sexta-feira, maio 04, 2018

Te vendo um cachorro - Ingenuidade, malícia e o fazer artístico

Teo tem um grave problema. Ele foi praticamente acusado de estar escrevendo um romance. Sua vizinha de andar, maliciosamente batizada de Francesca, é a autora e disseminadora de tal delírio. Por conta disso, Teo é continuamente incomodado pelos demais moradores do prédio: um conjunto de fanáticos literatos, membros de um clube de leitura hardcore liderado pela própria Francesca.
O pior de tudo é que Teo nunca teve qualquer pretensão de escrever um romance. Ele é apenas um vendedor aposentado de tacos e agora deseja passar o fim de seus dias em suave embriaguez, lançando cantadas às senhoras solteironas que o cercam.
Assim, a partir desse enredo tragicômico, o leitor é convidado a se aventurar pelas páginas do romance Te vendo um cachorro, último volume da trilogia de Juan Pablo Villa-Lobos sobre o México.
Ambientado na Cidade do México, a narrativa assume um foco bem diferente dos seus antecessores. Se no primeiro o narrador é uma criança que habita uma isolada fortaleza do narcotráfico, e no segundo é um jovem morador de uma pequena cidade do interior mexicano, agora temos um narrador vivido e experiente, com toda a manha e canastrice de um cachorro velho que viveu em um ambiente mais complexo, tanto pelo lugar populoso, quanto pelo ofício cheio de artimanhas. Em dado momento, Teo começa um diálogo insólito com a frase que dá nome ao romance, criando uma situação absurdamente cômica.
É interessante observar que, embora não tenha interesse algum em escrever o tal romance, Teo tem um passado ligado ao fazer artístico. Seus devaneios, apontamentos e memórias perpassam angústias e ciladas que surgem na travessia de qualquer artista. E nosso anti-herói ainda declara com muito orgulho que seu ofício como taqueiro não deixa de ser um fazer artístico.
Assim, temos durante a leitura cenas que apresentam o impulso do artista como algo ingênuo e ao mesmo tempo malicioso. A ingenuidade estaria nas memórias de Teo, em sua juventude, quando ele desejava ser artista plástico e esboçava em seu caderno sua visão inexperiente de mundo através de desenhos. Já a malícia cerca o velho taqueiro alcoólatra, devasso, sempre pronto para comprar uma pílula azul e por isso passa a maior parte do tempo sendo enxotado pelas mulheres que ele canta. 
É assim que jovem e velho se aproximam, através da alegoria da mulher como musa inalcançável, embora sempre próxima. E a única forma de tocar a musa é através da arte. Seja por desenhos, palavras, ou por um delicioso taco, feito da carne do melhor vira-lata que foi possível encontrar.

Ficha Técnica 
Te vendo um cachorro
Juan Pablo Villa-Lobos 
Companhia das Letras