Van Gogh O quarto do Artista 1889 |
Abro minha mochila: junto com o bloco de anotações encontro algumas outras pistas interessantes. Dentre elas, a capa que comprei para a máquina de lavar, ainda dobrada dentro da embalagem. Encontro também uma revista de palavras cruzadas que nunca terminarei e um livro comprado anteontem (ou teria sido ontem?) que não lerei tão cedo.
Descubro que minha mochila é como eu mesmo: um depósito de coisas inacabadas ou não resolvidas. Os quadros que ela pintou ainda estão lá no apartamento, encostados num canto atrás da porta. Não assumiram o lugar na parede a eles destinado. Sequer têm a assinatura dela. São testemunhas quase mudas, mas transmitem a energia dos gestos dela, as suas escolhas de tons, seu desapego quase irresponsável, seu amor ao trivial. Só meu silêncio repete o nome dela cada vez que os olho. Mas deixa estar. Não quero falar dos quadros, são mais um de tantos assuntos inacabados.
Também não quero ser tomado por alguém triste. Todos nós temos assuntos não resolvidos. Alguns ficam para trás, no caminho, como destroços de nós mesmos, evidências do nosso naufrágio diário. Outros continuam conosco, igualmente inúteis, mas a diferença é que não os largamos. Nosso consciente os esquece, mas eles continuam lá, como parte da paisagem que somos nós.
Carregar um peso não seria tão ruim se minhas costas não doessem tanto. As cartas também, não me importaria de mantê-las comigo. Eu me importo e não as queimo. Estão lá, em algum canto do guarda-roupa bagunçado, esperando que eu vá ressuscitá-las. Assim como este papel, parte de um bloco de anotações feito a partir de folhas de rascunho. Dou vida às minhas ideias a partir do lixo, da ruína. Quando olho estas folhas, estejam elas vazias ou cheias de meus rabiscos, é como se estivesse diante de um espelho.
Afinal, o que o homem toca que não seja obviamente incompleto?
Defina acabada, completa e resolvida. Porque para mim, humildemente para mim, tudo que você descreveu são peças de um quebra-cabeça. Cada peça tem seu sentido próprio e assumem outros sentidos quando colocados juntos. Se encaixam, se moldam. E uma nova paisagem surge.
ResponderExcluir=)
OMG! Você é de uma sensibilidade e um talento que não ouso mensurar!
ResponderExcluirAmo muito os seus textos.
Um super beijo da sua fã!
Somos seres em dissolução. Somos apenas o reflexo de um mundo inacabado, ao qual pertencemos (uns mais que os outros). Somos seres impraticáveis. Infelizmente, não há uma solução para nós.
ResponderExcluirAs mesmas coisas que uma mulher toca que se encontram inacabadas. Há melancolia em seus escritos, ao menos nos fragmentos que aqui encontro. Mas são melancolias que refletem em outros espelhos e almas que se sentem do mesmo jeito.
ResponderExcluirAbraços, meu caro amigo!
Ah, Sam. Lendo seu texto, eu, esta metamorfose ambulante, o camaleão que se veste em negro, branco, dourado e hoje tem listras brancas e marrons, lembrei-me de mim mesma. Ou de como costumava ser. Carregar o passado é carregar o peso do mundo. Talvez o melhor seja fazer como na velha música dos Paralamas: "Eu hoje joguei tanta coisa fora, vi o meu passado passar por mim, cartas e fotografias, gente que foi embora, a casa fica bem melhor assim..." Seu texto é lindo de doer.
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