanos escravizados é algo diante do qual é impossível ficar indiferente. O sofrimento é visceral, implacável, repleto de crueza, não poupando idosos ou crianças. Na travessia, todas as dignidades foram estupradas das pessoas e, para mim, é impossível não pensar em reparação. 

O enredo prossegue, assim como as violências, já em solo colonial. A narrativa, porém, assume um pouco mais de leveza, a partir da inteligência e tenacidade de Kehinde, que busca assumir o leme da própria vida, mesmo em condições tão adversas. A resistência e inventividade de Kehinde por vezes lhe garantem consequências desastrosas.

Outro ponto a se destacar na narrativa é a profunda curiosidade espiritual de Kehinde. Ela tem memórias de ritos e cultos realizados em África e na medida que pode, vai expandindo seu conhecimento na tradição de seus antepassados.

É preciso destacar que o livro de Ana Maria Gonçalves busca em fatos históricos ancorar sua narrativa. Sendo assim, somos apresentados a personagens e acontecimentos que marcaram a história da Bahia do século XIX, bem como de outros lugares, como a Costa de Mina, na África. 

É importante destacar também que a vida de Kehinde, nomeada no Brasil como Luísa Gama, se entrelaça à vida de uma pessoa fundamental para o movimento abolicionista. Fazer tal descoberta, enquanto lia o prefácio, trouxe-me lágrimas aos olhos.

Com uma narrativa densa, mas nem um pouco enfadonha, repleta pelo esmero em detalhes históricos e na profundidade de suas personagens, Um defeito de cor é um épico imperdível para quem quer conhecer mais sobre sua história e seu povo.

Ficha Técnica 
ISBN-13: 9788501071750
ISBN-10: 8501071757
Ano: 2006
Páginas: 952
Idioma: português
Editora: Record

quinta-feira, fevereiro 27, 2020

A violência nossa de cada dia

Há anos venho ponderando sobre o senso comum e o alarmismo da mídia de que a violência estaria aumentando. São ponderações que mantive para mim mesmo, no máximo comentei com alguém próximo. Porém, esses questionamentos permanecem, sempre me instigando. 

Por exemplo, é muito comum escutar que antigamente a violência era menor, que as pessoas poderiam sair na rua com mais tranquilidade, que crianças não podem mais brincar ao ar livre.

Tais argumentos são inclusive usados por aquelas pessoas que defendem o armamento da população, o endurecimento do código penal e a ampliação dos presídios. E foram também utilizados por quem apoiava o antes candidato e atual presidente. 

A despeito das atuais informações do Ministério da Justiça - das quais eu desconfio - existe sempre um discurso de que a violência estaria aumentando e que seria necessário um enrijecimento do Estado, para que tal escalada fosse interrompida.

A História, porém, nos mostra outra coisa. Já tivemos períodos muito mais violentos que os atuais, em números absolutos. Se formos pensar proporcionalmente, então, a violência seria ainda maior.

Eu me lembro que, quando criança, passei férias no bairro Planalto, aqui em Belo Horizonte. Deveria ser o ano de 1989, ou 1990. Naquela época, sair para a rua era certeza de ser assaltado por alguém. Eu inclusive fui vítima de um desses assaltos. Sem falar nos furtos constantes a que as pessoas eram vítimas, no centro da cidade.

Essas ocorrências foram diminuindo, a partir da melhora da economia do país. Com apenas minha memória para contar como aliada, arrisco afirmar que os períodos de estabilidade econômica corresponderam, pelo menos para mim, a uma maior sensação de segurança.

Outro ponto que me incomoda são as frequentes pesquisas - inclusive a última divulgação do Ministério da Justiça. Em nosso país, temos a mania de mudar os indicadores, o que compromete historicamente a pesquisa. Ou seja, acabamos provocando nossa própria desinformação. 

Por fim, temos um aumento vertiginoso da população, tanto no Brasil quanto no mundo. Sendo assim, é compreensível que a violência aumente, em números absolutos. Devemos, porém, continuar a combatê-la.

Para concluir, afirmo que me causa nojo que o atual líder da nação seja um defensor da tortura, do extermínio e que use de violência verbal (e por vezes física) contra qualquer pessoa que o desagrade. A incitação à violência que Bolsonaro faz, quase diariamente, deixa exposta toda a sua monstruosidade e a hipocrisia dos cristãos que o apoiam.

sexta-feira, julho 26, 2019

Uma vez - Experiência, esperança e o poder da palavra

Por vezes, achamos que um determinado tema se esgotou, de tanto que foi explorado, gerando livros, filmes, documentários, séries e outras obras artísticas. Em outros casos, porém, um tema parece inesgotável. 

Um grande exemplo disso é o chamado Holocausto. Existem inúmeros trabalhos abordando esse terrível acontecimento, de monumentos a obras cinematográficas. E ainda assim, sempre parece haver um novo prisma a ser lançado sobre o tema.

Talvez a profundidade do impacto desse acontecimento acabe por gerar em nós o sentimento de urgência em lembrar dele, para que o mesmo não se repita, embora isso pareça quase inevitável.

O romance juvenil Uma Vez 
P pode ser um bom exemplo de tal afirmação. Inspirado em cartas de crianças judias que passaram pelo Holocausto, o livro de Morris Gleitzman é narrado por Félix, um garoto judeu que foi deixado pelos pais em um orfanato na Polônia ocupada pela Alemanha nazista, com a esperança de que ao menos ele sobrevivesse. 

Filho de livreiros judeus, Félix vive a relativamente tranquila rotina no orfanato, tendo como válvula de escape as histórias que inventa para si mesmo e registra em seu caderno. Suas narrativas, sempre inventivas e ingênuas, contam com seus pais como protagonistas em aventuras mirabolantes. O menino espera que logo quando possível seus pais irão buscá-lo e interpreta qualquer coincidência como um sinal secreto de que eles estão para chegar.

Tudo muda quando Félix presencia um grupo de militares nazistas queimarem livros. Acreditando que os nazistas são bibliotecários inimigos de livreiros judeus, o garoto decide que precisa salvar seus pais a qualquer custo.

Tem início então uma penosa jornada de um menino em uma terra hostil e violenta. O enredo não poupa o protagonista e o texto mostra o amadurecimento forçado de uma criança que vê suas fantasias serem destruídas com a mesma violência que os nazistas praticavam contra os judeus, com a anuência da população em geral.

Félix, porém, é um contador de histórias. As palavras são fundamentais para dar sentido a seu mundo. Ele precisa delas para viver. Em certos momentos, é delas que ele se vale, mesmo contra a sua vontade. 

Apesar da crueza dos acontecimentos, há um toque de esperança através da fabulação de Félix. Algo que funciona para literalmente afastar a dor. A sua capacidade de contar histórias e criar aventuras provê seu sustento e de outras crianças.

Mesmo ao chegar ao momento mais sombrio de seu percurso, o menino ainda consegue, através do sonho, acreditar no futuro. Ele entende que somente assim conseguirá vencer o medo. Com o poder das palavras, Félix nos mostra que  a experiência, sem esperança, de nada vale.

Ficha Técnica
Uma Vez
Morris Gleitzman
Ano: 2017
Páginas: 160
Idioma: português
Editora: Paz & Terra
Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/uma-vez-676858ed679011.html

sexta-feira, junho 28, 2019

Heranças e memórias - O melhor que podíamos fazer

O que é herança, para além de seu sentido literal e óbvio? O que herdamos de nossos antepassados em termos de memória e identidade? É possível - ou mesmo necessário - traçar nossa personalidade a partir das vivências daqueles que vieram antes de nós e são diretamente responsáveis por nossa existência no mundo?

Essas foram algumas das questões que me fiz ao final da leitura de O Melhor Que Podíamos Fazer: memórias gráficas, de Thi Bui. Esta é uma aclamada Graphic Novell que alia o apuro artístico, o rigor quase acadêmico e a sinceridade testemunhal.

Thi Bui traça uma jornada de três vias. Uma é pelo espaço, saindo do Vietnam recém-unificado, passando por um campo de refugiados e seguindo para um país completamente estranho que no fim tornou-se o seu lar: EUA. Construído de forma não-linear, como o pensamento e a memória funciona, o livro conta a história da família Bui desde suas origens, com as infâncias e juventudes dos pais de Thi. Ambos são muito inteligentes e esse talento os aproxima. Porém, as origens são totalmente diferentes. 

A narrativa visual é leve e dinâmica. O texto procura acompanhar essa leveza, escrito em tom de confidência. Contudo, os fatos vividos pela autora e sua família são dramáticos e muitas vezes violentos. Há muito ressentimento, medo e angústia perpassando as memórias da família Bui.

Assim, Thi produz um relato poderoso e ao mesmo tempo acolhedor. Foi impossível para mim não me comover com as dores de cada familiar. Ao ver as fotos das crianças e seus pais em 3x4 para emissão dos passaportes, foi possível perceber a dor, a incerteza, a resignação de quem é obrigado a largar tudo pela simples sobrevivência.

É importante destacar que Thi não procura demonizar o regime que se instalou no Vietnã ao fim da guerra. Porém, os horrores e injustiças estão lá e deixaram suas marcas. A voz de Thi é sóbria e equilibrada, de alguém que sabe que o Vietnã não é seu lar, mas os EUA, mesmo sendo agora o seu país, jamais foi uma terra de sonhos. E que palavras como lar, família e herança são construídas com sensibilidade e afeto, representando algo que levamos conosco, não importa aonde formos.


Ficha Técnica
O Melhor Que Podíamos Fazer
Thi Bui
Ano: 2017
Páginas: 336
Idioma: português
Editora: Nemo
Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/694846ED698058

sexta-feira, maio 24, 2019

1822 - A segunda parte da história da história

Por vezes nossa própria História nos parece estranha. Talvez porque em muitos casos nos sentimos distantes dela. Principalmente nós, pessoas comuns. Além do mais, essa história nos é apresentada como uma matéria obrigatória, o que pode nos afastar ainda mais do tema.

Mas então surgem livros que nos apresentam essa mesma História, mas com um outro olhar. Livros que se pretendem interessantes e ao mesmo tempo críticos. Um desses livros certamente é o conhecido 1822.

Escrito meio que para ser a continuação do livro anterior, 1808, este livro apresenta e interrelaciona os fatos históricos que precederam o Grito do Ipiranga e segue seus desdobramentos, apresentando as principais personagens envolvidas. 

Apesar do título, 1822 abarca um período de aproximadamente dezessete anos, de 1817 a 1834, ano da morte de D. Pedro.

Ler 1822 foi fácil e tranquilo, inclusive agradável. O texto de Laurentino Gomes é leve e dinâmico, sabendo equilibrar informações relevantes com detalhes pitorescos e curiosos, mantendo sempre a atenção do leitor.

Além disso, o autor procura cobrir todo o seu relato com fontes históricas de pesquisa. Ao longo do texto há diversas notas que podem ser verificadas ao final de cada capítulo. A bibliografia é extensa e abrangente, mostrando a diligência e o profissionalismo do autor.

Outro ponto que considero importante destacar é um certo grau de olhar crítico sobre a nossa história oficial. Laurentino busca comparar versões oficiais com outras fontes e testemunhos. Procura também apresentar uma visão ponderada e reflexiva sobre o Brasil de outrora, comparando-o com o atual.

Por exemplo, ele ressalta os problemas estruturais em nosso país, originários de nosso passado de colônia escravagista e de exploração. Também aponta a corrupção endêmica já na sociedade pré-império, principalmente por conta da mentalidade da corte portuguesa.

Por fim, considero fundamental o profundo respeito que o autor tem pela fortuna documental, atestando sua importância para a realização do livro.

Porém, fiquei profundamente incomodado com a forma com que Laurentino suaviza a gravidade dos atos de pessoas como Dom Pedro I e o almirante Thomas Cochrane. Além do mais, considero que ele faz pouco caso, como a maioria de nós, dos feitos que as mulheres desempenharam. Apesar de apontar a importância do papel de Maria Leopoldina na independência, vê-se um certo favoritismo pela figura de José Bonifácio. Nossa primeira imperatriz deveria ser elevada a condição de estadista por nossa história, mesmo que ela não ocupasse oficialmente o cargo.

Outra mulher que considerei alvo de uma descrição tendenciosa foi a famosa Marquesa de Santos. Domitila de Castro é destacada pelo escritor inclusive por sua  capacidade reprodutiva. Além disso, ela aparece como a manipuladora amante de Dom Pedro I, quase sendo a hedionda responsável pela morte da rival e abdicação do amante ao trono. 

Outro que aparece quase como herói no livro é o tal Cochrane. Curiosamente, ele aparece no subtítulo como um "escocês louco por dinheiro". Sem dúvida um eufemismo sobre o homem que saqueou cidades que prometeu proteger.

Apesar dessas visões romantizadas, a leitura foi proveitosa pelo texto dinâmico, bem como pela pesquisa histórica. Ao terminar a leitura, percebi em mim uma certa melancolia. Imaginava um outro Brasil, por tudo que ele poderia ter sido, mas infelizmente jamais foi.

Ficha Técnica 
1822
Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D.Pedro a criar o Brasil - um pais que tinha tudo para dar errado
Laurentino Gomes 
Editora Nova Fronteira 
Páginas: 352
Ano: 2010

sexta-feira, fevereiro 02, 2018

O Minotauro - Um mergulho na Grécia Antiga

O Sítio do Picapau Amarelo está de pernas para o ar, mais parece um cenário de fim de festa. Afinal, após a invasão dos monstros da Mitologia Grega, Tia Nastácia está desaparecida e os lugares que antes estavam repletos de personagens incríveis agora exibem o mesmo aspecto ordinário de antes: morros com mato por todos os lados. Não há mais castelos encantados, mar dos piratas e criaturas fantásticas. A pior das perdas, porém, está no sumiço da incrível cozinheira do Sítio.
Assim começa O Minotauro, obra da coleção do Sítio do Picapau Amarelo. Escrito para dar continuidade ao enredo de O Picapau Amarelo, o livro tem início com a turma do Sítio à bordo do Beija-flor das ondas, o antigo navio do Capitão Gancho, anteriormente chamado Hiena dos Mares. O destino é o porto do Pireu, situado no litoral da Grécia.
Ao chegarem ao porto, porém, as crianças ficam impressionadas com o aspecto desagradável do porto. Afinal, eles não chegaram de fato em seu destino. A Grécia que almejam é aquela de seus tempos áureos, a chamada Grécia Antiga. Decidem então fazer um mergulho, desaparecendo do Pireu de 1939 e aparecendo em 438 antes de Cristo, no chamado Século de Péricles. Enquanto Dona Benta, em companhia de Narizinho, decide permanecer nesse tempo, enquanto Pedrinho, Visconde e Emília seguem para a Grécia Olímpica, um tempo ainda mais antigo que aquele. Dessa vez, utilizam-se de um pó desenvolvido pelo Visconde, o Pó número 2.
Assim segue a narrativa de Lobato, dividida em duas linhas temporais e duas tramas distintas. Uma para desvendar o mistério do paradeiro de Tia Nastácia e outra para descortinar as maravilhas da Grécia do chamado Século de Péricles.
O texto de Lobato, como sempre, é ágil e repleto dos maneirismos de Emília, sua mais célebre personagem. Além disso, o autor faz a mesma escolha que em outros livros e carrega seu texto com uma certa dose de didatismo. No desenrolar da obra, somos apresentados a personalidades históricas como o filósofo Sócrates, apresentado como um rapaz de nariz horroroso, e o dramaturgo Sófocles.
Em contrapartida, Emília, Pedrinho e o Visconde visitam o Olimpo, observam os deuses em seus assuntos divinos e ainda provam do néctar a da ambrosia, alimentos exclusivos aos deuses. Descem do Monte Olimpo e têm a oportunidade de testemunhar um dos 12 trabalhos de Hércules.
Como é de se esperar, há uma certa dose de humor, principalmente na dinâmica entre Emília e seu fiel companheiro, o Visconde de Sabugosa. Alguns dos mais divertidos momentos da narrativa ocorrem justamente por conta da subserviência do sabido sabugo e sua obrigação em carregar a bagagem da "ex-boneca". O Classicismo é preponderante no texto e chega a ser exacerbado. Há porém, alguns contrapontos, como a crítica que Dona Benta faz à escravidão, ou sua constatação de que Péricles era na verdade um ditador que manipulava a opinião popular através de seus discursos.
Há alguns pontos nevrálgicos no texto de Lobato, como por exemplo o tratamento que ele dá à Tia Nastácia, não só pela Emília, mas também por Pedrinho. São aspectos que merecem atenção, não apenas por sua polêmica, mas justamente para entendermos Lobato em suas particularidades e contradições.
Portanto, considero O Minotauro uma ótima indicação de leitura. Especialmente se esta vier acompanhada de um momento de mediação.

Ficha Técnica:
Título: O Minotauro
Autor: Monteiro Lobato
Ilustrações de Odilon Moraes
Ano da primeira publicação: 1939

Página do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-minotauro-4881ed230203.html

quarta-feira, abril 27, 2016

Posicionamento

Alguns apontamentos feitos dia 21 de abril de 2016, no Facebook.

Estou bem atrasado. Ainda envolvido no final de uma doença debilitante, não acompanhei o discurso de ódio veiculado na televisão neste último domingo. Mas agora tive que assistir. Um homem grande, bonito, de voz forte, exaltando outro homem. E o homenageado foi um notório torturador.
Não posso ser omisso. Sei que as palavras são muitas, mas por vezes a indignação tranca a boca. Falta instrumento para verbalizar o que é absurdo. Por isso eu entendo que talvez um cuspe tenha sido a única reação viável no momento.
Eu, porém, tive o tempo ao meu lado. Pude assistir com calma. Uma calma que me fugiu logo em seguida. Mais uma vez, não é possível ser omisso. Jair Bolsonaro defendeu um TORTURADOR em cadeia nacional. E não podemos, a meu ver, nos calar diante disso. Faço então um apelo a todos aqueles que se consideram simpatizantes de Bolsonaro. Por favor, avaliem essa postura. Não adianta essa pessoa esconder seu ódio junto a palavras como “deus”, “família” e “pátria”. A exaltação ao torturador permanece lá. E categoricamente, afirmo: essa violência não se justifica.
Bolsonaro afirma lutar pela "inocência" das crianças e ao mesmo tempo glorifica um homem que expôs uma mulher amarrada e violentada diante dos filhos pequenos. É esse tipo de homem que vocês, que curtem o Bolsonaro, defendem?
Não é questão de ser de direita ou de esquerda. O que está em jogo aqui é algo mais importante, chamado DIGNIDADE. Algo que vai além de posturas ideológicas. Por isso, conto com o bom senso de todos os que se simpatizam com esse político chamado Jair Bolsonaro. Por favor, não vamos continuar alimentando um monstro.

#DigaNãoaJairBolsonaro
#ForaBolsonaro
#TorturaNuncaMais

#DitaduraNuncaMais

terça-feira, abril 26, 2016

Agradecimento

Texto originariamente publicado no Facebook, no dia 29 de março de 2016, o qual decidi trazer para este espaço, por questões de registro.


Estamos no fim de março. Comecei este ano com o firme propósito de doar um pouco mais de mim. No ano passado, foram poucas vezes. Uma creche, duas ongs e algumas escolas. Por isso, acho que estou indo bem, já que em 2016 consegui pelo menos ir a uma escola por mês. A primeira apresentação do ano foi na Escola Municipal Milton Campos, no bairro Mantiqueira, dia 15 de fevereiro. A segunda, na Escola Municipal Professor Mário Werneck, no bairro Santa Maria, dia 7 de março. E a última foi hoje, dia 29 de março, na Escola Municipal Armando Ziller, também no Mantiqueira. Cada visita foi maravilhosa e especial, fonte de inspiração e aprendizado.
Cheguei à Escola Municipal Milton Campos um pouco inseguro. Afinal, pouco me lembrava do público que enfrentaria. Quantas crianças? Quais idades? E qual seria a expectativa delas quanto à minha visita?
Fui recebido pela bibliotecária Adriana Pedrosa, uma pessoa maravilhosa, cujo sorriso logo fez com que eu me sentisse mais à vontade. Logo as crianças começaram a chegar, sendo acomodadas no pátio, perto do acesso à cantina. Uma turma, duas, três... Quando me dei conta, um número considerável de crianças estava diante de mim. Começava então a prova de fogo.
Ledo engano. Naquele momento, fui tomado por uma profunda satisfação, enquanto deixava minha voz tomar o espaço e via os olhos de cada criança brilhando, seus rostos concentrados, explodindo em ocasionais risadas durante os momentos mais hilários das histórias.
Quando terminei, sabia que havia mais. Essa primeira multidão infantil foi levada novamente para as salas de aula e, enquanto eu descansava, outra enorme turminha se apossou do lugar. Agora parecia ser o dobro de crianças. Respirei fundo e novamente deixei-me levar pelo regozijo de poder contar histórias que tão bem me fazem.
Depois dessas apresentações, ainda pude desfrutar ótimos momentos na cantina e depois na biblioteca, tornando minha visita àquela escola ainda melhor.
Meu segundo desafio, na Escola Municipal Professor Mário Werneck, foi um pouco diferente. Desta vez, a apresentação aconteceu em um auditório, um espaço muito bem equipado. A visita foi a convite da professora Tatiane Batista e sua colega Andréia. Novamente fui agraciado pela gentileza que as próprias crianças me fizeram, prestando atenção em cada narrativa. Acrescentei duas histórias de assombração, a pedido da maravilhosa plateia.
Por fim, hoje foi meu terceiro desafio. Convidado pela escritora Norma De Souza Lopes e novamente pela Adriana Pedrosa, compareci à Escola Municipal Armando Ziller e tive o privilégio de contar histórias para todas as turmas do turno da tarde! Números não importam, principalmente porque não faço ideia de quantas crianças foram. Acrescento apenas que realizei três apresentações, com pequenas adaptações em cada uma. Foi igualmente mágico!
Deixei a escola hoje recebendo cumprimentos e abraços de tantas, tantas crianças! Essa foi sem dúvida a maior recompensa, além da experiência de poder exercitar essa arte que é narrar histórias.
Quero encerrar este relato agradecendo profundamente a todas as professoras que confiaram em mim para realizar essa ação que considero tão preciosa. Sinto-me honrado por ter visitado cada uma dessas escolas e continuarei à disposição para, na medida do possível, realizar mais. Obrigado! ;-)

quinta-feira, junho 12, 2014

A Grande Marcha: a tirania do kitsch

Quebrando o jejum de resenhas, sinto a imensa satisfação de poder falar sobre o livro A Grande Marcha, do autor estreante Ewerton Martins Ribeiro. Porém, junto à alegria, há um sentimento de incerteza. Afinal, como escrever uma resenha à altura da prosa do Ewerton? Como deixar patente para o leitor o poder desse texto?
Em primeiro lugar, a prosa presente em A Grande Marcha não é uma narrativa linear. É como um livro e ao mesmo tempo um cubo mágico. Cabe ao leitor captar trechos de acontecimentos e criar sua combinação, encontrar os pontos em que os conflitos se interligam, perceber as ironias e fazer uso das mesmas para construir em conjunto com o narrador essa obra tão forte e polissêmica.
Ainda sobre a prosa, a linguagem assume por vezes um tom ensaístico, quase professoral. E nesse ponto o domínio de Ewerton sobre a escritura se faz mais forte, pois ele consegue construir um texto equilibrado, profundo mas dinâmico, tomando para si o grande desafio de tentar conceituar o termo kitsch. Em nenhum momento a leitura me pareceu pesada ou enfadonha. Por vezes, tinha que parar, mas para refletir sobre os conceitos e exemplos apresentados e não por ter tropeçado do texto.
Ewerton, contudo, não para por aí. Ele vai mais. Além de abordar um tema espinhoso (afinal, o que é o kitsch? falsidade? demagogia? idealização? enganação? ingenuidade? futilidade? superficialidade?), desenha sua trama e o conflito do anti-herói do texto como uma grande analogia aos conceitos arduamente desenhados. Esse conflito é inserido então em um dos mais contundentes e atuais momentos de nossa história: as manifestações contra a Copa das Confederações em 2013. 
Nesse momento, a prosa de Ewerton ganha um dinamismo impressionante, mantendo um ritmo quase frenético, como se o próprio narrador fosse um jornalista obcecado por registrar exaustivamente esse momento histórico. E o leitor embarca também nessa viagem, troca de pele com o narrador e os personagens e vive (ou revive) a marcha como mais um manifestante.
Após a leitura ávida desse livro, pude refletir um pouco sobre essa onda de protestos que atravessou o Brasil no ano passado e tem se erguido este ano. 
As pessoas mais próximas de mim sempre ouviram minha desconfiança em relação a essas manifestações. Quando me perguntavam, porém, eu não conseguia responder com clareza. Dizia apenas que achava que os protestos não tinham pauta clara, reivindicações consistentes e objetivas. Tudo parecia muito solto, desarticulado. Cheguei a comparecer a uma dessas marchas, embora não me sentisse como parte daquelas vozes. Continuava, porém, sem conseguir argumentar com clareza sobre os motivos que me afastavam dessa grande marcha.
A Grande Marcha deu-me a clareza para entender de fato oque me incomodava. Consegui dessa forma solidificar minha opinião sobre as manifestações. Opiniões que não compartilharei no momento. Talvez em outra hora.
Por fim, quero recomendar a todos que conheçam essa obra de estreia de Ewerton Martins Ribeiro. Com sua escrita primorosa, seu rigor argumentativo e seu domínio sobre a linguagem, A Grande Marcha sem dúvida já nasceu uma grande obra.

Ficha Técnica
Edição: 1
Editora: Circuito
ISBN: 9788564022447
Ano: 2014
Páginas: 98