segunda-feira, julho 30, 2012

Frutos da Estação - II




Vista da praia de Scheveningen (Scheveningen 1882), Vincent Van Gogh




O vento imita as ondas
Negras nuvens anunciam
De um tempo além








Haikai produzido durante a atividade Estação da Poesia, realizada por Simone Teodoro.

sexta-feira, julho 27, 2012

Luka e o Fogo da Vida - Mundos de Pura Magia

O menino Luka passa por uma prova de fogo. Literalmente. 

Seu pai, o contador de histórias Rashid Khalifa, também conhecido como o Xá do blá-blá-blá, encontra-se vítima de um terrível feitiço, que o fez cair em profundo sono. Em seu lugar, surge então uma estranha e dúbia entidade, chamada Ninguémpai, que tem a mesma aparência do pai do menino. Enquanto Rashid Khalifa enfraquece, Ninguémpai fica dada vez mais forte.

Luka precisa salvar o Xá do blá-blá-blá antes que seja tarde demais. Auxiliado por dois companheiros inseparáveis, Cão, o urso e Urso, o cão, o menino conta também com a suspeita orientação de Ninguémpai. O menino deverá roubar o Fogo da Vida, que está muito bem guardado no coração do Mundo da Magia. Assim, Luka empreende uma perigosa jornada, impossível não fossem as vidas que recolhe pelo caminho. Sempre que morre, Luka retorna, mas somente enquanto tiver vidas extras. Contadores digitais permitem a Luka verificar o seu progresso, assim como as vidas que tem de reserva. 


Em seu caminho, ele encontra um casal de Aves Elefantes, que aceitam auxiliá-lo. O aliado mais importante, porém, será a Insultana de Ontt, uma jovem e bela rainha, conhecedora de muitos segredos sobre o Mundo da Magia e das melhores formas de vencer quase todos os obstáculos, bem como encontrar seres mágicos que poderão ajudar Luka em sua empreitada.

Sequência de Haroun e o Mar de HistóriasLuka e o Fogo da Vida é uma cálida homenagem de Salman Rushdie ao universo das narrativas, das histórias, sem discriminar o suporte. Fazendo referência não somente às culturas antigas e suas tradições, Rushdie se enraiza também nos demais universos narrativos, na cultura escrita e também (por que não?) na cibercultura. Em vários momentos são feitas referências a personagens lendários do mundo dos games.

Deixo aqui um dos mais belos trechos do livro:

"Nós sabemos que quando nos apaixonamos o Tempo deixa de existir, e sabemos também que o Tempo se repete, de modo que você pode ficar num mesmo dia pela vida inteira." Salman Rushdie, Luka e o Fogo da Vida.

Repleto de humor inocente, de referências bem amarradas e de personagens carismáticos, Luka e o Fogo da Vida é uma viagem pelo que há de melhor na alma humana: a capacidade de criar mundos infinitos moldados em pura magia.


Ficha Técnica:
Título: Luka e o Fogo da Vida
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 9788535917161
Ano: 2010
Páginas: 208

Página do livro no Skoob: htt://www.skoob.com.br/livro/114593-luka-e-o-fogo-da-vida/

quarta-feira, julho 25, 2012

A outra ponta do Sonho...



A ponta de grafite desliza livre sobre o papel encardido, grampeado em bloco. O lápis é grande demais para aquelas mãos pequenas, imaturas. Tão imaturas quanto seu sonho oco. O menino não sabe ainda o quão é perigoso sonhar.


Por isso ele deixa que sua mente vague livre por caminhos já conhecidos, caminhos queridos, cheios de magia. Com suas mãos pequenas de artesão iniciante, ele costura narrativas, une mundos antes contrários. Reinventa histórias como se fossem suas. E seu peito se enche de felicidade.


O menino não quer nada além de viver um pouco mais a fantasia. Não há jeito, tão novo e já bovarista. Não se importa com os comentários alheios. Que cada um encontre seu caminho particular. Ele o encontrou nas historias que lhe foram apresentadas pelas mãos grandes e morenas. Mãos femininas.

O lápis passeia sobre o papel dias a fio. Já são tantas páginas que o menino se assusta. Quase não acredita que tenham sido fruto de horas de brincadeiras negligenciadas. Antes das férias, ainda no início de sua empresa, os colegas o inquiriam com olhares e palavras. A princípio duvidavam de sua tenacidade, mas ao verem tantos recreios passados em sala, sobre o bloco de papel, trocaram a dúvida por palavras de incentivo. Agora, longe das aulas, o tempo é quase integralmente passado em uma sala antes por ninguém usada. Com os escritos sobre uma mesa baixa e escura, o menino segue pelas sendas dos dizeres.

A jornada que ele traça é curta, porém, perigosa. Monstros se levantam ante seus heróis. O mundo costurado pelo menino sofre perigo mortal. E corajosamente seus personagens emprestados enfrentam seu destino bélico.

Está concluída a aventura. O bem triunfa. O menino suspira ao ver sua obra pronta. O trabalho é entregue às mãos morenas, agora mãos de árbitro. Os papéis são levados para longe, para além das montanhas verdes. O tempo passa enganoso, ora ligeiro, ora arrastado. O menino escuta palavras aladas de que suas folhas agora estão em um forno, cozinhando, para em breve virarem livro.

Quando chega o dia, o menino mal acredita. Em suas mãos são depositadas as mesmas páginas, agora marcadas com a letra escura e formal da imprensa. Não consegue perceber a força dessa transformação. Ainda não é tempo.

Noites claras, repletas de luzes, envolvem o menino. Noites em que ele deverá deixar seu nome em muitas cópias daquele livro.  Noites em que cada pessoa levará consigo um pedaço do menino. Ele não acredita no que está diante dele. Talvez tenha sido outro a escrever aquela história. Talvez tenha sido outro a deixar seu nome na capa daqueles livros. Talvez tenha sido dessa forma que o menino percebera que seu sonho também podia amargar. 

segunda-feira, julho 23, 2012

Frutos da Estação - I





Vista da praia de Scheveningen (Scheveningen 1882), Vincent Van Gogh




Ondulam pelo vento
Nelas, nuvens em tom cinza
Enchem o mar








Haikai produzido durante a atividade Estação da Poesia, realizada por Simone Teodoro.

sexta-feira, julho 20, 2012

A Batalha do Apocalipse


Ninguém pode negar que A Batalha do Apocalipse seja um sucesso editorial. Com mais de 300 mil exemplares vendidos, este romance de Eduardo Spohr tem feito cada vez mais leitores. Gostaria, porém, de compartilhar alguns desconfortos que surgiram com minha leitura.

A trama gira em torno do anjo renegado Ablon, um querubim (anjo guerreiro), que teria sido expulso do céu ao desafiar o Arcanjo Miguel, junto com outros 17 anjos. Ablon e seus companheiros haviam formado uma irmandade que pretendia se insurgir contra o líder dos anjos, uma vez que Miguel planejava destruir a humanidade. Descoberta a conspiração, Ablon e seus companheiros são expulsos do céu, encerrados em corpos físicos e obrigados a vagar por toda a história da humanidade, sempre caçados por seus antigos companheiros. Em suas peregrinações, assumindo uma atitude de respeito à vida humana, Ablon conhece Shamira, uma habilidosa feiticeira, que seria sua mais poderosa aliada durante sua passagem pela terra.

Não posso negar que a ideia central da trama é muito boa. Afinal, quem não se sente atraído por uma guerra cósmica entre os próprios anjos? Contudo, acredito que Eduardo Spohr poderia ter sido um pouco mais cuidadoso com seu texto. A narrativa se arrasta desnecessariamente por longos trechos. Em momentos cruciais, contudo, a escrita fica corrida, como se tivesse sido feita com pressa. Outro problema é a linguagem grandiloquente, que considerei desnecessária e quase caricatural.

Os problemas, porém, não param por aí. O texto ora é narrado por um narrador onisciente neutro, ora por Ablon. Essas mudanças de narrador soam um pouco forçadas. Spohr também acaba sendo descuidado no enredo, pois permite erros de sequência e lógica (como no momento em que Ablon, desmaiado, consegue narrar o que dois demônios falam sobre ele). Esses erros poderiam ser evitados mediante uma leitura mais cuidadosa por parte do autor. 

Em todo o caso, existem pontos fortes no livro, que são as sequências de ação, criadas de uma forma meticulosa. Dessa forma, quem procura uma boa dose de aventura, pode encontrá-la em A Batalha do Apocalipse. O desfecho que Spohr criou para a guerra entre os anjos também soa coerente, embora não o pareça para os leitores mais desavisados.

Dessa forma, considero A Batalha do Apocalipse uma obra irregular e incompleta. Não pretendo aqui julgar o mérito ou relevância do trabalho de Spohr. Além do mais, acredito que toda a obra é de certa forma incompleta, algumas mais e outras menos.

Ficha Técnica
Título: A Batalha do Apocalipse
Autor: Eduardo Spohr
Editora: Verus
ISBN: 9788576860761
Ano: 2010
Páginas: 586

Link para a página no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/1322

quarta-feira, julho 18, 2012

Centésima postagem!

É isso, chegamos à nossa postagem número 100. Esta foi uma longa estrada e, confesso, não imaginei que me levaria tão longe.

O blog mudou muito ao londo dos anos. Apesar do histórico recente (2011), a tentativa de me expressar por este espaço remonta os idos 2005. Apenas uma pessoa lembra de que, naquele tempo, este era um espaço totalmente voltado à ficção de fantasia, como deixei registrado em As muitas razões de ser. Falo de minha amiga Tyr Quentalë que, como deixo claro no texto anterior, teve um papel muito importante para a sobrevivência do blog.

O tempo, porém, fez o seu papel, conservando algumas coisas e deixando que outras fossem lançadas no esquecimento. Como é propósito de minha escrita atual, busco resgatar um pouco dessa história que o tempo alterou; procuro reconstruir mediante a ficção aquilo que achamos que falta em nós: a fantasia, o sonho, o devir.

Creio que pouca coisa em minha vida encarei com tanta seriedade. Esse compromisso de manter três postagens semanais, com abordagens específicas, foi uma forma encontrada para me forçar a produzir com mais frequência, de maneira que eu pudesse estar sempre em desenvolvimento. Confesso que não tenho a disciplina que gostaria. Os textos que publico aqui não são totalmente novos. Alguns o são, como a postagem de segunda-feira. Outros, nem tanto.

Apesar disso, acredito que o crescimento veio. E os momentos de longo silêncio também fizeram parte do processo. Mas o maior ganho de todo esse tempo foram os amigos que conquistei (ou reencontrei) ao longo desse tempo. Amigos que me conquistaram também. Dessa forma, aí vai meu especial agradecimento a Simone Teodoro, Rodrigo Teixeira, Cíntia Almeida, Dora Delano, Fefa Rodrigues, Rosa Croft, Ericka Martin, Luiz Henrique, Sérgio Fantini, Fernanda Cristina, Fernanda Teles, Vanessa Borges e novamente Tyr Quentalë. Os comentários de vocês (e de outros que não mencionei mas aos quais sou igualmente grato, além de todos os seguidores do blog) tornaram-se a força que me permitiu enviar o texto Ocaso para a seleção da Editora Andross. 

Não posso deixar de registrar aqui o incentivo de uma pessoa muito importante para mim: Ana Luiza que nunca tem cessado de me estimular e encorajar. A todo tempo dizendo para que eu não deixasse de enviar o texto, que não deixasse de escrever.

Assim, com essa coragem reunida, tive o prazer de ver o texto publicado na antologia Entrelinhas II. Viajei a São Paulo para o lançamento e mais uma vez a presença e incentivo radiante da Ana Luiza foi fundamental. 

Como todos puderam ver, o percurso foi longo e ainda está longe do fim. Ainda estou às voltas de um livro novo e luto para concluí-lo. Conto com a força de vocês novamente.

segunda-feira, julho 16, 2012

A Aranha

Quando criança, ouvia de minha mãe a história de um homem mau que, por ter salvo uma aranha, pode pela teia da mesma buscar uma saída do inferno.

Essa fábula ficou gravada em minha mente, sobreviveu através dos anos. Talvez porque minha relação com os aracnídeos não seja das melhores. As teias de aranha em muitos casos são ligadas à ruína, ao abandono, e mais diretamente à ideia de uma armadilha fatal. Nesse sentido, também não seria gratuita a relação estreita entre mulheres e aranhas.

Talvez seja por isso que nunca me dei bem com elas (as aranhas), pois elas sempre me fizeram sentir acuado, cercado, caçado. A meticulosa habilidade da aranha em tecer uma casa mortal sobre sua presa me lembra de quantas vezes fui imobilizado, ludibriado e manipulado por uma paixão.

Assim, essa dificuldade em relação às aranhas fez com que eu sempre perseguisse as pobres. Não podia me tranquilizar por saber que havia uma aranha no mesmo cômodo que eu. As criaturas sofriam com as investidas de minha vassoura, na frequente ocasião de uma faxina.

Meu comportamento então agressivo começou a mudar depois que li O Castelo Animado, por causa do zelo do Mago Howl em relação às aranhas. Sophie era proibida de matá-las, deveria espantá-las apenas, caso precisasse remover suas teias durante a limpeza periódica do Castelo. Passei a repetir em meu apartamento o procedimento adotado por Sophie, acreditando que, se o Mago Howl respeitava tanto as aranhas, elas devem de fato ter algum valor.

Com a mudança de meu comportamento, as aranhas começaram a prosperar lá no apartamento. Andavam gordas e vistosas. Em especial uma rechonchuda, enorme de gorda, tantas moscas comera! Para minha sorte, todas elas eram aranhas de pernas bem finas; por isso meu choque não era lá tão profundo quando as via circularem em bando pelos cantos de minha sala.

Por meses convivi com essa grande colônia. A enorme aranha, como uma rainha, comandava sua prole do banheiro. Toda noite, enquanto escovava os dentes, eu observava com cautela a essa inconveniente rainha empoleirada no alto.

Uma noite fui surpreendido ao ver uma mancha escura, repleta de pernas, na metade da parede, a dez centímetros do meu rosto. Levei um enorme susto! Afastei-me por alguns segundos, até perceber que era minha costumeira inquilina, que tentava retornar a seu ninho. Seus esforços eram grandes, mas ela subia errática, trôpega. Não foi difícil concluir que a velhice já pesava suas finas pernas, enquanto ela escalava heroicamente o azulejo claro e liso. Imaginei que ela não passaria daquela noite, nem alcançaria seu tão almejado destino.

Na noite seguinte, qual não foi minha surpresa! A pequena guerreira lá estava em seu trono diáfano de teias, como se nenhum incidente tivesse sequer abalado as forças de suas pernas. E naquele momento pude entender o zelo do Mago Howl.

Cheio de admiração, saudei-a silenciosamente. A aranha morreria, disso eu tinha certeza. Naquela noite, porém, ela mostrava que a morte seria obrigada a esperar.

sexta-feira, julho 13, 2012

O Moço Loiro


Muitos já ouviram falar de Joaquim Manoel de Macedo em sua época de escola, quando eram obrigados a ler livros como A Moreninha ou nas aulas de literatura, nem tão animadas, assistidas em algum cursinho pré-vestibular. Mas não é desse romance, que irei falar, apesar de considerá-lo um excelente livro. Estou aqui para falar do “irmão literário” de A Moreninha: O Moço Loiro.
Para quem gosta de romances repletos de heróis secretos, vilões inescrupulosos, donzelas apaixonadas e uma boa dose de humor, O Moço Loiro é a mistura ideal de todos esses ingredientes. Seu autor é um especialista na área, tanto que podemos considerar, sem sombra de dúvidas, que os romances de Macedo são os precursores das “novelas de época”, tão tradicionais em certos canais de televisão. Retratando uma sociedade repleta de suas figuras caricaturais, o autor mantém um tom ameno e brincalhão, não perdoando os vícios da burguesia carioca, mas sem fazer com que suas críticas assumam um tom pesado, que comprometa a comédia.
Uma das maiores vantagens dos romances de Macedo é que eles podem ser facilmente encontrados. Seja em sebos, em coleções de bolso ou no site Domínio Público(www.dominiopublico.gov.br), é possível ter um exemplar sem precisar preocupar-se com o preço. Estejam certos porém que o custo não é a maior vantagem desse livro, e sim sua qualidade literária. Com seu tom leve e seus personagens cativantes e engraçados, O Moço Loiro é uma boa pedida para quem quer divertir-se com boa literatura.


Ficha Técnica

Título: O Moço Loiro
Autor: Joaquim Manoel de Macedo
Editora: Ática
Ano: 2004
Páginas: 296

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/13392

quarta-feira, julho 11, 2012

Ensaio

Hoje Bach é nosso Mestre. Estamos ensaiando a Cantata número 140. A peça é longa, e ainda estamos no primeiro movimento, de forma que estes são nossos primeiros passos. O ensaio é árduo, mas não deixa de nos dar prazer pela beleza e graça da melodia composta por Johan Sebastian Bach. A dificuldade também se impõe por conta da linguagem. A pronúncia é alemã e a música polifônica, o que significa que cada naipe do coro deve cantar uma melodia diferente. Juntas, essas melodias então criam algo sublime. Arrisco afirmar tal coisa, mesmo que ainda estejamos no início de tudo. Ainda arranhando a superfície, já percebemos a força da obra de Bach através do tempo.

Nos aventuramos pelas notas pela mão humana, porém prodigiosa, daquele que é conhecido como o "Pai da Música". A cantata fala das bodas de Jesus com a Alma humana. O texto é livre inspiração de trechos de Cânticos dos Cânticos, de Salomão, e Apocalipse, de João. A poesia de cada trecho procura acompanhar a beleza celestial das notas musicais.

A melodia se liquefaz, como ouro derretido. É quando a grave voz do baixo dá uma profunda firmeza, não deixando que a fluidez se perca. Sabemos que a melodia é difícil. Buscamos uma integração que só virá com o amadurecimento. Estamos a caminho disso e, ao encerrarmos o ensaio, temos a certeza de que o céu nos tocou.

segunda-feira, julho 09, 2012

Música - Parte Final


Ir para Música - Parte I
Ir para Música - Parte II


Seis meses se passaram. Certa tarde, atendi em meu escritório a ligação da mãe de Michelle, pedindo de volta os pertences da filha desaparecida. Eu sabia que a família da moça não era de Belo Horizonte, morava no Sul. Concluí que ela estaria na cidade somente para recolher os pertences de Michelle. Combinei com aquela senhora que a visita ocorresse em uma tarde de sábado, quando eu estaria em casa.
Ao colocar o telefone no gancho, uma leve lembrança aflorou em minha mente. Aquela majestosa melodia permanecia viva em minha memória, queria ouvi-la novamente. Talvez aquele CD não fizesse falta, talvez a mãe da jovem nem o notaria. Penetrei no quarto de Michelle seis meses após minha primeira intromissão. Retirei o disco do aparelho de som e examinei-o. Não continha nenhuma inscrição de banda ou fabricante, era um CD pirata. Tal condição pareceu-me ainda mais favorável. Ignorei a sensação de estar cometendo um pequeno delito e levei o disco para o meu quarto, deixando-o em meu aparelho de som.
A senhora compareceu no horário combinado, acompanhada de dois irmãos de Michelle. Com minha supervisão, reuniram em caixas de papelão roupas, aparelhos eletrônicos, os estranhos quadros e o violão. Logo que terminaram, pude perceber como Michelle antes o enchia de vida, conferindo a ele um tom exótico e misterioso. Carregaram os pertences da garota até a espaçosa Parati estacionada em frente à minha casa e partiram sem falar muito.
Ao ver-me livre das visitas, subi apressadamente as escadas e entrei em meu quarto. Sentando-me na cama, com alegria pude por fim deixar aquele magnífico CD tocando sem o medo de ser surpreendido. Mergulhei naquele mundo de sons e imagens proporcionados pelas notas douradas vindas do disco. Pude ouvir as demais músicas, tão belas como a primeira.  Meus sentidos foram envolvidos pelo som mágico e pela imagem daquele mesmo campo, que agora estava claro, pois a estrela de antes tornara-se um luminoso sol de domingo.
Acordei no dia seguinte, sentindo-me leve e tendo a imagem do sol como se o houvesse contemplado de um sonho. De fato, havia sonhado com a sublime paisagem. Estava com as mesmas roupas do sábado. Levei alguns segundos para perceber que meu telefone tocava. Ao atendê-lo, fui bombardeado pelas palavras furiosas de minha noiva, por ter faltado a um encontro. Tentei desculpar-me, embora sem sucesso. Desliguei o telefone maquinalmente. Não sentia nenhum remorso pelo ocorrido. Nunca a amara, e tal farsa não era mais necessária, pois a música me bastava.
Voltei ao meu quarto e novamente acionei o aparelho de som, escolhendo o modo de reprodução para que repetisse continuamente. Decidi passar o resto do domingo deitado em minha cama, a ouvir o conteúdo do CD e imaginar o sol que a cada momento parecia mais nítido. Eu quase podia sentir o seu calor. O campo verdejante ganhava vida, onde eu começava a distinguir animais a correr, cheios de energia. Os sons da música se misturaram aos irregulares cantos de pássaros, tranqüilos nos galhos mais altos das árvores que faziam divisa entre a floresta ao longe e o vasto campo.
Dei passos vacilantes sobre a grama úmida, aspirando aquele ar tão puro. Sentia sede e, admito, um pouco de fome. Afinal, há tempos eu apenas escutava a música, não me alimentava há mais de um dia. Atravessando o campo, cheguei aonde a cachoeira fazia suas águas rolarem sobre pedras brancas, formando uma pequena piscina.
Entrei nesse pequeno lago até os joelhos. Estendi a mão e tomei uns bons goles, sentindo um grande alívio. Os anos que haviam entorpecido meus ossos pareciam ter desvanecido. Passei um pouco da fria água em minha nuca e rosto. Voltei-me na direção da floresta, quando vi a forma de uma jovem morena movendo-se graciosamente entre as árvores. Tomei o caminho que levava a seu vulto diáfano. Por um momento, pensei em olhar para trás, talvez para descobrir se haveria uma passagem ainda aberta me esperando. Mas não me virei, havia tomado minha decisão. Lá longe, além do que se podia chamar realidade, a janela certamente já se encontrava fechada.

sexta-feira, julho 06, 2012

O Grande Mentecapto


Muitos conhecem Fernando Sabino por suas excelentes crônicas, outros por sua notável habilidade como romancista. Mas uma coisa é certa: poucos fazem como Sabino, que consegue transformar em prosa todo o charme da juventude de Belo Horizonte e o típico sentimento mineiro, forte e intenso dos sertões das gerais, da mescla entre o local e a grandeza deste estado. E é esse sentimento que carrega o romance O Grande Mentecapto.
Escrito com um estilo sóbrio e ponderado, longe da subjetividade presente em outros trabalhos de Fernando Sabino, O Grande Mentecapto narra a vida de Geraldo Viramundo e suas aventuras pelo interior de Minas Gerais. Seu nome verdadeiro é Geraldo Boaventura, mas ele torna-se Viramundo por toda a sua vida de andanças. A narrativa acompanha a vida do protagonista desde seu nascimento e adolescência, assim como seu ingresso no seminário de Mariana, para tornar-se padre.  Mas esse início assume um ar introdutório. Viramundo torna-se de fato o Grande mentecapto, dando início à narrativa, quando deixa o seminário incompleto e lança-se a uma jornada sem rumo por toda Minas Gerais.
As aventuras e desventuras de Viramundo são repletas de um humor leve e inteligente, que acompanha a demência genial do herói. Uma viagem inesquecível pelos encantadores lugares de Minas, bem reconhecíveis a todos os mineiros. O Grande Mentecapto é uma história digna de ser lida e, se não tirar lágrimas de seu leitor, com certeza irá garantir a ele boas risadas.

Ficha Técnica

Título: O Grande Mentecapto
Autor: Fernando Sabino
Editora: Record
ISBN: 9788501912800
Ano: 2008
Páginas: 256

Página do livro no Skoob: http://skoob.com.br/livro/1669/

quarta-feira, julho 04, 2012

Entrelinhas II na Biblioteca Infantil e Juvenil de BH

Conforme contei aqui, de forma bem ampla, participei de uma antologia de contos e crônicas chamada Entrelinhas II. Publicada pela Editora Andross, a antologia teve a participação de diversos autores e seu lançamento ocorreu em São Paulo.
Não detalhei aqui todos os passos que culminaram na publicação. Também nunca registrei neste espaço a importância desse rito de passagem, fundamental para amadurecimento de minha visão de mundo e da visão que tenho de mim mesmo.
Aqueles que costumam visitar o blog e acompanhar os comentários devem saber que minha relação com a literatura é muito estreita, pois também trabalho na Biblioteca Infantil e Juvenil de Belo Horizonte. Por isso, eu me sinto honrado por poder levar o lançamento da antologia também nesse importante espaço cultural.
O evento acontecerá no próximo sábado, dia 7 de julho, às 11h30. Espero todos vocês lá!


segunda-feira, julho 02, 2012

Música - Parte II

Ir para Música - Parte I


Inicialmente, o silêncio. Um leve e ritmado som de tilintar deu início à melodia, surgindo de forma lenta e gradativa, tornando-se cada vez mais forte e rápido. Logo em seguida as cordas de um violão vibraram, em um misto de graça e força, enquanto um coral lírico entoava uma misteriosa melodia cujo sentido eu não conseguia apreender. Meu coração retumbava, sincopado. Fui invadido pela singela imagem de um campo verdejante e puro, coberto de várias flores e com uma cachoeira ao longe, bem no fundo da paisagem, quando já começavam as primeiras árvores de uma densa floresta. Uma única estrela brilhava sobre esse lindo campo e disputava com a lua o domínio do manto noturno. 
Despertei de meu devaneio. Pressionei o stop, enquanto me sentava ofegante sobre a cama. Havia sido uma experiência ímpar. Aquela melodia era maravilhosa, eu nunca ouvira nada igual. 
Fui assaltado pela possibilidade de ser flagrado por Michelle em seu quarto. Saí às pressas, com aquela linda música bailando em minha mente. Fechei a porta, desci novamente para a sala de estar e tratei de retomar minha leitura. Apesar de tentar me concentrar no livro à frente, sempre era invadido pela vontade de voltar ao quarto e pôr novamente o CD para tocar.
Ainda naquele sábado estive com minha noiva. Fomos a um dos melhores restaurantes da cidade. Mas eu era continuamente visitado por um sentimento de incompletude. O vinho, a música, a comida, os beijos de Marina, minha noiva, nada me agradava como antes. Eu só conseguia pensar em como aquela melodia havia sido tão bela, tão marcante, tão diferente.
Retornei tarde para casa. Marina quis ficar comigo, mas eu aleguei estar indisposto. Ao ver-me sozinho em casa, fui tomado novamente pela vontade de ouvir aquela música pelo menos mais uma vez. Talvez o CD inteiro... 
Subi as escadas e parei à porta do quarto de Michelle. Nada se ouvia lá dentro. Ponderei que ela já estivesse dormindo e fui me deitar.
Na manhã da segunda-feira seguinte, fui desperto por um toque insistente em minha campainha. Aturdido, desci ao hall e atendi perplexo os dois homens taciturnos que se apresentaram como inspetores de polícia e informaram estarem investigando o desaparecimento de Michelle Amorim. Após conferir com atenção as suas credenciais, levei-os para dentro. Inquirido sobre a última vez que vira minha inquilina, informei-os que, por ser empresário, vivia muito ocupado e por isso costumava ver Michelle somente na tarde de sábado, quando de minha tão prezada leitura. Os homens continuaram taciturnos. Visitaram o quarto da jovem e depois partiram.
A investigação prosseguiu, mas Michelle não foi encontrada. Suspeitas foram levantadas sobre casos românticos, pessoas de identidade indefinida. Fui convocado à delegacia para depor e novamente contribuí com tudo que sabia. Apesar dos esforços, foi impossível recuperar qualquer rastro de Michelle Amorim.

Continua...