Vinte de janeiro de 1971. Seria um feriado como outro qualquer, não fosse a prisão clandestina, o sequestro e desaparecimento de um homem. E o crime foi perpetrado por agentes do Estado Brasileiro. Rubens Beyrodt Paiva, ex-deputado cassado, engenheiro, foi rendido em sua casa por militares da aeronáutica e conduzido para interrogatório. A família não imaginava que nunca mais o veria.
Esse é o fato sobre o qual gira o livro Ainda estou aqui. Um acontecimento histórico, investigado e documentado. O que mais assusta é que, décadas depois, o caso está longe de ser solucionado. Afinal, ele atesta crimes realizados por agentes do Estado, com a convivência do regime vigente. O que se sabe do caso é que Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas sofridas. Seu torturador e assassino, já falecido, foi devidamente identificado. A localização do corpo, porém, ainda é um mistério.
O livro, escrito por Marcelo Rubens Paiva, renomado e premiado escritor, filho de Rubens Beyrodt Paiva, nos guia por memórias pessoais, registros históricos e depoimentos, de forma que o autor busca montar um quebra-cabeças em que há peças faltando, praticamente impossíveis de serem recuperadas. Outro ponto importante da narrativa é a luta de Eunice Paiva, viúva da vítima. Uma mulher forte, assertiva, que aos 41 anos se viu sem o marido, com cinco filhos para cuidar. Decide então batalhar duro, estudar Direito. Torna-se uma referência no Direito dos Povos Indígenas, com contatos como Ailton Krenak.
Por fim, apresentado de forma entrecortada, está o doloroso processo do surgimento e evolução do Alzheimer de Eunice Paiva. O autor narra o adoecimento dessa mãe que sempre foi referência de mulher forte e decidida. Uma mulher prática. Não é sem pesar que ele descreve os sintomas e estágios de evolução da doença.
É um livro sobre memória mas também sobre esquecimento. Uma narrativa que busca, de forma contundente e encarnecida, reconstituir todo o cenário e contexto do desaparecimento de Rubens Paiva. É também uma obra sobre os melhores anos de um menino, e como sua vida foi arrancada desse ambiente idílico e lançada rumo a uma nova realidade. E a crueldade da vida é tão grande que além de ter perdido o pai no início da adolescência, o autor tem que testemunhar também o definhamento da mãe, seu desaparecimento em vida. Apesar disso, Eunice declara, de tempos em tempos: Ainda estou aqui. É um brado de protesto contra o próprio sumiço dentro de si. Uma declaração de vida e resiliência.
Trata-se, portanto, de um intrincado emaranhado de narrativas, guiadas magistralmente por um artífice da palavra. Marcelo Rubens Paiva tem uma prosa cativante, um misto de confidência com testemunho, narrado na melhor forma. Seria um livro árido, não fosse o trabalho excelente que o autor faz da linguagem, relacionando acontecimentos, lembranças, notícias e depoimentos. Uma obra que busca lançar luz a um evento sombrio e também procura ainda que um mínimo senso de justiça.
Como apêndices, estão a denúncia do crime contra Rubens Paiva e seu acolhimento judicial. Realizei a leitura de ambos com grande pesar. É de fundamental importância que esses apêndices sejam de conhecimento geral, por um mínimo de reparação histórica. Esses documentos expandem a experiência de leitura e tornam o caso ainda mais palpável, ao oferecer detalhes do que já foi apurado sobre o acontecimento, o que contribui para a sua memória histórica
Por fim, uma nota que aponta que o caso está suspenso pelo STF. O que mostra que o brado por justiça continua a morrer na boca de todos aqueles afetados pelos crimes hediondos contra a humanidade promovidos pela sanguinária ditadura iniciada em 1964.