Kain percebe que se quiser continuar sua busca, deverá entrar no jogo e fazer suas apostas, pagando o preço pela informação de que precisa.
Praguejando, Kain vasculhou os bolsos mas, antes que retirasse as moedas de cobre, o vendedor apontou para o sobretudo do viajante, mais precisamente para um dos botões. Kain lembrou-se então que as coisas que compõem as pessoas, naquela cidade, valem muito. Sem vacilar, o viajante arrancou o botão e depositou-o na palma da mão do vendedor.
Sorrindo, o Ambulante Chinês fechou os olhos, enquanto esfregava o botão, logo caindo num curioso transe. Uma voz bem diferente começou a recomendar:
“Agora não adianta nada, mas alguma coisa tem que ser feita. O dia acabou e logo a parte mais escura da noite vai chegar. Até lá, você tem que estar em algum lugar, algum abrigo. A noite aqui é muito, muito fria e o escuro devora gente. Nenhuma porta ou janela oferece abrigo e os Aqueles que Vagam ocupam as ruas desertas.”
O mascate calou-se e respirou fundo. O silêncio pairou entre o dois de uma forma quase premonitória. Kain se sentia condenado. Vendeu uma parte de si mesmo só para ter a confirmação do que já sabia.
“Eu dou uma passagem de bonde para o freguês”, disse o Ambulante Chinês, retirando de um de seus muitos bolsos um pedaço de papel grosso. “É um bonde noturno e a linha não pára até que a noite acabe. Seguro lá vai ser bem!”
Kain pegou a passagem que o Ambulante Chinês lhe estendia. Desejava maiores explicações, mas então percebeu ao redor que a Cidade Suspensa estava bem mais escura que antes. Deu as costas ao vendedor sem agradecer e afastou-se.
Foi fácil para Kain encontrar o ponto de embarque do bonde, conforme havia indicado o Ambulante Chinês. Ficava em uma rua estreita, mais escura que as outras, com um abrigo para chuva.
“Como se nessa porcaria de cidade chovesse”, pensou o forasteiro, enquanto olhava ao redor. Tudo no mais completo silêncio, enquanto alguns postes, quase solitários, começavam a funcionar, despejando uma luz amarelada em trechos irregulares das avenidas, visíveis ao longe. O ar era carregado, fedorento, como se fosse o interior de um porão.
O viajante abriu o pesado capote que o cobria e esfregou o pescoço. A imagem de Scarlate, a Cortesã, veio então à sua mente. A pele branca qual leite, contrastando com os cabelos vermelhos, lançaram o forasteiro em um semi-delírio.
Um movimento furtivo chamou a atenção de Kain. Havia mais alguém no abrigo. Recompondo-se, o viajante assumiu uma postura defensiva, examinando a silhueta de um provável companheiro. A penumbra que envolvia o ponto de embarque não permitia que ele identificasse aquela pessoa, tornando-a uma incógnita sem rosto, feita de sombra. Kain achou melhor manter distância.
Ficaram ambos em silêncio. O desconhecido era como um buraco escuro, a brecha para o vazio. No entanto, sua presença era mais palpável e urgente que o abrigo, os postes, os edifícios. Kain sentiu os pêlos de sua nuca eriçados.
O som perturbador do chiar de ferros em movimento feriu o silêncio e rompeu o impasse do momento. O bonde se aproximava.
Era um veículo de cor indefinida, por causa da escuridão, mas as luzes internas deixavam-no com a aparência de abóbora em noite de Halloween. Emitia os sons estridentes de metais se arranhando, enquanto passeava por trilhos que Kain não conseguira perceber. Após instantes de observação mais atenta, percebeu que os trilhos na verdade surgiam do chão à medida que o bonde se locomovia, para depois desaparecerem quando o veículo passava.
Ao sinal do viajante, o bonde parou no ponto de embarque. Um agente de uniforme surrado e rosto macilento estendeu a mão, esperando o bilhete. Kain entregou o pedaço de papel e embarcou. Enquanto o veículo se punha em movimento, o viajante percebeu de relance que o misterioso vulto ficara para trás, como se aguardasse locomoção mais apropriada. Sentindo um estranhamento crescente, Kain dirigiu-se para o fundo do bonde, enquanto observava as pessoas maltrapilhas e assustadas que o fitavam com a acidez de quem quer desviar olhares curiosos. Um solavanco inesperado lançou Kain para o banco que escolhera e, enquanto se acomodava, passou a olhar pela janela. O vidro era manchado, como se alguém tivesse tentado lavá-lo e em seguida, desistido. Olhando ao longo do corredor, dava para ver as costas do controlador do bonde, que usava o mesmo uniforme gasto que trajava o encarregado de receber as passagens.
A atenção de Kain foi totalmente desviada para o lado de fora. A noite foi tomada de sons de agudo sofrimento. O bonde foi cercado por uma força invisível, um sentimento doloroso que fez os passageiros desavisados, como Kain, pensarem que o veículo seria esmagado como uma lata de alumínio. Lá fora, vultos de forma indefinida povoavam as ruas.
Naquele momento, Kain percebeu que aquela era a hora noturna da pior escuridão.