segunda-feira, março 28, 2022

Tudo é rio - Vidas na confluência da correnteza



Ler Tudo é rio, de Carla Madeira, é como se jogar na água corrente. É se debater na amarga doçura das palavras e degustar a dor de existências desencontradas. É experimentar um turbilhão. Romance de estreia de Madeira, Tudo é rio vem contar sobre Lucy, Venâncio e Dalva. Não só dessas vidas, mas de outras que se entrelaçam a estas. Lucy, que amava Venâncio, que amava Dalva, que amava sua própria dor.

Muitas são as dores ocultas nesse livro. Muitas também são as histórias. Cada uma escondendo uma dor e um prazer, num jogo de contrastes feito luz e sombra. Nos diversos e entrelaçados trajetos vamos sofrendo juntos essas dores e descobertas. É delicioso provar das palavras fortes e profundas de Carla Madeira. Cada frase parece ter sido cuidadosamente pesada e medida, gestada e parida. Sim, esse é um livro-filho. E na leitura que fazemos, acabamos grávidos das palavras de Carla Madeira.

Não é por acaso que em dado momento o bordado aparece na narrativa. A própria escrita de Tudo é rio nos parece um bordado cuidadoso. As vidas são bordadas no texto com todo o cuidado. Vidas que se vão revelando e já deixando em nós saudades. A tessitura desse romance prende no bordado nossos olhos. E para sempre ficamos enredados.

Como uma torrente incontrolável que tudo traga, a narrativa de Carla Madeira nos arrebata. Vamos levados pela enchente, por tantas e tantas águas. E nas sinuosas palavras da escritora, vamos descobrindo que nós, leitores, também somos rio.


Ficha técnica

Tudo é rio

Carla Madeira

ISBN-13: 9788566256086

ISBN-10: 8566256085

Ano: 2013 

Páginas: 216

Idioma: português

Editora: Quixote

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/tudo-e-rio-435848ed493822.html

sexta-feira, março 25, 2022

Estocolmo


Cativos somos

De deus

reféns

no gueto

chamado

Vida

E para fugir

à câmara

de fogo

enxofre e

fumo

É mister

Que o amor 

Pelo juiz júri 

captor carrasco seja

Sincero

18 de maio de 2019

segunda-feira, março 21, 2022

A alma perdida e a solidão de si


Imagine que você tem uma vida boa. Bom emprego, bons amigos, saúde e prosperidade. Porém, falta-lhe alguma coisa. Você não sabe o que é, mas por vezes o dia parece desbotado e nada, coisa nenhuma, anima você. Talvez seu problema seja a alma perdida.

Assim se desdobra o livro de Olga Tokarczuk e Joanna Concejo, com tradução de Gabriel Borowski. Na verdade, não é bem assim. O livro tem início com imagens denotando um enorme silêncio. A obra nos convida a silenciar, a estar em um lugar de total atenção e escuta. E assim somos apresentados aos belos e significativos desenhos de Joanna Concejo. Vemos pessoas em parques caminhando no inverno. Sempre agasalhadas, essas pessoas estão em um mundo em tom de sépia, quase a dizer, em sussurros, que algo falta ali.

Então as patentes palavras de Olga Tokarczuk chegam e nos arrebatam para retomar a história que começou em silêncios. Somos apresentados a um homem que perdeu sua alma e está disposto a recuperá-la. 

As palavras de Tokarczuk são precisas. O texto nos envolve nesse dilema que é viver sem alma. e como que nos lança a pergunta tácita: será que, assim como o homem da alma perdida, nós também perdemos as nossas?

Os desenhos de Joanna Concejo são um espetáculo. Com requinte e sensibilidade vão nos contando essa e muitas outras histórias, vão nos encantando e comovendo. Isto é, se não estivermos como o desafortunado protagonista da história.

A múltipla narrativa de Tokarczuk e Concejo nos introduz a várias perguntas. E a que eu mais me fiz foi esta: É possível estar sozinho de si? E caso seja possível, talvez essa se torne a maior das solidões.

No final, sozinhos viemos ao mundo e sozinhos partiremos. Não seria melhor então sermos nossos melhores amigos? Fica o convite a refletir, ler o livro e, é claro, escutar sua própria alma.


Descrição da capa: Em fundo bege, cadeira meio de costas e meio de perfil esquerdo. No encosto da cadeira, um casaco marrom escuro. Sobre a cadeira uma planta com longos e finos braços, folhas largas em formato de coração. Ao lado esquerdo da cadeira, uma mala de mão cinza. Sob a cadeira um tapete listrado de cores amarela, preta e vermelha.


Ficha Técnica

A alma perdida

Olga Tokarczuk, Joanna Concejo

Tradução de Gabriel Borowski

ISBN-13: 9786556920641

ISBN-10: 6556920649

Ano: 2020 

Páginas: 48

Editora: Todavia

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-alma-perdida-11644067ed11661629.html


quinta-feira, março 17, 2022

Velejo


Ela dorme ao meu lado. 

Meu desejo contido 

vela seu sono. 

Meus olhos 

insones 

buscam quimeras. 

Sinto muito. 

Enquanto ouço 

seu ressonar, 

sou arrebatado 

por essa melodia 

de silêncios.

terça-feira, março 15, 2022

Pequena coreografia do adeus - Uma dança de palavras e silêncios


A autora de O peso do pássaro morto, Aline Bei, está de volta para nos aniquilar através das palavras. Seu romance mais recente, Pequena coreografia do adeus, vem para virar nossas leituras pelo avesso. Mas luminoso que o livro anterior, este não deixa de trazer um texto carregado de melancolia e repleto de sombras.

A protagonista e narradora é agora Júlia Terra, uma náufraga do divórcio dos pais e da animosidade da mãe. Numa narrativa coloquial e disposta em versos, Júlia nos guia pelos destroços de sua vida, mostrando que é, antes de tudo, uma sobrevivente. Apesar da constante violência da mãe e do distanciamento do pai, Júlia vai criando resistência e florescendo. Descobre na palavra uma trincheira e um ponto de apoio. Assim, ela parte do diário rumo a voos mais altos, quando decide escrever ficção.

O romance de Aline Bei é triste, pungente, mesclando o desprezo e descuido da família com o afeto de amizades de pessoas de fora. E com essa acolhida, Júlia vai fazendo seu caminho e se descobrindo potência. O texto de Aline Bei é forte, doído, como a ponta de uma agulha, mas carrega um poder enorme de atração. Na sua força somos tragados e levados a dançar.

A vida de Júlia vai se desdobrando na criação do conto que ela vai escrevendo ao longo do romance. Um conto de tragédia e abandono, dor e perda, sendo também uma narrativa de liberdade através da Arte. E nessa liberdade a escrita de Júlia se encontra, para ser algo mais.

Pequena coreografia do adeus é um romance sobre dor e perda, mas também sobre como se encontrar, nas palavras, nos movimentos e passos de dança, nas notas musicais. Enfim, na Arte, que nos faz humanos e plenos, apesar de todos os nossos destroços.

Pequena coreografia do adeus

Aline Bei

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ISBN-13: 9786559210497

ISBN-10: 6559210499

Ano: 2021 

Páginas: 282

Idioma: português

Editora: Companhia das Letras

segunda-feira, março 07, 2022

Demian - Entre dois mundos, uma marca


Sinclair é um jovem diferente. Desde cedo, sente essa diferença. Com uma visão arguta da vida, ele consegue perceber a tensão entre duas existências - a sagrada e a profana. Ansiando sempre pertencer ao mundo sagrado e luminoso, representado por seus pais religiosos, o jovem ainda em pequeno sente profunda atração pelo mundo profano e sombrio, que se representa nos criados que trabalham na casa e nas conversas que eles travam entre si, com relatos sobre sórdidos acontecimentos. Sinclair se percebe fascinado por esse mundo de violência e libertinagem, mesmo querendo pertencer totalmente ao universo sagrado e religioso de seus pais. Assim, essa dualidade lhe causa sofrimento e profunda comoção.

Tudo começa a mudar quando ele encontra Demian. Um pouco mais velho que Sinclair, o garoto tem uma postura altiva, por vezes adulta, mesmo sendo ainda criança. Demian não teme o tal mundo sombrio e age como se pudesse pertencer ao mesmo sem perder seu ar de nobreza e dignidade. Demian parece acima de conceitos de religião e moralidade. Com isso, irá provocar Sinclair, para que este busque seu próprio caminho e alcance um estado de plena humanidade, como detentor da "Marca de Caim".

Assim é, em linhas gerais, o início do romance Demian, de Herman Hesse. Profundo e denso, o livro é narrado pelo próprio Sinclair e nos apresenta três momentos de sua vida: A infância, aos dez anos, a adolescência, aos dezesseis, aproximadamente, e a idade adulta, aos dezoito anos. O livro salta grandes períodos de tempo, focando-se nestes três momentos com maior minúcia e atenção.

Mas afinal, o que quer Demian? Desde cedo ele provoca Sinclair, pois sente nele uma altivez, um porte que o destaca dos demais seres humanos. Demian diz reconhecer no protagonista a "Marca de Caim". Esta não seria sinal de uma maldição, mas da verdadeira liberdade. Aqueles que a tivessem não estariam presos aos preconceitos antiquados, aos valores religiosos e morais, mas estariam prontos a indicar o rumo para o futuro da humanidade.

Desta forma, Hesse reescreve todo o mito bíblico de Cain e Abel, dando-lhe novo significado. Cain deixa de ser um proscrito, amaldiçoado por deus, mas seria na verdade alguém amado pelo altíssimo, que lhe concederia a marca para que fosse protegido. Os demais homens teriam inventado a história do assassinato de Abel por temerem Cain e sua condição de alguém "invulnerável".

Como símbolo central do romance está o falcão que nasce de um ovo, sendo este o mundo, o qual deve ser destruído para que o nascimento possa ocorrer. Sinclair diversas vezes é levado a pensar no símbolo. Afinal, qual dos mundos deve ser destruído para que o nascimento de uma nova humanidade possa ocorrer?

Demian é de fato um romance complexo e profundo. Suas leituras podem ser várias, o que mostra a genialidade do autor. É importante destacar que essa diferença entre sagrado e profano pode também ser uma tensão de classes, uma vez que os pais de Sinclair representam a burguesia. As pessoas ligadas ao mundo considerado profano e sombrio são os pobres, a criadagem, os empregados. Com isso, ao misturar ambos os mundos e destruí-los, Hesse defende que não há superioridade nos valores burgueses. 

Com um texto profundo e inquietante, Demian é um romance inesquecível, capaz de abalar crenças e preceitos. E apesar de ter mais de 100 anos desde que foi publicado, não perde a atualidade. Uma obra que parece ter sido escrita para o nosso tempo de sombras e incertezas.


Ficha Técnica

Editora: Civilização Brasileira

Ano: 1975

Páginas: 162

Tradutor: Ivo Barroso

Perfil do livro no Skoob:https://www.skoob.com.br/demian-1420ed451597.html