quarta-feira, novembro 27, 2024

Ainda estou aqui - Um brado por justiça



Vinte de janeiro de 1971. Seria um feriado como outro qualquer, não fosse a prisão clandestina, o sequestro e desaparecimento de um homem. E o crime foi perpetrado por agentes do Estado Brasileiro. Rubens Beyrodt Paiva, ex-deputado cassado, engenheiro, foi rendido em sua casa por militares da aeronáutica e conduzido para interrogatório. A família não imaginava que nunca mais o veria.

Esse é o fato sobre o qual gira o livro Ainda estou aqui. Um acontecimento histórico, investigado e documentado. O que mais assusta é que, décadas depois, o caso está longe de ser solucionado. Afinal, ele atesta crimes realizados por agentes do Estado, com a convivência do regime vigente. O que se sabe do caso é que Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas sofridas. Seu torturador e assassino, já falecido, foi devidamente identificado. A localização do corpo, porém, ainda é um mistério.

O livro, escrito por Marcelo Rubens Paiva, renomado e premiado escritor, filho de Rubens Beyrodt Paiva, nos guia por memórias pessoais, registros históricos e depoimentos, de forma que o autor busca montar um quebra-cabeças em que há peças faltando, praticamente impossíveis de serem recuperadas. Outro ponto importante da narrativa é a luta de Eunice Paiva, viúva da vítima. Uma mulher forte, assertiva, que aos 41 anos se viu sem o marido, com cinco filhos para cuidar. Decide então batalhar duro, estudar Direito. Torna-se uma referência no Direito dos Povos Indígenas, com contatos como Ailton Krenak.

Por fim, apresentado de forma entrecortada, está o doloroso processo do surgimento e evolução do Alzheimer de Eunice Paiva. O autor narra o adoecimento dessa mãe que sempre foi referência de mulher forte e decidida. Uma mulher prática. Não é sem pesar que ele descreve os sintomas e estágios de evolução da doença.

É um livro sobre memória mas também sobre esquecimento. Uma narrativa que busca, de forma contundente e encarnecida, reconstituir todo o cenário e contexto do desaparecimento de Rubens Paiva. É também uma obra sobre os melhores anos de um menino, e como sua vida foi arrancada desse ambiente idílico e lançada rumo a uma nova realidade. E a crueldade da vida é tão grande que além de ter perdido o pai no início da adolescência, o autor tem que testemunhar também o definhamento da mãe, seu desaparecimento em vida. Apesar disso, Eunice declara, de tempos em tempos: Ainda estou aqui. É um brado de protesto contra o próprio sumiço dentro de si. Uma declaração de vida e resiliência.

Trata-se, portanto, de um intrincado emaranhado de narrativas, guiadas magistralmente por um artífice da palavra. Marcelo Rubens Paiva tem uma prosa cativante, um misto de confidência com testemunho, narrado na melhor forma. Seria um livro árido, não fosse o trabalho excelente que o autor faz da linguagem, relacionando acontecimentos, lembranças, notícias e depoimentos. Uma obra que busca lançar luz a um evento sombrio e também procura ainda que um mínimo senso de justiça.

Como apêndices, estão a denúncia do crime contra Rubens Paiva e seu acolhimento judicial. Realizei a leitura de ambos com grande pesar. É de fundamental importância que esses apêndices sejam de conhecimento geral, por um mínimo de reparação histórica. Esses documentos expandem a experiência de leitura e tornam o caso ainda mais palpável, ao oferecer detalhes do que já foi apurado sobre o acontecimento, o que contribui para a sua memória histórica

Por fim, uma nota que aponta que o caso está suspenso pelo STF. O que mostra que o brado por justiça continua a morrer na boca de todos aqueles afetados pelos crimes hediondos contra a humanidade promovidos pela sanguinária ditadura iniciada em 1964.


quarta-feira, novembro 20, 2024

Reencontros literários e novas amizades em Carmo da Mata

Autoras e autores em Carmo da Mata

Era uma quinta-feira. O dia estava nublado e a temperatura amena. Um ônibus com destino a Lavras, vindo de Divinópolis, parou diante da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, em Carmo da Mata, Minas Gerais. Dela desceu um escritor esbaforido e entusiasmado. Essa pessoa era eu.

Estávamos no início de novembro. Dia 7, para ser mais preciso. Meus olhos esbanjavam encantamento por estar mais uma vez nessa cidade onde tantas coisas boas aconteceram, um ano atrás. Estava lá para mais uma edição da Flicar - Festa Literária de Carmo da Mata. Criado e organizado por Júnia Paixão, o evento é uma celebração da Literatura, com diversas atividades propiciando a reunião de autoras e autores com o público leitor. É um momento também de renovar amizades e formar novos laços de companheirismo. 

E foi isso mesmo que aconteceu. Revi muita gente que conheci na última Flicar: Mírian Freitas, Júnia Paixão, Servos Cardoso, Luiz Eduardo de Carvalho, Pedro Gontijo, Thaís Campolina, Hércules Toledo Corrêa e seu marido, Fred. Reencontrei a Gilberta Kis, companheira do Pedro Gontijo, que ele me apresentou no Flipoços, em Poços de Caldas. Tive também o privilégio de encontrar a professora Carla Coscarelli, que me deu aula há mais de vinte anos no curso de Letras da UFMG, e a professora Ana Elisa Ribeiro, premiadíssima, que também me deu aula na UFMG e hoje é professora titular do curso de Letras no CEFET-MG. Reencontrei a escritora e poeta Ana Paula Dacota, com quem pude estreitar os laços de amizade. Esteve lá tamém a Ilma Pereira, que conheço de eventos anteriores e da Liga de Autores Mineiros. Pude rever a Marcela Fassy e a Carla Andrade, que eu já admirava e pude conhecer pessoalmente no lançamento do livro Damascos feridos, da Mírian Freitas, ocorrido em Belo Horizonte. Conheci a escritora Mara Senna e a professora pesquisadora Débora D'ávila Reis. 

Fui apresentado a outras pessoas, como a autora Amanda Ribeiro, que realiza incríveis vídeo-poemas. Além disso, havia uma galera incrível da graduação e da pós-graduação em Letras do CEFET-MG. 

A programação foi rica e diversificada. A abertura, ainda na quinta-feira, contou com um sarau e uma apresentação teatral. Em seguida, foi o lançamento conjunto de várias pessoas, eu entre elas. Lancei meu livro de poesia Cicatriz com muita alegria. Aproveitei para descobrir os livros das pessoas que estavam lançando comigo. Foi maravilhoso.

Na sexta de manhã, realizei na Escola Estadual Joaquim Afonso Rodrigues uma oficina chamada "Meu Primeiro Livro". Os estudantes se envolveram e participaram ativamente, ficando encantados com a proposta. Em seguida, participei da oficina de criação de zine da Carol Vasconcellos. 

Nessa mesma sexta, às 17h, tive o privilégio de participar da mesa "O lugar da Poesia na Contemporaneidade", juntamente com Alex Zani, Mírian Freitas, Mara Senna e Thaís Campolina. A mediação coube a Alícia Teodoro, que fez uma primorosa condução. 

A Festa continuou linda com outras mesas de debate e apresentações literárias. A programação completa pode ser conferida aqui: @filcar_carmodamata. O encerramento aconteceu no sábado, à noite. Porém, eu ainda aproveitei o domingo para curtir Carmo da Mata com algumas pessoas amigas. Foram momentos descontraídos de relaxamento, após as intensas atividades da Festa. Voltei para casa na segunda-feira, com a mente cheia de boas memórias e a mala repleta de livros!

Livros de autoras e autores da Flicar.

Fica registrada aqui minha gratidão à pessoa da Júnia Paixão por mais uma vez acreditar no meu trabalho e ter me permitido participar da programação de um evento tão incrível. E também a Carmo da Mata, pela acolhida sempre tão generosa!


Domingo em Carmo da Mata


Para homenagear a Flicar, fiz um poema, que transcrevo abaixo:

Celebração 


Entre badaladas e anúncios fúnebres, 

a Palavra era celebrada.

Gotas fortes de chuva molhavam 

os caminhos dos livros abertos. 

Os corpos se encantavam 

em meio a tanta água.

Linhas cruzadas, papel e caneta, 

furiosa busca. 

Histórias se derramando, líquidas, 

sobre ouvidos e olhos atentos. 

Na melodia das gotas sobre a lona 

a valsa literária embalava os presentes. 

Não havia tempo. Nem memória. 

Tudo era força e beleza. 

Potência decantada 

e luz.

Carmo da Mata, 11 de novembro de 2024

quarta-feira, novembro 06, 2024

As dimensões da alma

Imagem por Janine Bolon de Pixabay


Certa vez, um médico resolveu pesar uma pessoa às portas da morte. Repetiu a pesagem logo que a pessoa morreu. O resultado deu uma diferença de 21 gramas. Com isso, passou-se a considerar que o peso (ou a massa) de uma alma seria justamente de 21 gramas.

A suposta experiência carecia porém de rigor científico. Essa ideia da massa da alma, da vida de uma pessoa, perdurou por décadas. Chegaram a fazer um filme disso. Hoje em dia, já foi desconstruída. Se a alma tem uma massa, ainda não foi possível mensurá-la.

O legista faz uma autópsia. Disseca o corpo de alguém. Retira os órgãos um a um e os pesa. Até mesmo o cérebro é pesado. Tudo é anotado meticulosamente. Depois, os órgãos são colocados de volta no lugar e o corpo é novamente costurado. Não foi encontrado vestígio de alma.

Nos rituais de embalsamamento do Egito Antigo, os órgãos também eram retirados, inclusive o cérebro. No lugar deles, eram colocadas flores. Ao invés de serem descartados, os órgãos ficavam guardados em ânforas. Ainda assim, nem mesmo os egípcios foram capazes de mensurar as dimensões da alma.

Talvez ela esteja só escondida no emaranhado de vísceras de nossos corpos. Talvez habite na língua, esse poderoso músculo que nos conecta a outras pessoas. E nos separa também. Ou quem sabe cada um dos nossos órgãos escondam em si um pedaço da alma.

O corpo continua um mistério no que toca à questão da transcendência. A alma permanece inalcançável para os instrumentos científicos, por mais avançados sejam. Estaríamos fadados ao completo esquecimento? Seria a alma um delírio? As religiões afirmam sua existência, apesar do ceticismo cansado de tantos cientistas.

A alma e sua massa continuam a nos despistar. Talvez seja porque não é possível pesar o que é etéreo. As leis da física não se aplicariam ao sobrenatural. Ou talvez tudo não passe de um mero delírio de quem não quer, com sua morte, desaparecer.