segunda-feira, setembro 26, 2011

A Cidade Suspensa – Parte VI

Kain percebe que se quiser continuar sua busca, deverá entrar no jogo e fazer suas apostas, pagando o preço pela informação de que precisa.

Praguejando, Kain vasculhou os bolsos mas, antes que retirasse as moedas de cobre, o vendedor apontou para o sobretudo do viajante, mais precisamente para um dos botões. Kain lembrou-se então que as coisas que compõem as pessoas, naquela cidade, valem muito. Sem vacilar, o viajante arrancou o botão e depositou-o na palma da mão do vendedor. 

Sorrindo, o Ambulante Chinês fechou os olhos, enquanto esfregava o botão, logo caindo num curioso transe. Uma voz bem diferente começou a recomendar:

“Agora não adianta nada, mas alguma coisa tem que ser feita. O dia acabou e logo a parte mais escura da noite vai chegar. Até lá, você tem que estar em algum lugar, algum abrigo. A noite aqui é muito, muito fria e o escuro devora gente. Nenhuma porta ou janela oferece abrigo e os Aqueles que Vagam ocupam as ruas desertas.” 

O mascate calou-se e respirou fundo. O silêncio pairou entre o dois de uma forma quase premonitória. Kain se sentia condenado. Vendeu uma parte de si mesmo só para ter a confirmação do que já sabia.

“Eu dou uma passagem de bonde para o freguês”, disse o Ambulante Chinês, retirando de um de seus muitos bolsos um pedaço de papel grosso. “É um bonde noturno e a linha não pára até que a noite acabe. Seguro lá vai ser bem!”

Kain pegou a passagem que o Ambulante Chinês lhe estendia. Desejava maiores explicações, mas então percebeu ao redor que a Cidade Suspensa estava bem mais escura que antes. Deu as costas ao vendedor sem agradecer e afastou-se.

Foi fácil para Kain encontrar o ponto de embarque do bonde, conforme havia indicado o Ambulante Chinês. Ficava em uma rua estreita, mais escura que as outras, com um abrigo para chuva.

“Como se nessa porcaria de cidade chovesse”, pensou o forasteiro, enquanto olhava ao redor. Tudo no mais completo silêncio, enquanto alguns postes, quase solitários, começavam a funcionar, despejando uma luz amarelada em trechos irregulares das avenidas, visíveis ao longe. O ar era carregado, fedorento, como se fosse o interior de um porão. 

O viajante abriu o pesado capote que o cobria e esfregou o pescoço. A imagem de Scarlate, a Cortesã, veio então à sua mente. A pele branca qual leite, contrastando com os cabelos vermelhos, lançaram o forasteiro em um semi-delírio.

Um movimento furtivo chamou a atenção de Kain. Havia mais alguém no abrigo. Recompondo-se, o viajante assumiu uma postura defensiva, examinando a silhueta de um provável companheiro. A penumbra que envolvia o ponto de embarque não permitia que ele identificasse aquela pessoa, tornando-a uma incógnita sem rosto, feita de sombra. Kain achou melhor manter distância.

Ficaram ambos em silêncio. O desconhecido era como um buraco escuro, a brecha para o vazio. No entanto, sua presença era mais palpável e urgente que o abrigo, os postes, os edifícios. Kain sentiu os pêlos de sua nuca eriçados. 

O som perturbador do chiar de ferros em movimento feriu o silêncio e rompeu o impasse do momento. O bonde se aproximava.

Era um veículo de cor indefinida, por causa da escuridão, mas as luzes internas deixavam-no com a aparência de abóbora em noite de Halloween. Emitia os sons estridentes de metais se arranhando, enquanto passeava por trilhos que Kain não conseguira perceber. Após instantes de observação mais atenta, percebeu que os trilhos na verdade surgiam do chão à medida que o bonde se locomovia, para depois desaparecerem quando o veículo passava.

Ao sinal do viajante, o bonde parou no ponto de embarque. Um agente de uniforme surrado e rosto macilento estendeu a mão, esperando o bilhete. Kain entregou o pedaço de papel e embarcou. Enquanto o veículo se punha em movimento, o viajante percebeu de relance que o misterioso vulto ficara para trás, como se aguardasse locomoção mais apropriada. Sentindo um estranhamento crescente, Kain dirigiu-se para o fundo do bonde, enquanto observava as pessoas maltrapilhas e assustadas que o fitavam com a acidez de quem quer desviar olhares curiosos. Um solavanco inesperado lançou Kain para o banco que escolhera e, enquanto se acomodava, passou a olhar pela janela. O vidro era manchado, como se alguém tivesse tentado lavá-lo e em seguida, desistido. Olhando ao longo do corredor, dava para ver as costas do controlador do bonde, que usava o mesmo uniforme gasto que trajava o encarregado de receber as passagens.

A atenção de Kain foi totalmente desviada para o lado de fora. A noite foi tomada de sons de agudo sofrimento. O bonde foi cercado por uma força invisível, um sentimento doloroso que fez os passageiros desavisados, como Kain, pensarem que o veículo seria esmagado como uma lata de alumínio. Lá fora, vultos de forma indefinida povoavam as ruas.

Naquele momento, Kain percebeu que aquela era a hora noturna da pior escuridão.

quinta-feira, setembro 22, 2011

Sobre pedaços de assuntos inacabados

Van Gogh O quarto do Artista 1889


Abro minha mochila: junto com o bloco de anotações encontro algumas outras pistas interessantes. Dentre elas, a capa que comprei para a máquina de lavar, ainda dobrada dentro da embalagem. Encontro também uma revista de palavras cruzadas que nunca terminarei e um livro comprado anteontem (ou teria sido ontem?) que não lerei tão cedo.

Descubro que minha mochila é como eu mesmo: um depósito de coisas inacabadas ou não resolvidas. Os quadros que ela pintou ainda estão lá no apartamento, encostados num canto atrás da porta. Não assumiram o lugar na parede a eles destinado. Sequer têm a assinatura dela. São testemunhas quase mudas, mas transmitem a energia dos gestos dela, as suas escolhas de tons, seu desapego quase irresponsável, seu amor ao trivial. Só meu silêncio repete o nome dela cada vez que os olho. Mas deixa estar. Não quero falar dos quadros, são mais um de tantos assuntos inacabados.

Também não quero ser tomado por alguém triste. Todos nós temos assuntos não resolvidos. Alguns ficam para trás, no caminho, como destroços de nós mesmos, evidências do nosso naufrágio diário. Outros continuam conosco, igualmente inúteis, mas a diferença é que não os largamos. Nosso consciente os esquece, mas eles continuam lá, como parte da paisagem que somos nós.

Carregar um peso não seria tão ruim se minhas costas não doessem tanto. As cartas também, não me importaria de mantê-las comigo. Eu me importo e não as queimo. Estão lá, em algum canto do guarda-roupa bagunçado, esperando que eu vá ressuscitá-las. Assim como este papel, parte de um bloco de anotações feito a partir de folhas de rascunho. Dou vida às minhas ideias a partir do lixo, da ruína. Quando olho estas folhas, estejam elas vazias ou cheias de meus rabiscos, é como se estivesse diante de um espelho.

Afinal, o que o homem toca que não seja obviamente incompleto?

quinta-feira, setembro 15, 2011

A Cidade Suspensa – Parte V


Após desfrutar de estranhos prazeres com Scarlate, Kain é devolvido às ruas da Cidade Suspensa para continuar sua busca.

Logo quando saiu da taberna, Kain avistou o Ambulante Chinês, que o aguardava. O mascate exibia um sorriso torto, que beirava o escárnio. O viajante percebeu que os raios do crepúsculo ainda coroavam os edifícios mais altos da Cidade. Inicialmente perplexo, pensou um pouco e depois concluiu que o fluxo do tempo e sua percepção, na Cidade Suspensa, deveriam ser bem peculiares. Kain aproximou-se do vendedor.

“Parece feliz, freguês." disse o oriental "Moça bonita, a Scarlate, né? Parece dez anos mais jovem depois de estar com ela, né?”

Mas Kain não ligou muito para os comentários do outro. Estava se sentindo mais leve, pois sua jornada naquela cidade voadora parecia mais fácil do que havia calculado. Ao pensar na condição de vôo da Cidade, estranhou ainda estarem no chão. Perguntou ao Ambulante Chinês:

“Quando a Cidade irá decolar, afinal?”

“Ora, já decolou, freguês” respondeu, ainda sorridente, o vendedor. “Logo que você chegou, né?”

“Mas eu não sinto nada... Pra mim, ainda estamos no chão.”

“Todo mundo está no chão, freguês, todo mundo...” limitou-se a dizer o homem, antes de mudar de assunto “ficar na cidade, conseguiu?”

“Sim, já tenho um laço” declarou, satisfeito. "Devorei o coração de Scarlate.”

O Ambulante Chinês soltou uma sonora gargalhada. Kain observou-o, sereno, embora não
apreciasse a reação do oriental.

“Corações de cortesãs não servem para laço, patrão. Precisa achar um coração sem marca de dentes. Por aqui difícil isso ser.. Mas vender um eu posso, não tem laço, é artificial, mas é mais gostoso que o de uma cortesã, né?"

Aquela resposta deixou Kain muito irritado com toda a situação. Sentiu-se enganado. Tudo bem que Scarlate valia mais do que duas moedas de cobre, mas o Ambulante deveria ter sido mais claro em sua informação. Pelo visto, o viajante só fora enviado para a taberna para cumprir outros propósitos. Quase foi dominado pela vontade de punir o chinês. 

“E o que eu faço?” perguntou Kain, sentindo o cansaço da viagem começar a cobrar seu preço sobre aquele corpo não tão jovem.

“Isso agora tem preço, né?” respondeu o Ambulante, acentuando a agudeza de seu sorriso. “É informação, agora tem um preço.”

sábado, setembro 03, 2011

A Cidade Suspensa – Parte IV

Kain tem um exótico encontro com uma mulher fatal, que poderá ajudá-lo a alcançar seu objetivo...


Scarlate deixou o balcão sob os cuidados de outra garota e quase arrastou Kain para além de uma porta lateral, por um corredor que dava em quartos para uso particular. Segurava com firmeza a mão esquerda do estrangeiro. Entraram em um dos quartos, mobiliado com uma cama rústica e uma mesa com um candeeiro onde uma vela ardia. 

A Cortesã trancou a porta atrás dele, estendeu a mão para a vela e pronunciou uma palavra estranha que fez a pequena chama brilhar em tom vermelho vivo. Ela então cravou as unhas com força em seu próprio peito, enfiando os dedos até que a mão fosse também enterrada. Kain observava com um misto de curiosidade e nojo a complicada operação que ocorria.

Com um suspiro, Scarlate enfiou o resto da mão direita no tórax e puxou para fora seu coração, que pulsava irregular e estava coberto de marcas de mordidas, cicatrizes como as que cobrem os braços de um guerreiro já velho e cansado. Apesar de muito marcado, aquele coração batia com tal força que chegou a despertar certa melancolia em Kain, ao percebê-lo tão vivo e pulsante. 

“O que é isto?!” perguntou Kain, tentando disfarçar seu olhar melancólico. “Esse coração tá uma droga. Não vou comer isso.”

Scarlate observou-o por alguns instantes. Novo suspiro.

“Não sei de onde vem, estrangeiro, mas não se rejeita um coração por aqui. Não seja rude diante de uma dama.”

Kain olhou resignado para Scarlate, a Cortesã, temendo que ela tivesse percebido sua fraqueza. Se quisesse ajuda, seria melhor não ofender aquela mulher. Dando de ombros, ele tomou o coração entre as mãos.

“Você só pode comer um décimo dele, nada mais” advertiu-o a moça. “A chama da vela voltará ao normal, marcando o fim do contrato.”

Kain girou o coração em suas mãos, procurando uma área sem marcas. Mordeu um pedacinho e descobriu que o gosto era muito bom, melhor do que imaginava. Deitou-se na cama, e Scarlate deitou-se ao seu lado. Kain fechou os olhos, enquanto dava pequenas mordidas, buscando aproveitar seu bocado, sorvendo calmamente a parte do coração de Scarlate que havia à disposição.

Quando a chama da vela voltou ao normal, Kain sentia um misto de vazio e satisfação. Levantou-se, para deixar o recinto, mas Scarlate segurou-o pelo braço. O coração ainda jazia do lado de fora, no colo da moça, sangrando das mordidas que Kain fizera. Sem perceber, o viajante havia consumido mais do que lhe fora permitido, chegando a tirar um bom pedaço. A moça estendeu-lhe algo.

“Leve isto com você. Irá ajudá-lo a continuar na Cidade.”

Sem proferir palavra, Kain tomou o objeto das mãos de Scarlate e examinou-o brevemente. Parecia ser uma medalha antiga, com inscrições misteriosas, indecifráveis. Ainda em silêncio, o viajante deixou o recinto. A Cortesã, após alguns segundos de meditação, enfiou logo o coração no peito e correu a procurar papel e pena. Alguém importante precisava ser informado dos últimos acontecimentos.