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domingo, abril 27, 2025

Coisas que uma criança pode "aprender" na Bíblia

 A leitura bíblica deveria vir com aviso de gatilho


Atenção! Aviso de gatilho: este texto é tóxico. Nele há referências a assassinato, estupro e genocídio. 


Recentemente, soube que a Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou um Projeto de Lei que autoriza o uso da Bíblia “Sagrada” como recurso paradidático em salas de aula. O argumento é que o livro seria fonte de informações históricas sobre “civilizações antigas, como Israel e Babilônia”. Outra fala, essa mais tendenciosa, afirma que o contato com a Bíblia transmite “valores cristãos” e que propicia “cura”.

A partir dessa notícia disparatada, fiquei imaginando o que uma criança encontrará no texto bíblico. Será que professoras e professores recomendarão cautela à criança enquanto ela navega pelas páginas das “divinas escrituras”? Ou deixarão que ela acesse livremente os registros “históricos” milenares?

Penso na quantidade de informações “curiosas” que a Bíblia pode fornecer para o pequeno leitor. Primeiramente, existe uma larga e massiva propaganda para que as pessoas se acheguem ao texto bíblico sem qualquer cautela ou mediação. Ah, a “palavra de Deus” fornece “cura”, “alimento” para a alma. Essas são as afirmações dos entusiastas religiosos.

Claro, existe um monte de preceitos, ordens, regras sobre conduta na Bíblia, algumas até bastante ultrapassadas e inclusive completamente ignoradas. Por exemplo, temos o livro de Levítico para chamar mulheres em período menstrual de “imundas”, ou a proibição, atualmente ignorada pela maioria dos cristãos, do consumo da carne de porco. Seria possível listar uma série de mandamentos que, se desobedecidos, teriam como pena o apedrejamento ou o fogo. Quem duvida pode dar uma conferida no livro de Levítico. 

Através da Bíblia, a criança pode aprender sobre a antiga arte de exterminar um povo, ou seja, o genocídio puro e simples. Em Números 31, os israelitas cometem genocídio contra os midianitas pela primeira vez, a mando de Deus. Isso porque eles tinham crenças e práticas diferentes quanto ao sexo e isso foi considerado uma “tentativa” de destruir o “povo escolhido”. Essa primeira grande atrocidade comandada por Deus foi perversa e doentia, inclusive com a orientação de Moisés. Quando os soldados israelitas voltaram do massacre trazendo mulheres e crianças como prisioneiras, o profeta bíblico ficou irado. Mandou que fossem executados todos os meninos e todas as mulheres que não fossem virgens. As sobreviventes foram dadas para os soldados. Esse é o nível de amor e bondade que uma criança pode ver na Bíblia. E não venham dizer que os tempos eram outros, que esses acontecimentos têm um valor simbólico ou qualquer argumento barato. Atrocidade não se justifica e ponto.

Acontece que esse não foi o único exemplo dos horrores cometidos por ordem divina. Em Josué, vários povos são massacrados: os heteus, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus. Isso porque eles habitavam a “terra prometida”, ou seja, eram inimigos simplesmente porque existiam. Alguém lembra de algum cenário atual?

Essa prática do genocídio não cessa depois que os israelitas se estabelecem na “terra prometida”. Em Juízes, eles cometem genocídio contra uma de suas tribos, Benjamin, quase eliminando-a completamente. Depois, lançam mão do esturpo em massa para “salvar” a tribo que estava em vias de extinção. Esse episódio é hediondo do início ao fim, narrado num grau de frieza e naturalidade assustadoras. Outro grande genocídio é praticado ainda no início de I Samuel, contra os amalequitas. Isso por uma rixa antiga de Deus contra esse povo. É, pelo visto o Divino não é mesmo capaz de perdoar. 

Claro, e como seria? Se Deus, que teria criado todo o Universo, as Leis da Física e tudo o mais, foi capaz de criar uma regra de que só com sangue um pecado pode ser perdoado, não dá para esperar coisa boa dele.

É possível também conhecer na Bíblia o perigo do “coito interrompido”. Em Gênesis 38, Onã é morto por Deus porque não ejaculava dentro de sua esposa. Sim, o Todo-Poderoso decidiu assassinar um simples homem porque ele não queria engravidar a viúva do seu irmão, com quem havia se casado por ordem de Deus, pois assim o filho contaria como descendente do falecido. Já podemos logo de início perceber que Deus não deixa barato. Se uma atitude como essa pode provocar sua morte, é bom andar “pianinho” com esse ser onipotente. Temor, meus caros, temor! E tremor, aliás.

A Bíblia dá umas lições muito confusas para as pessoas. Por exemplo, mentir é pecado. Porém, os patriarcas bíblicos (Abraão e Isaque) mentiram quando estavam no Egito, informando aos Faraós de suas épocas que suas esposas eram suas irmãs. E Deus foi lá fazer o quê? Punir os Faraós, é claro. Afinal, eles estavam com as mulheres de seus “próximos”. A confusão foi desfeita, felizmente, sem ninguém ter morrido. Mas fica a dica. Se você é escolhido por Deus, pode mentir, enganar, manipular e ludibriar à vontade.

O maior exemplo disso é Jacó, que depois se chamou Israel. O cara deu o golpe no irmão, Esaú, para assim receber a bênção do pai. “Comprou” do irmão o direito da primogenitura. Como se isso fosse possível. Ah, mas a gente se esquece que “tudo é possível” se você é “escolhido” por Deus. Depois, Jacó foi lá e “cobrou” a dívida. Como? Aproveitando-se da cegueira tardia do pai para receber a bênção no lugar do primogênito. Não teve o menor pudor em manipular o próprio pai que, segundo a mesma “escritura sagrada”, deveria ser honrado pelo filho.

Mais tarde, o pimpão se casa com duas mulheres. Detalhe: irmãs. Não satisfeito, ele se aproveita da rivalidade das duas para fazer sexo também com suas damas de companhia, ou melhor, servas. Fique registrado que este último termo foi um eufemismo para mulheres escravizadas. Uma das coisas perversas nisso tudo é que ninguém se lembra das servas. Seus sentimentos, desejos, temores, nada disso foi registrado. Por isso, ninguém se lembra delas.

As contradições não param por aí. Um dos maiores nomes da Bíblia é justamente o de Davi, chamado de “homem segundo o coração de Deus”. Pois esse cara não fez nada mais que matar e tomar mulheres à força. Se Davi queria uma mulher, ele ia lá e pegava. Ah, claro, as palavras são suavizadas, mas Abigail teve mesmo uma escolha? Como dizer não ao um senhor da guerra que chega com um exército à sua porta logo após a morte do seu marido? O mesmo senhor da guerra que ameaçou se vingar do seu marido quando este ainda era vivo? Além disso, as 10 concubinas do rei tiveram alguma chance de dizer não? E Bate-Seba, esposa de Urias, oficial de Davi?

A história de Urias é uma das mais lamentáveis. Integrante do exército israelita, esse estrangeiro (um heteu) era mais fiel a seu rei e a seus companheiros do que à própria esposa. Isso eu digo: infelizmente. Pois a recíproca não foi verdadeira, no caso de Davi. Enquanto seu exército estava em guerra, o monarca passava o tempo contemplando a paisagem do alto do seu palácio. Viu uma mulher tomando banho e a desejou. Saber que se tratava de Bate-Seba, esposa de Urias, não o deteve. 

Quando a notícia da gravidez de Bate-Seba chegou até Davi, ele arquitetou um plano para “resolver” o imbróglio. Convocou o oficial, que estava no campo de batalha. Logo que Urias chegou, Davi ordenou que servissem vinho ao homem. Na cabeça do rei, Urias voltaria para casa, bêbado, e dormiria com a mulher. A infidelidade seria encoberta, pois o militar pensaria que a gravidez teria sido concebida em sua noite de folga.

Porém, Urias não voltou para casa. Na manhã seguinte, Davi ficou sabendo que o homem havia dormido no portão do palácio. Ao ser inquirido, Urias alegou que não tinha direito de dormir no conforto de sua casa, enquanto seus companheiros enfrentavam as dificuldades do acampamento de guerra, dormindo ao relento. 

Assim, Davi toma uma decisão drástica e que, para mim, é o ápice da perversidade. Escreveu uma carta endereçada a Joabe, comandante do exército. Na carta, Davi dava ordens específicas para que Urias fosse abandonado durante a batalha, de modo que morresse de qualquer jeito. E agora vem o ponto mais perverso e maligno de tudo: o portador da carta foi o próprio Urias! Sim, ele levou sua própria sentença de morte, sem saber de nada!

Os mais religiosos vão alegar que o pecado de Davi (para mim isso foi é crime hediondo com motivo torpe) não ficou impune, que Deus o puniu. Como? MATANDO A CRIANÇA gerada no adultério. E não foi uma morte súbita. O bebê AGONIZOU. Como Deus é bom!

Há um outro discurso sobre a punição divina. Alguns dizem que o que aconteceu com a família de Davi depois teria sido em parte consequência desse adultério. Claro que tem mais uma contribuição do próprio Davi nessa história. E o que afinal aconteceu? Bem, digamos que os filhos de Davi em geral não foram muito bons uns para com os outros. Para começar, Amnon cometeu estupro contra Tamar, que era sua irmã por parte de pai. Absalão, irmão de Tamar por parte de mãe e pai, exigiu de Davi uma punição contra Amnon, o que não aconteceu. Amargurado, Absalão decide fazer “justiça” com as próprias mãos, tramando e executando o assassinato de Amnon. Não satisfeito, ele dá um golpe de estado e depõe o pai, assumindo o trono de Israel.

Aqui, faço uma breve interposição. A cena que descreve a desolação de Tamar depois de seu estupro é de cortar o coração. E isso não comoveu seu próprio pai, o tal homem segundo o coração de Deus. Absalão não ficou satisfeito em exilar o pai e assumir seu lugar no governo. Ele precisava puni-lo “adequadamente”. Nada melhor do que humilhá-lo publicamente. Só que essa “humilhação”, mais uma vez, foi voltada a quem não tinha nenhuma culpa. Sim, Absalão decide estuprar publicamente as 10 concubinas de Davi que haviam sido deixadas para trás na fuga de Jerusalém. Depois que Absalão foi morto e o seu pai reintegrado ao trono, essas mulheres, que foram vítimas, receberam um tratamento terrível, sendo confinadas, como se estivessem irremediavelmente contaminadas. Ou seja, foram condenadas ao enclausuramento.

Nem depois da morte de Davi a violência entre seus filhos acabou. Quando Salomão subiu ao trono, um dos seus irmãos, Adonias, aproximou-se de Bate-Seba e pediu em casamento a mão da moça que foi cuidadora de Davi antes de sua morte. Isso teria sido visto por Salomão como uma tentativa de golpe. Enfurecido, o novo rei mandou seu irmão mais velho ser executado. Isso que é amor fraterno! A família de Davi nos ensina tantos valores familiares!

Alguém pode alegar que essas narrativas são de outra época, um período anterior à Graça, que teria sido instituída a partir da morte de Jesus na cruz. Então, eu evoco o discurso do próprio Cristo. Se alguém se lembrar do episódio em que o apóstolo Pedro decepa com uma espada a orelha de Malco, servo do sumo sacerdote, vale lembrar que foi Jesus que mandou comprar a espada que Pedro usava. Tudo bem que ele usou o acontecido para apregoar seu discurso pacifista, pois “quem matar com a espada com a espada morrerá”. Mas ninguém teria sido ferido se ele não tivesse mandado comprarem espadas, para início de conversa!

E para exemplificar como a Graça não é para todos, podemos dar um pulo no livro de Atos, bem no começo, com o ocorrido com Ananias e Safira. Os dois morreram porque, segundo Pedro, mentiram para o Espírito Santo. Isso porque não queriam dar todo o seu dinheiro para a incipiente Igreja. Até mesmo o Consolador é implacável. A propósito, falar mal do Espírito Santo é imperdoável, fica a dica!

Através desse percurso bíblico, podemos perceber como Deus de fato faz acepção de pessoas! Sim, Javé, Jeová ou Yaweh, em qualquer uma das Três Pessoas que o constituem, não perdoa, não se compadece e não releva. Sua lógica de crime e castigo é tão rígida, tão estrita e mesquinha, que ele não poupa uma das suas três manifestações (o Filho) porque decidiu não ser capaz de perdoar. Quem diz que a Bíblia ensina a perdoar ou está enganado, ou engana. Não, a “Palavra de Deus” determina que toda dívida deve ser paga, sem perdão. Ah, e tem dívida impagável. Então, é melhor ficar de olho, pessoal!

É por essas e algumas outras que imagino como o uso da Bíblia como recurso paradidático pode mandar mensagens no mínimo confusas para as crianças e adolescentes. Inserir nas escolas esse livro tendencioso e regado a sangue pode ser profundamente danoso, um perigo real para estudantes em formação. Para evitarmos qualquer equívoco e prejuízo para o desenvolvimento cognitivo desses pequenos estudantes, ou melhor, de todas as pessoas que quiserem ler as “escrituras”, que tal as sociedades bíblicas e instituições cristãs passarem a incluir avisos de gatilho na capa de suas novas edições da Bíblia “Sagrada”? Poderiam evitar muita dor de cabeça. Como a que eu estou sentindo, ao terminar de escrever este texto.

segunda-feira, março 07, 2022

Demian - Entre dois mundos, uma marca


Sinclair é um jovem diferente. Desde cedo, sente essa diferença. Com uma visão arguta da vida, ele consegue perceber a tensão entre duas existências - a sagrada e a profana. Ansiando sempre pertencer ao mundo sagrado e luminoso, representado por seus pais religiosos, o jovem ainda em pequeno sente profunda atração pelo mundo profano e sombrio, que se representa nos criados que trabalham na casa e nas conversas que eles travam entre si, com relatos sobre sórdidos acontecimentos. Sinclair se percebe fascinado por esse mundo de violência e libertinagem, mesmo querendo pertencer totalmente ao universo sagrado e religioso de seus pais. Assim, essa dualidade lhe causa sofrimento e profunda comoção.

Tudo começa a mudar quando ele encontra Demian. Um pouco mais velho que Sinclair, o garoto tem uma postura altiva, por vezes adulta, mesmo sendo ainda criança. Demian não teme o tal mundo sombrio e age como se pudesse pertencer ao mesmo sem perder seu ar de nobreza e dignidade. Demian parece acima de conceitos de religião e moralidade. Com isso, irá provocar Sinclair, para que este busque seu próprio caminho e alcance um estado de plena humanidade, como detentor da "Marca de Caim".

Assim é, em linhas gerais, o início do romance Demian, de Herman Hesse. Profundo e denso, o livro é narrado pelo próprio Sinclair e nos apresenta três momentos de sua vida: A infância, aos dez anos, a adolescência, aos dezesseis, aproximadamente, e a idade adulta, aos dezoito anos. O livro salta grandes períodos de tempo, focando-se nestes três momentos com maior minúcia e atenção.

Mas afinal, o que quer Demian? Desde cedo ele provoca Sinclair, pois sente nele uma altivez, um porte que o destaca dos demais seres humanos. Demian diz reconhecer no protagonista a "Marca de Caim". Esta não seria sinal de uma maldição, mas da verdadeira liberdade. Aqueles que a tivessem não estariam presos aos preconceitos antiquados, aos valores religiosos e morais, mas estariam prontos a indicar o rumo para o futuro da humanidade.

Desta forma, Hesse reescreve todo o mito bíblico de Cain e Abel, dando-lhe novo significado. Cain deixa de ser um proscrito, amaldiçoado por deus, mas seria na verdade alguém amado pelo altíssimo, que lhe concederia a marca para que fosse protegido. Os demais homens teriam inventado a história do assassinato de Abel por temerem Cain e sua condição de alguém "invulnerável".

Como símbolo central do romance está o falcão que nasce de um ovo, sendo este o mundo, o qual deve ser destruído para que o nascimento possa ocorrer. Sinclair diversas vezes é levado a pensar no símbolo. Afinal, qual dos mundos deve ser destruído para que o nascimento de uma nova humanidade possa ocorrer?

Demian é de fato um romance complexo e profundo. Suas leituras podem ser várias, o que mostra a genialidade do autor. É importante destacar que essa diferença entre sagrado e profano pode também ser uma tensão de classes, uma vez que os pais de Sinclair representam a burguesia. As pessoas ligadas ao mundo considerado profano e sombrio são os pobres, a criadagem, os empregados. Com isso, ao misturar ambos os mundos e destruí-los, Hesse defende que não há superioridade nos valores burgueses. 

Com um texto profundo e inquietante, Demian é um romance inesquecível, capaz de abalar crenças e preceitos. E apesar de ter mais de 100 anos desde que foi publicado, não perde a atualidade. Uma obra que parece ter sido escrita para o nosso tempo de sombras e incertezas.


Ficha Técnica

Editora: Civilização Brasileira

Ano: 1975

Páginas: 162

Tradutor: Ivo Barroso

Perfil do livro no Skoob:https://www.skoob.com.br/demian-1420ed451597.html

quinta-feira, dezembro 09, 2021

SalmOdiando

Fui moço

Agora sou velho 

E quando o justo 

Foi desamparado

E sua descendência 

Mendigou o pão

Não hesitei

Resoluto

Eu olhei para

O outro lado.

segunda-feira, maio 04, 2020

Meu caminho como leitor

Cada leitor tem um percurso único. Cada leitura também é única, a meu ver. Contudo, existem aproximações, interseções, que nos ajudam a entender nosso percurso como algo maior, mais amplo, cujos contornos nos ligam a tantas pessoas diferentes de nós.

Durante o curso Leituras e Infâncias, fui convidado a evocar de minha memória os momentos em que tive contato com a leitura em voz alta, quando ainda era criança.

Existe um momento especialmente marcado em minha infância. Eu tinha por volta de 9 anos. Cheguei à sala de casa e vi meu padastro lendo O Pequeno Príncipe. Ele estava sentado no sofá, em silêncio. Eu me sentei ao seu lado e ele, ao perceber, começou a ler um trecho em voz alta. Era justamente o trecho em que o príncipe e a raposa conversam sobre os sentidos da palavra cativar.

De repente, eu senti lágrimas escorrendo de meus olhos. Eu chorava, de tão emocionado que estava com o amor que a raposa e o príncipe haviam cultivado um pelo outro.

Houve outros momentos de leitura. Lembro-me de segurar em minhas mãos livros de contos de fadas, enquanto alguém lia para mim. Um dos contos era A pequena vendedora de fósforos, de Andersen.
A imagem era vívida e quase se podia sentir o frio que acometia a pequena menina. Assim como o calor da luz que a iluminou enquanto voava em companhia de sua avó.

E por falar em avó, a mãe de minha mãe contava histórias para mim. Algumas eram assombradas. Outras, cômicas. Sua voz soava tranquila, quase num sussurro, enquanto ela me guiava por caminhos de fantasia. 

Outra provocação do curso foi me fazer ponderar sobre o que teria facilitado meu percurso como leitor, bem como o que teria dificultado o mesmo.

A proximidade com os livros facilitou muito a minha formação leitora, ao mesmo tempo que a religião a dificultou. A partir da visão cristã, havia livros impróprios, histórias malditas, por falarem de magia, bruxas e monstros. Essa ideia não perpassou minha infância, mas contaminou com muita força parte da minha adolescência e me afastou dos livros. Em certa época, tornei-me leitor quase exclusivamente da bíblia e de livros religiosos.

Existe outro dificultador em relação a minha formação leitora, que foi o fato de ter morado no interior de Minas Gerais. A cidade em que eu morava, embora não fosse muito pequena, não contava com biblioteca ou livraria. O acesso a livros novos também era difícil, pois estes eram caros. Por isso, eu geralmente recebia livros usados, comprados em sebos de Belo Horizonte, ou doados por familiares. Tenho em meu acervo até hoje livros com nomes de parentes na contra-capa. 

A verdade é que eu tinha muita dificuldade em ler, nos primeiros anos. A partir da terceira série, porém, fui apresentado a livros da série Vaga-lume por minha mãe. Ela havia sido encorajada a isso por minha professora. Eu estava no quarto ano, antiga terceira série. 

A professora recomendou a minha mãe que não me obrigasse a ler, mas fizesse sutis sugestões. Os livros eram mostrados, oferecidos, mas nunca impostos. Essa ausência da imposição aguçou minha curiosidade. A partir do livro O caso da borboleta Atiria, minha paixão pelos livros teve início e tal fogo nunca mais se extinguiu.

Acho que essa premissa, a de nunca forçar ou obrigar uma leitura, foi fundamental para não me afastar dessa nova possibilidade. Assim, quando os livros se tornaram um lugar seguro para mim, um abrigo e uma casa, pude ter sempre em mente que ler é, antes de tudo, um convite. 

quarta-feira, abril 08, 2020

Quando as trevas fazem vez de luz

Imagem: Mikhail Timofeev
Sempre evito fazer referências bíblicas. Coisa do meu passado, de experiências ruins com o horror que sentia quando eu via uma pessoa falar de amor ao próximo e declarar, logo em seguida, que deus deveria "pesar a mão" contra alguém que não fosse cristão evangélico.

Evito referências bíblicas porque sei como elas podem ser usadas para oprimir, discriminar, massacrar, justificar o injustificável. Porém, algumas vezes sou surpreendido com absurdos tão grandes que acabo recorrendo à própria bíblia para tentar refletir um pouco.

O atual presidente se diz cristão. Declara que o Brasil é um país cristão. Costuma falar de deus a cada pronunciamento que faz. E assim continua a vender sua imagem de representante do povo cristão no Brasil.

Então, paro sou levado a refletir sobre as palavras e ações de Bolsonaro e concluo que as coisas estão no mínimo deslocadas. Para não dizer o pior.

No evangelho de Mateus, no capítulo 6, Jesus começa o famoso Sermão da Montanha. E em dado momento ele declara: "se a luz que há em ti forem trevas, quão grandes serão essas trevas!"

Não sou um estudioso da Bíblia. Fazem anos que não a consulto, mas fiquei inculcado com esse trecho, que me veio depois de ouvir um presidente falar que uma pandemia que já matou milhares de pessoas ser "uma gripezinha" e que o cuidado que as pessoas estão tendo não passa de "histeria".

E me recordo de outras coisas que o sujeito disse ao longo de sua carreira política. Uma de suas primeiras polêmicas foi colocar na mesma frase as palavras "estupro" e "merece". Uma frase claramente ofensiva, sobre a qual nem vale discutir aqui. Só vou argumentar que a frase dele faz tanto sentido quanto dizer: "só não como cocô porque não é doce."

Essa não foi a única frase cruel e criminosa de tantas. Nem vale elencar todas aqui. Destaco apenas aquelas que me causaram profundo nojo. Ele disse, por exemplo, que o crime de extermínio era bem-vindo no Rio de Janeiro. Sua fala está nos anais da assembleia legislativa do Rio. Todo mundo lembra de sua abjeta homenagem a um torturador durante a votação do impeachment.

Uma de suas mais recentes declarações foi reclamar sobre um comprovante. "Querem comprovante de tudo." Afinal, ele se declara acima de qualquer suspeita, não tem que dar satisfação a ninguém. Ao que parece, nem aos seus eleitores.

E assim continua sua trajetória em perverter as coisas. Com Bolsonaro, crime é defendido, não é preciso ter comprovante, estupro está ligado a merecimento, pandemia é gripezinha.

Eu simceramente gostaria que, nessa última, ele não estivesse errado.