Mostrando postagens com marcador HQ. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador HQ. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, outubro 09, 2023

CONFINADA - Por trás das máscaras



A Pandemia de Covid-19 foi um divisor de águas em nossas vidas. Um período em que o mundo parou e muitas pessoas se sentiram forçadas a fazer o isolamento. Porém, aquelas que eram pobres continuaram se expondo e morrendo, fazendo os serviços que os ricos se recusavam a fazer. 

CONFINADA é um romance gráfico de Triscila Oliveira e Leandro Assis e conta sobre Fran, uma rica influenciadora digital que convive em isolamento com sua empregada doméstica Ju. Fran é a típica branca alienada e a pandemia irá escancarar ainda mais seus preconceitos.

A HQ de Triscila e Leandro mostra uma parcela significativa da população que explora a maioria preta deste país e não se envergonha disso. Pessoas que sustentam um discurso hipócrita, de meritocracia e moralização, mas vive na esbórnia, no desperdício e na libertinagem. Apesar de publicamente ser uma pessoa de discurso positivo e consciente, e apesar de não compactuar com algumas das atitudes de sua classe social, Fran logo mostra que não quer abrir mão de seus privilégios.

O roteiro é ágil e as imagens são marcantes. Trata-se de uma obra rica como registro crítico dessa época de pandemia. Um olhar aguçado para o interior dessas vidas de ricos decadentes (alguns, nem tanto) que pousam de boas pessoas mas não passam de bandidos exploradores, racistas e misóginos. 

Ju aparece então como a figura da razão, como aquela que irá, por uma ética pessoal, apoiar as amigas e companheiras de trabalho. Aquela que irá abalar as estruturas. Infelizmente, esse abalo não é suficiente para destruí-las, mas não deixa de fazer usas rachaduras.

Com um texto inteligente e imagens de impacto CONFINADA nos entrega uma obra mordaz sobre a Pandemia e todos os podres que esta escancarou.


Ficha Técnica

Confinada

Triscila Oliveira e Leandro 

ISBN-13: 9786556922133

ISBN-10: 6556922137

Ano: 2021 / Páginas: 128

Idioma: português

Editora: Todavia

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/confinada-12029125ed12017223.html

domingo, novembro 07, 2021

Uma leitura entre lágrimas

Plena manhã na Biblioteca, duas oficinas realizadas e de repente eu decido me debruçar sobre este livro. Eu estava no balcão de atendimento, mas o trânsito de leitores nesse sábado ameno havia diminuído, depois de um fluxo intenso mais cedo.  Tanto que deu pra ler tudo sem interrupções. Ao final da leitura, pensei em tantas crianças deslocadas, refugiadas, traficadas, despejadas, escravizadas, afogadas... E o Mediterrâneo escapou de meus olhos em plena manhã. Foi um choro desamparado, órfão, assim como muitas dessas crianças. Tive que abaixar a cabeça e me esconder atrás do balcão para que ninguém testemunhasse meu pranto. Para que ninguém me pegasse de peito aberto.

Livro: Um outro país para Azzi

Autora: Sarah Garland

Tradução: Érico Assis

Editora: Pulo do Gato

Descrição: Desenho de uma menina com vestido azul e casaco vermelho. Ela olha para trás enquanto corre e segura um urso de pelúcia. Ao fundo, ruínas de prédios.

14 de abril de 2018



sexta-feira, março 12, 2021

Comida de fada: A infância roubada a pequenas mordidas


Uma menina esperta e imaginativa recebe o convite para se divertir entre as fadas. Parece o início de uma aventura mágica e maravilhosa. Ninguém desconfiaria que, na verdade, essa é a abertura de um conto macabro. 

Comida de fada, obra de Val Armanelli, faz justamente esse movimento. Apresentando uma protagonista que tem tudo da criança precoce na imaginação, mas ainda cheia da fantasia da infância, trata-se de uma história em quadrinhos que vai mostrar como o mundo das fadas pode ser frio e assustador.

A leitura de Comida de fada foi extremamente perturbadora. Talvez fossem as cores alegres e fortes, ou a profusão de guloseimas, ou a insidiosa referência ao filme O labirinto do fauno. Talvez o conjunto de todas essas coisas e outras mais fossem sussurrando para mim que algo extremamente distorcido e errado acontecia, enquanto a heroína era constantemente aliciada pelas pequeninas fadas a comer os doces de uma mesa farta, ainda que a menina estivesse sem fome.

Outro ponto que achei marcante na obra de Val Armanelli é o silêncio ensurdecedor. Ainda que as fadas falem o tempo todo, ainda que a menina responda, há uma total impossibilidade de comunicação. Talvez uma referência à terrível solidão infantil. Afinal, uma criança vive em um mundo de gigantes, sempre mais fortes, sempre impondo suas vontades. Torna-se então uma fina ironia que sejam as fadas, quase invisíveis de tão pequenas, a constantemente impor suas vontades durante a narrativa.

Com cores de contrastes marcantes e um ar enganosamente encantado, Comida de fada é uma viagem estética que mostra como sonhar pode ser perigoso e assustador.



Para quem deseja conferir o trabalho de Val Armanelli, Comida de fada está na reta final de sua campanha de financiamento. Para conhecer um pouco mais - e contribuir - basta acessar a página da HQ no Catarse.


Ficha Técnica:

Comida de fada

Val Armanelli

Edição Independente

sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Harvey, como me tornei invisível - Sozinho na noite, diante das estrelas

Uma criança diante da morte. A primavera, símbolo de renovação, torna-se ícone de um momento marcante e doloroso, que marcará para sempre a história dessa criança. 

Se fosse necessário reunir em uma única palavra a narrativa Harvey, como me tornei invisível, de Hervé Bouchard e Janice Nadeau, eu diria solidão. Uma enorme e massiva solidão.

Logo de início, temos o potente silêncio por páginas e páginas, desenhando cenários tristonhos. Em seguida, a voz de Harvey. Ele não começa com "Eu me chamo Harvey", mas com "Todo mundo me chama de Harvey". Não temos certeza de que esse é de fato seu nome, ou se ele o sente como sendo seu. A partir dessa perspectiva, Harvey vai contando sua história. Ele narra com calma, dando espaço para pausas e digressões, observações e comentários. Assim, a narrativa assume um tom intimista, de confidência. 

Situado em uma primavera diferente de todas as outras, o acontecimento que Harvey narra é entrecortado de outros acontecimentos, sendo alguns fantásticos, como a turbulenta participação de Scott Carré em uma corrida de palitos pela sarjeta. 

Como o mais baixo do grupo de crianças, ele também parece ser o mais incompreendido. Essa incompreensão parece se estender pelo mundo a sua volta. Contudo, ele é dotado de uma enorme lucidez, permite que ele seja um observador privilegiado, guiando nossa leitura por um momento de penumbras e incerteza.

A narrativa de Hervé Bouchard e Janice Nadau é tanto verbal quanto visual. O tom é carregado e os traços sujos transmitem uma constante melancolia, mas sem cair no dramalhão. A tristeza que perpassa as páginas desta obra é comedida, conformada. Não significa, porém, que não seja intensa. 

Com uma visualidade marcante e um texto poderoso, Harvey, como me tornei invisível é um emocionante relato de transformação, de perda e amadurecimento.

Ficha Técnica:
Capa comum: 168 páginas
Editora: Pulo do Gato; Edição: 1ª (10 de junho de 2013)
Idioma: Português
ISBN-10: 8564974118
ISBN-13: 978-8564974111

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/harvey-347357ed389831.html




sexta-feira, setembro 13, 2019

Pinóquio e a mecânica do vazio

Jimmy Barata é um cara incompreendido. Ele não consegue se adequar ao modelo de trabalhador convencional, com uma rotina de trabalho repetitiva, embrutecedora. É um inseto com aspirações e muitas ideias. Seu sonho é ser escritor. Porém, a vida não correspondeu aos seus ideais. Alcóolatra e com problemas para se ajustar ao ambiente corporativo, de repente ele se vê desempregado e no fim de um relacionamento fracassado. Sua esposa o expulsa de casa justamente depois que ele é demitido.

Tudo parecia perdido quando, porém, Jimmy descobre um espaçoso apartamento todo em aço inox. Ao constatar que o imóvel está vazio e tem uma privilegiada vista para a pia, Jimmy resolve se estabelecer nesse novo imóvel e decide dar início à escrita do seu tão almejado romance.

Assim tem início a magnífica paródia de Pinóquio. Escrito e desenhado por Winshluss, esta graphic novel tem o enredo situado em um universo de conto de fadas decadente. Pinóquio narra o périplo de um menino de metal - não de madeira - indestrutível, movido por uma mente habitada por uma barata. Jiminy Cricket (Grilo Falante) soa como Jimmy Cockroach (Jimmy Barata), numa genial corruptela da famosa consciência do menino de madeira.

A narrativa é construída em um paralelo entre as andanças de Pinóquio, um robô criado pelo inventor Gepeto, e os dramas existenciais de Jimmy, seus problemas com a bebida e sua incapacidade criativa. A linha narrativa de Pinóquio, feita em cores e simulando a estética dos desenhos animados infantis, mostra um mundo perverso, de ladrões, estupradores, traficantes de órgãos, ditadores e fábricas de brinquedos movidas por crianças escravizadas. Já o universo de Jimmy é traçado em preto e branco, sendo mais "civilizado" e monótono, numa sátira clara à sociedade de consumo e ao homem comum pseudointelectual.

Outro ponto a ser destacado é que a narrativa protagonizada pelo robô Pinóquio, livremente inspirada no romance de Carlo Collodi, raramente conta com textos, sendo principalmente visual. Mesmo os diálogos são narrados com gestos e outros símbolos não verbais. Assim, é importante destacar a extrema plasticidade da obra de Winshluss.

Numa genial metáfora do homem-máquina contemporâneo, sem moral ou culpa, o livro nunca realizado de Jimmy Barata leva o título de Mecânica do Vazio, numa clara alusão à falta de sentido e à decadência dos ideais. Em uma iconoclastia icônica, o mundo de Pinóquio é como uma enorme máquina que move suas engrenagens em um perpétuo esgar de tédio e desespero. 

Ficha Técnica:
Pinóquio
Winshluss
Globo Livros

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/261936ED293518

sexta-feira, julho 19, 2019

Deslocamento - Memória, afeto e descoberta

O tempo e a memória muitas vezes aparecem em nossa cultura como antagônicos. Afinal, podem ser considerados inversamente proporcionais, em seu aspecto subjetivo.

Esse fato fica ainda mais evidente quando envelhecemos. Assim, como garantir que seja recuperado algo que o tempo degrada tão vorazmente?

Deslocamento, de Lucy Knisley, é uma graphic novel autobiográfica que levanta essa questão. Como o próprio subtítulo anuncia, é um diário de viagem. Contudo, nesse diário a autora costura com sua subjetividade duas narrativas distintas. 

Uma jovem em um momento de solidão faz duas jornadas simultâneas, sendo uma por um cruzeiro marítimo em companhia dos avós e a outra um mergulho nas memórias do avô durante a segunda guerra mundial. 

É interessante o grau de intimidade a que Knisley se expõe para quem lê sua obra. Seus medos, inseguranças e lamentos são apresentados de forma muito honesta e singela. O tom de confidência dá ao seu trabalho um ar de tocante sinceridade.

A autora relata o assombro e o medo diante da velhice e sua busca sensata por paciência e empatia. Lucy não é apenas neta. Ela se descobre cuidadora de um casal que para ela já foi exemplo de autonomia. 

Momentos que seriam constrangedores vão se tornando naturais, como devem ser. Como a vida é. Assim, Knisley amadurece como protagonista. Para auxiliá-la nesse processo, ela conta com as memórias de guerra de seu avô. E a alegoria funciona muito bem. 

Assim como ele fez uma jornada transformadora e cheia de perigos, ela também se lança em sua própria travessia. E alcança o outro lado mais forte.

Com sua narrativa intimista e um tanto inocetente, Lucy Knisley faz de Deslocamento uma experiência afetiva, um exercício de empatia e um relato de amor.

Ficha Técnica
Deslocamento: um diário de viagem
Lucy Knisley
Ano: 2017
Páginas: 144
Editora: Nemo
Página do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/641460ED643224

sexta-feira, junho 28, 2019

Heranças e memórias - O melhor que podíamos fazer

O que é herança, para além de seu sentido literal e óbvio? O que herdamos de nossos antepassados em termos de memória e identidade? É possível - ou mesmo necessário - traçar nossa personalidade a partir das vivências daqueles que vieram antes de nós e são diretamente responsáveis por nossa existência no mundo?

Essas foram algumas das questões que me fiz ao final da leitura de O Melhor Que Podíamos Fazer: memórias gráficas, de Thi Bui. Esta é uma aclamada Graphic Novell que alia o apuro artístico, o rigor quase acadêmico e a sinceridade testemunhal.

Thi Bui traça uma jornada de três vias. Uma é pelo espaço, saindo do Vietnam recém-unificado, passando por um campo de refugiados e seguindo para um país completamente estranho que no fim tornou-se o seu lar: EUA. Construído de forma não-linear, como o pensamento e a memória funciona, o livro conta a história da família Bui desde suas origens, com as infâncias e juventudes dos pais de Thi. Ambos são muito inteligentes e esse talento os aproxima. Porém, as origens são totalmente diferentes. 

A narrativa visual é leve e dinâmica. O texto procura acompanhar essa leveza, escrito em tom de confidência. Contudo, os fatos vividos pela autora e sua família são dramáticos e muitas vezes violentos. Há muito ressentimento, medo e angústia perpassando as memórias da família Bui.

Assim, Thi produz um relato poderoso e ao mesmo tempo acolhedor. Foi impossível para mim não me comover com as dores de cada familiar. Ao ver as fotos das crianças e seus pais em 3x4 para emissão dos passaportes, foi possível perceber a dor, a incerteza, a resignação de quem é obrigado a largar tudo pela simples sobrevivência.

É importante destacar que Thi não procura demonizar o regime que se instalou no Vietnã ao fim da guerra. Porém, os horrores e injustiças estão lá e deixaram suas marcas. A voz de Thi é sóbria e equilibrada, de alguém que sabe que o Vietnã não é seu lar, mas os EUA, mesmo sendo agora o seu país, jamais foi uma terra de sonhos. E que palavras como lar, família e herança são construídas com sensibilidade e afeto, representando algo que levamos conosco, não importa aonde formos.


Ficha Técnica
O Melhor Que Podíamos Fazer
Thi Bui
Ano: 2017
Páginas: 336
Idioma: português
Editora: Nemo
Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/694846ED698058

sexta-feira, maio 10, 2019

Pílulas azuis - quando o real não é deserto

Por vezes, nos percebemos por acaso buscando um sentido maior em nossas vidas. Consideramos que a rotina diária, muitas vezes alienante, é insatisfatória. Assim, acabamos reféns de um ideal de transcendência por vezes enganoso, como se o real não nos bastasse.

E então, narrativas como a graphic novel Pílulas azuis nos mostram como a simplicidade da vida, com seus dilemas e desafios, pode em si representar essa transcendência. Não precisamos de uma pílula vermelha, de um choque para além da realidade. Não são necessárias conspirações governamentais, tramas internacionais ou invasões extraterrestres. A realidade, mesmo simples e ao rés-do-chão, pode nos transformar em seres maiores que nós mesmos.

Desenhado e roteirizado por Frederik Peeters, quadrinista suíço, Pílulas azuis é um relato autobiográfico sobre a jornada que o autor atravessou ao se relacionar com Cati, uma colega que por um fortuito acaso se torna amiga e depois amante. Já de início, Frederik deixa claro que havia, por parte dele, uma atração profunda, além de uma admiração, pela moça jovial e aventureira que Cati parecia ser. Tinham amigos em comum e essa proximidade permitia a Frederik a condição de silencioso observador. 

E de repente, ele descobre que a admiração é recíproca. Cati também observa - e acompanha - Frederik de uma distância segura. Ambos haviam se afastado, seguido com suas vidas, sem porém perderem de vista a trajetória um do outro. Numa festa, por fim, eles acabam se aproximando e dando início a um cauteloso romance.

É nesse momento que Cati, entre a honestidade e o receio, conta a Frederik que é soropositiva. E além disso, ela tem um filho, fruto de um casamento já encerrado. O menino, ainda bem novo, também tem o HIV. Cabe agora a Frederik a decisão: continua com Cati e aceita todos os riscos dessa relação, ou encerra esse namoro ainda incipiente?

De forma franca e simples, Frederik vai contando ao leitor suas dúvidas e medos. Aos poucos, ele vai conhecendo um pouco mais do universo em que Cati e seu filho estão inseridos. Com coragem e respeito, ele vai também aprendendo e reagindo, à medida que cresce o seu conhecimento.

A narrativa de Frederik é sincera e intimista. Suas dúvidas e questionamentos vão se colocando. Ao mesmo tempo, ele procura despojar sua narrativa de qualquer exagero dramático. Assim, ele demonstra sua intenção - muito acertada - de mostrar aos leitores que o que eles têm em mãos é a história de pessoas reais, nada mais que isso.

Há uma clara referência a Matrix. No longa-metragem, ao protagonista é apresentada uma escolha: tomar uma pílula azul, o que significaria esquecer seu desconforto e retornar à rotina; ou aceitar a pílula vermelha, lançando-se assim em uma jornada rumo a um épico desconhecido. No trabalho de Frederik, porém, não há essa necessidade. Não há um dilema que obrigue o protagonista a uma ruptura com a rotina e com a normalidade. O real, com seus dilemas, basta. E pode ser mágico.

Com um traço por vezes carregado mas geralmente leve, Pílulas azuis é um belíssimo relato de uma história de amor, com todos os seus percalços e pequenas vitórias. Uma obra singular, que em sua simplicidade atesta, com maestria, a grandiosidade da vida.

Ficha Técnica
Editora Nemo
Ano: 2015
Páginas: 208
Página do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/512405ED518848