sexta-feira, maio 29, 2015

Rio 2054: sobre um futuro que se quer esquecer

Há muito li Rio 2054, de Jorge Lourenço, e me cobrava uma resenha. Fui agraciado por um exemplar do livro em uma promoção feita pelo próprio autor. Recebi um duplo presente.
Sim, afirmo que foi duplo. Além do livro, fui brindado com uma narrativa equilibrada, enxuta, vívida e ligeira. O narrador criado por Lourenço é econômico sem cair no minimalismo. Seus cenários são facilmente visualizados pelo leitor: um mundo decadente, onde a distância entre ricos e pobres torna-se quase surreal. Uma distopia repleta de elementos tecnológicos verossímeis. 
Outro ponto muito bacana são os personagens, com destaque em Miguel, o protagonista, que assume a posição de anti-herói, alguém que vive à margem dessa sociedade mas que lentamente percebe estar no olho de uma tempestade que irá sacudir seus fundamentos.
Para deixar mais forte o suspense, tentei ser o mais econômico possível em relação ao enredo desse ótimo livro. Destaco apenas que um dos pontos fortes é a ação quase vertiginosa, alucinada. Além disso, os chamados geeks e demais amantes da cultura pop irão reconhecer diversas referências a clássicos do gênero, desde mangás/animes até obras literárias e cinematográficas.
Imerso em um vívido universo ciberpunk, Rio 2054 certamente é uma das melhores narrativas futuristas escritas em solo brasileiro. Uma obra quase premonitória sobre um futuro que deveria ser esquecido.

Ficha Técnica:

Rio 2054
Os filhos da revolução
ISBN-13: 9788576798644
ISBN-10: 8576798646
Ano: 2013
Páginas: 374
Editora: Novo Século

quarta-feira, maio 27, 2015

Perfis

I

Era pequenina e linda. Seus olhos de um castanho forte, vívido, acompanhavam o tom dos seus cabelos. Sua cor mais forte, o vinho.
Tinha uma enorme aliança de noivado. Era a imagem do desejo interdito. Ele, de longe, suspirava.
Até que, certa manhã, ela surgiu no trabalho sem a aliança. Uma fagulha de possibilidade surgiu no peito dele. 
A rotina do dia os envolveu, até que os pôs lado a lado. No meio da intensa correria ela apertou a manga da camisa dele, sussurrando algo suavemente. 
Ele não entendeu de pronto. Inclinou-se para ouvir melhor. E arquejante ela repetiu o sussurro: "Você quer casar comigo?"

II

Olhos atentos, rosto sempre sério, ela escondia sua doçura sob uma dissimulada austeridade. 
Calada, dizia-se tímida, embora para ele essa timidez se mesclasse a um fortuito desinteresse.
O que ele mais amava nela eram aqueles cabelos que negros toldavam seus ombros. Davam a ela um ar de Minerva.
E ele nunca soube seus reais pensamentos. Os olhos negros engoliam qualquer questão, qualquer esboço de ideia. Tragavam o que ele pudesse pensar.
Ela, esfinge.

III

Um rosto completo. Não haveria melhor definição para ela, a plenitude em pessoa. Seu sorriso era de Senhora, embora fosse ainda tão moça.
Os óculos realçavam o ar de autoridade, de alguém douta em vida.
Mas para ele olhá-la era ser fogo.
Seu porte altivo, sua voz suave, seu olhar potente, tudo isso para ele se transmutava em pura chama. Até mesmo toda a franqueza dela tornava o fogo ainda mais selvagem. E impossível.
Afinal, sua Senhora por outro firmara o compromisso. Era apenas a amiga, alta, esguia, forte. Noiva. Ele maldizia sua sina de amar noivas.
E o fogo, a cada momento mais forte, quase a o engolir. Uma chama que a tudo consome. 
De repente, não trabalhavam mais juntos. Ela precisava de total dedicação ao casamento. Longe dela, sem seu altivo olhar e porte tão sublime, ele sentiu o fogo perder força até se extinguir. Ainda que tentasse avivá-lo com a memória, seus esforços foram inüteis. Ao morrer, esse fogo nada deixou, sequer cinzas para untar sua tristeza.

IV

Feroz, a imagem dela o devorava. Ele, tiras de carne, o vazio. O olhar dela o aniquilava. Paralisado, inebriado pelo veneno que a imagem dela transmitia.
Com toda a sua doçura ela não escondia suas garras. Simples e múltipla. Uma força da natureza.




terça-feira, maio 26, 2015

Complexo de Ana Júlia

Já ouvi dizer que o maior azar da banda Los Hermanos foi justamente fazer sucesso com a música "Ana Júlia". Poxa, acho isso uma injustiça. Não que a música em si seja boa. Na verdade é um chiclete que não sai do ouvido. Porém, não deixa de ter o seu quinhão. Talvez por retratar uma situação tão comum, provocando em várias pessoas um laço de identificação.
E por isso, dou o valor devido à música, por sua letra tão verdadeira. Principalmente para esta pessoa que vos escreve. Sim, sou mais um de tantos rapazes "bonzinhos" que sofrem o fatídico complexo de Ana Júlia. 
Veja bem: você é um jovem sensível, educado, tem alguma cultura e tudo isso o faz achar que seja um bom partido para as garotas. Geralmente, você acaba se identificando com os protagonistas atrapalhados das comédias românticas, mesmo que você não seja o tipo ridículo, quase idiota, que aparece nesses filmes. Ainda assim, você é aquele que quer ficar com Mary. 
Ela pode ser uma amiga, uma conhecida, ou até mesmo alguém que você encontra circunstancialmente. Isso pode acontecer de primeira ou pode ir lentamente tomando forma em sua mente. A verdade é que em algum momento você toma a consciência de que ela é a pessoa. Começa então seu lento caminho a uma dolorosa porém inevitável decepção.
No fundo, você já suspeita disso. Contudo, como um bom produto da civilização calcada na cultura de massa, acredita que pode viver uma grande história de amor. Você chega a pensar que merece isso. E essa ideia o faz fantasiar noites e noites uma vida que nunca será sua. 
Então, lentamente, você vai tomando coragem. Ou não. Pode ser que tudo fique no nível platônico e que vocês nunca tenham uma vida em comum. Mas também você pode até viver um período de relativa felicidade ao lado dela, situação geralmente destinada aos mais afortunados. Até ela perceber que você não é quem ela quer.
Chega então o terceiro ato dessa tragicomédia. É quando você finalmente a vê com outro cara. Um cara. Para você, o cara não parece merecê-la. Ele não chega a seus pés, embora toque violão, ou tenha um carro, ou simplesmente um sorriso melhor que o seu. Ou talvez ele não tenha nada visível que o diferencie de você, a não ser o escolhido dela.
Sim, chegamos ao ponto crucial desta crônica: a escolha dela. Não importa que ele seja alguém sem carinho. Não importa que seja um espinho no coração dela. Pois isso não vai fazer com que ela goste de você. Estar com ele foi escolha dela e pronto, E se não for com ele, será com outro, menos com você.
Então, meu amigo, não adianta cantar "Ana Júlia", pois ela não ficará comovida. Você apenas parecerá mais patético. O que você deve fazer é esquecer tudo e seguir em frente. E esperar heroicamente a próxima decepção.

sexta-feira, maio 22, 2015

Viril



Sou homem,
não mereço confiança.
Sou fruto de um erro cósmico.
Materialidade da ideia
de força, insânia
e pedra bruta.
Humano não é chancela
para qualquer virtude
ou talento,
apenas se for húmus,
adubo para
o verdadeiro sexo.
Sou homem,
tenho em minhas mãos
o peso de tantos atos
contra elas.
E que meu corpo, ainda que de
macho,
seja sacrifício,
sirva de alimento

a todas as viúvas.

quarta-feira, maio 20, 2015

Sobre preciosas surpresas

Na sexta passada, recebi à tarde uma galerinha de 4 anos. No calor da apresentação que fazia da biblioteca, esqueci o livro que leria para as crianças. Meio afobado, corri o olho pelos livros mais próximos expostos no espaço lúdico e me deparei com o lindíssimo "Estrela do céu, estrela do mar", da Anna Göbel. Um livro de imagens. Seria minha primeira experiência de leitura compartilhada de uma obra assim. Foi uma maravilhosa surpresa quando, ao terminar a leitura, uma menininha deu um sonoro suspiro e sorriu. Os aplausos vieram em seguida. Fiquei simplesmente encantado.

O grupo foi bem grande nesta quarta. Vieram para a Roda de Leitura. Depois de cumprir o desafio de ler quadrinhos para eles, fomos conduzi-los para a mesa de leituras. Um dos meninos parou perto de mim e ordenou: Para a mão! Pensei: Ih, deve ser alguma brincadeira... Resignado, estendi a mão. E o menino depositou em minha palma uma bala de caramelo, a mesma que o meu avô adorava. Comovido, resolvi deixá-la para depois do almoço. Foi a melhor sobremesa do ano!

quinta-feira, maio 14, 2015

Invernal



Cego meu peito
de um eu inflexível
a ponta da lança
fere a terra
e sangra
Mutismo é fome
estão tristes
todas as estrelas.
Sinto falta do que nunca foi
do que poderia ter sido.
E dos olhos que se.
distanciam.
Meu eco é seco,
oco, um gemido lúgubre
e frio.

terça-feira, maio 05, 2015

Plano


Porque deus amou o mundo
de tal maneira
que deu seu filho unigênito
para que TODO aquele que nele crê
não pereça, mas tenha a vida eterna.

Agora, siga-me nesta brincadeira
faça uma pequena operação.
Tire o TODO e ponha o SOMENTE.
E depois troque pelo APENAS
e a equação não deixará resto.
E o sentido ainda será o mesmo.

sexta-feira, maio 01, 2015

Sobre liberdade de expressão em mídias sociais


Fiquei aturdido com a quantidade de pessoas denunciando bloqueios e textos excluídos no Facebook. Muita gente, tanto quem apoia ou se solidariza em relação aos professores do Paraná quanto quem critica o movimento.
Isso me deixa preocupado, pois penso que uma mídia social deveria atuar como uma terceira via, permitir o debate a a circulação de ideias. Lógico que não estou falando da veiculação de discursos de ódio e intolerância.
Agora, o que senti ao ver fotos, vídeos e relatos com o que aconteceu no Paraná, o que senti foi HORROR. Ficou claro o uso da força das instituições, dos três poderes, para coibir e massacrar uma manifestação. E para piorar, os massacrados são justamente professores lutando contra o assalto à sua aposentadoria.
Entrei em claro este primeiro de maio. Tive uma das minhas febres de consciência. Devorei uma penca de textos sobre intolerância. Sobre pessoas que sofrem diretamente o discurso de ódio, em especial por criticá-lo.
E assim, fiquei cansado. Parecia que tinha tomado uma surra. Pois um pouco da minha ingenuidade e do meu idealismo continua se assustando com pessoas que defendem o uso da força e sustentam ideias que beiram o surreal.
Bem, enquanto nossa quitina não fica exposta, continuaremos fingindo sermos feitos de carne, sangrando nossos medos, nossos ódios, lutando contra o peso da bota que nos esmaga. Enquanto parte de nós faz o papel de peso dessa mesma bota.

#somostodosprofessores