Mostrando postagens com marcador . Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador . Mostrar todas as postagens

domingo, abril 27, 2025

Coisas que uma criança pode "aprender" na Bíblia

 A leitura bíblica deveria vir com aviso de gatilho


Atenção! Aviso de gatilho: este texto é tóxico. Nele há referências a assassinato, estupro e genocídio. 


Recentemente, soube que a Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou um Projeto de Lei que autoriza o uso da Bíblia “Sagrada” como recurso paradidático em salas de aula. O argumento é que o livro seria fonte de informações históricas sobre “civilizações antigas, como Israel e Babilônia”. Outra fala, essa mais tendenciosa, afirma que o contato com a Bíblia transmite “valores cristãos” e que propicia “cura”.

A partir dessa notícia disparatada, fiquei imaginando o que uma criança encontrará no texto bíblico. Será que professoras e professores recomendarão cautela à criança enquanto ela navega pelas páginas das “divinas escrituras”? Ou deixarão que ela acesse livremente os registros “históricos” milenares?

Penso na quantidade de informações “curiosas” que a Bíblia pode fornecer para o pequeno leitor. Primeiramente, existe uma larga e massiva propaganda para que as pessoas se acheguem ao texto bíblico sem qualquer cautela ou mediação. Ah, a “palavra de Deus” fornece “cura”, “alimento” para a alma. Essas são as afirmações dos entusiastas religiosos.

Claro, existe um monte de preceitos, ordens, regras sobre conduta na Bíblia, algumas até bastante ultrapassadas e inclusive completamente ignoradas. Por exemplo, temos o livro de Levítico para chamar mulheres em período menstrual de “imundas”, ou a proibição, atualmente ignorada pela maioria dos cristãos, do consumo da carne de porco. Seria possível listar uma série de mandamentos que, se desobedecidos, teriam como pena o apedrejamento ou o fogo. Quem duvida pode dar uma conferida no livro de Levítico. 

Através da Bíblia, a criança pode aprender sobre a antiga arte de exterminar um povo, ou seja, o genocídio puro e simples. Em Números 31, os israelitas cometem genocídio contra os midianitas pela primeira vez, a mando de Deus. Isso porque eles tinham crenças e práticas diferentes quanto ao sexo e isso foi considerado uma “tentativa” de destruir o “povo escolhido”. Essa primeira grande atrocidade comandada por Deus foi perversa e doentia, inclusive com a orientação de Moisés. Quando os soldados israelitas voltaram do massacre trazendo mulheres e crianças como prisioneiras, o profeta bíblico ficou irado. Mandou que fossem executados todos os meninos e todas as mulheres que não fossem virgens. As sobreviventes foram dadas para os soldados. Esse é o nível de amor e bondade que uma criança pode ver na Bíblia. E não venham dizer que os tempos eram outros, que esses acontecimentos têm um valor simbólico ou qualquer argumento barato. Atrocidade não se justifica e ponto.

Acontece que esse não foi o único exemplo dos horrores cometidos por ordem divina. Em Josué, vários povos são massacrados: os heteus, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus. Isso porque eles habitavam a “terra prometida”, ou seja, eram inimigos simplesmente porque existiam. Alguém lembra de algum cenário atual?

Essa prática do genocídio não cessa depois que os israelitas se estabelecem na “terra prometida”. Em Juízes, eles cometem genocídio contra uma de suas tribos, Benjamin, quase eliminando-a completamente. Depois, lançam mão do esturpo em massa para “salvar” a tribo que estava em vias de extinção. Esse episódio é hediondo do início ao fim, narrado num grau de frieza e naturalidade assustadoras. Outro grande genocídio é praticado ainda no início de I Samuel, contra os amalequitas. Isso por uma rixa antiga de Deus contra esse povo. É, pelo visto o Divino não é mesmo capaz de perdoar. 

Claro, e como seria? Se Deus, que teria criado todo o Universo, as Leis da Física e tudo o mais, foi capaz de criar uma regra de que só com sangue um pecado pode ser perdoado, não dá para esperar coisa boa dele.

É possível também conhecer na Bíblia o perigo do “coito interrompido”. Em Gênesis 38, Onã é morto por Deus porque não ejaculava dentro de sua esposa. Sim, o Todo-Poderoso decidiu assassinar um simples homem porque ele não queria engravidar a viúva do seu irmão, com quem havia se casado por ordem de Deus, pois assim o filho contaria como descendente do falecido. Já podemos logo de início perceber que Deus não deixa barato. Se uma atitude como essa pode provocar sua morte, é bom andar “pianinho” com esse ser onipotente. Temor, meus caros, temor! E tremor, aliás.

A Bíblia dá umas lições muito confusas para as pessoas. Por exemplo, mentir é pecado. Porém, os patriarcas bíblicos (Abraão e Isaque) mentiram quando estavam no Egito, informando aos Faraós de suas épocas que suas esposas eram suas irmãs. E Deus foi lá fazer o quê? Punir os Faraós, é claro. Afinal, eles estavam com as mulheres de seus “próximos”. A confusão foi desfeita, felizmente, sem ninguém ter morrido. Mas fica a dica. Se você é escolhido por Deus, pode mentir, enganar, manipular e ludibriar à vontade.

O maior exemplo disso é Jacó, que depois se chamou Israel. O cara deu o golpe no irmão, Esaú, para assim receber a bênção do pai. “Comprou” do irmão o direito da primogenitura. Como se isso fosse possível. Ah, mas a gente se esquece que “tudo é possível” se você é “escolhido” por Deus. Depois, Jacó foi lá e “cobrou” a dívida. Como? Aproveitando-se da cegueira tardia do pai para receber a bênção no lugar do primogênito. Não teve o menor pudor em manipular o próprio pai que, segundo a mesma “escritura sagrada”, deveria ser honrado pelo filho.

Mais tarde, o pimpão se casa com duas mulheres. Detalhe: irmãs. Não satisfeito, ele se aproveita da rivalidade das duas para fazer sexo também com suas damas de companhia, ou melhor, servas. Fique registrado que este último termo foi um eufemismo para mulheres escravizadas. Uma das coisas perversas nisso tudo é que ninguém se lembra das servas. Seus sentimentos, desejos, temores, nada disso foi registrado. Por isso, ninguém se lembra delas.

As contradições não param por aí. Um dos maiores nomes da Bíblia é justamente o de Davi, chamado de “homem segundo o coração de Deus”. Pois esse cara não fez nada mais que matar e tomar mulheres à força. Se Davi queria uma mulher, ele ia lá e pegava. Ah, claro, as palavras são suavizadas, mas Abigail teve mesmo uma escolha? Como dizer não ao um senhor da guerra que chega com um exército à sua porta logo após a morte do seu marido? O mesmo senhor da guerra que ameaçou se vingar do seu marido quando este ainda era vivo? Além disso, as 10 concubinas do rei tiveram alguma chance de dizer não? E Bate-Seba, esposa de Urias, oficial de Davi?

A história de Urias é uma das mais lamentáveis. Integrante do exército israelita, esse estrangeiro (um heteu) era mais fiel a seu rei e a seus companheiros do que à própria esposa. Isso eu digo: infelizmente. Pois a recíproca não foi verdadeira, no caso de Davi. Enquanto seu exército estava em guerra, o monarca passava o tempo contemplando a paisagem do alto do seu palácio. Viu uma mulher tomando banho e a desejou. Saber que se tratava de Bate-Seba, esposa de Urias, não o deteve. 

Quando a notícia da gravidez de Bate-Seba chegou até Davi, ele arquitetou um plano para “resolver” o imbróglio. Convocou o oficial, que estava no campo de batalha. Logo que Urias chegou, Davi ordenou que servissem vinho ao homem. Na cabeça do rei, Urias voltaria para casa, bêbado, e dormiria com a mulher. A infidelidade seria encoberta, pois o militar pensaria que a gravidez teria sido concebida em sua noite de folga.

Porém, Urias não voltou para casa. Na manhã seguinte, Davi ficou sabendo que o homem havia dormido no portão do palácio. Ao ser inquirido, Urias alegou que não tinha direito de dormir no conforto de sua casa, enquanto seus companheiros enfrentavam as dificuldades do acampamento de guerra, dormindo ao relento. 

Assim, Davi toma uma decisão drástica e que, para mim, é o ápice da perversidade. Escreveu uma carta endereçada a Joabe, comandante do exército. Na carta, Davi dava ordens específicas para que Urias fosse abandonado durante a batalha, de modo que morresse de qualquer jeito. E agora vem o ponto mais perverso e maligno de tudo: o portador da carta foi o próprio Urias! Sim, ele levou sua própria sentença de morte, sem saber de nada!

Os mais religiosos vão alegar que o pecado de Davi (para mim isso foi é crime hediondo com motivo torpe) não ficou impune, que Deus o puniu. Como? MATANDO A CRIANÇA gerada no adultério. E não foi uma morte súbita. O bebê AGONIZOU. Como Deus é bom!

Há um outro discurso sobre a punição divina. Alguns dizem que o que aconteceu com a família de Davi depois teria sido em parte consequência desse adultério. Claro que tem mais uma contribuição do próprio Davi nessa história. E o que afinal aconteceu? Bem, digamos que os filhos de Davi em geral não foram muito bons uns para com os outros. Para começar, Amnon cometeu estupro contra Tamar, que era sua irmã por parte de pai. Absalão, irmão de Tamar por parte de mãe e pai, exigiu de Davi uma punição contra Amnon, o que não aconteceu. Amargurado, Absalão decide fazer “justiça” com as próprias mãos, tramando e executando o assassinato de Amnon. Não satisfeito, ele dá um golpe de estado e depõe o pai, assumindo o trono de Israel.

Aqui, faço uma breve interposição. A cena que descreve a desolação de Tamar depois de seu estupro é de cortar o coração. E isso não comoveu seu próprio pai, o tal homem segundo o coração de Deus. Absalão não ficou satisfeito em exilar o pai e assumir seu lugar no governo. Ele precisava puni-lo “adequadamente”. Nada melhor do que humilhá-lo publicamente. Só que essa “humilhação”, mais uma vez, foi voltada a quem não tinha nenhuma culpa. Sim, Absalão decide estuprar publicamente as 10 concubinas de Davi que haviam sido deixadas para trás na fuga de Jerusalém. Depois que Absalão foi morto e o seu pai reintegrado ao trono, essas mulheres, que foram vítimas, receberam um tratamento terrível, sendo confinadas, como se estivessem irremediavelmente contaminadas. Ou seja, foram condenadas ao enclausuramento.

Nem depois da morte de Davi a violência entre seus filhos acabou. Quando Salomão subiu ao trono, um dos seus irmãos, Adonias, aproximou-se de Bate-Seba e pediu em casamento a mão da moça que foi cuidadora de Davi antes de sua morte. Isso teria sido visto por Salomão como uma tentativa de golpe. Enfurecido, o novo rei mandou seu irmão mais velho ser executado. Isso que é amor fraterno! A família de Davi nos ensina tantos valores familiares!

Alguém pode alegar que essas narrativas são de outra época, um período anterior à Graça, que teria sido instituída a partir da morte de Jesus na cruz. Então, eu evoco o discurso do próprio Cristo. Se alguém se lembrar do episódio em que o apóstolo Pedro decepa com uma espada a orelha de Malco, servo do sumo sacerdote, vale lembrar que foi Jesus que mandou comprar a espada que Pedro usava. Tudo bem que ele usou o acontecido para apregoar seu discurso pacifista, pois “quem matar com a espada com a espada morrerá”. Mas ninguém teria sido ferido se ele não tivesse mandado comprarem espadas, para início de conversa!

E para exemplificar como a Graça não é para todos, podemos dar um pulo no livro de Atos, bem no começo, com o ocorrido com Ananias e Safira. Os dois morreram porque, segundo Pedro, mentiram para o Espírito Santo. Isso porque não queriam dar todo o seu dinheiro para a incipiente Igreja. Até mesmo o Consolador é implacável. A propósito, falar mal do Espírito Santo é imperdoável, fica a dica!

Através desse percurso bíblico, podemos perceber como Deus de fato faz acepção de pessoas! Sim, Javé, Jeová ou Yaweh, em qualquer uma das Três Pessoas que o constituem, não perdoa, não se compadece e não releva. Sua lógica de crime e castigo é tão rígida, tão estrita e mesquinha, que ele não poupa uma das suas três manifestações (o Filho) porque decidiu não ser capaz de perdoar. Quem diz que a Bíblia ensina a perdoar ou está enganado, ou engana. Não, a “Palavra de Deus” determina que toda dívida deve ser paga, sem perdão. Ah, e tem dívida impagável. Então, é melhor ficar de olho, pessoal!

É por essas e algumas outras que imagino como o uso da Bíblia como recurso paradidático pode mandar mensagens no mínimo confusas para as crianças e adolescentes. Inserir nas escolas esse livro tendencioso e regado a sangue pode ser profundamente danoso, um perigo real para estudantes em formação. Para evitarmos qualquer equívoco e prejuízo para o desenvolvimento cognitivo desses pequenos estudantes, ou melhor, de todas as pessoas que quiserem ler as “escrituras”, que tal as sociedades bíblicas e instituições cristãs passarem a incluir avisos de gatilho na capa de suas novas edições da Bíblia “Sagrada”? Poderiam evitar muita dor de cabeça. Como a que eu estou sentindo, ao terminar de escrever este texto.

segunda-feira, janeiro 08, 2024

Sidarta - O longo caminho para a iluminação



Sidarta, de Hermann Hesse, é uma leitura profunda, reflexiva, interessante e repleta de sabedoria. Hesse cria um personagem que faz um percurso acidentado e sinuoso para chegar ao tão buscado Brama, ao aconchego do Om, ao Nirvana.

Sidarta é um jovem bonito e inteligente. Essa inteligência o afasta dos seres humanos comuns a ponto de desprezá-los. Seu talento permite que aprenda com espantosa rapidez e facilidade conceitos complexos e técnicas de meditação desafiadoras. Além disso, ele tem uma beleza ímpar e um físico invejável, de forma a sempre atrair a atenção de todas as pessoas ao redor.

"Infelizmente", esse mesmo talento o lança em uma longa e tortuosa jornada em busca da santidade, da iluminação. O caminho não é fácil, é cheio de percalços e o jovem, inicialmente acompanhado por um fiel amigo de infância, logo descobre que deverá trilhar sozinho essa senda.

Ele irá buscar até mesmo junto ao comércio e à vida material essa tão desejada iluminação. Será iniciado nas artes do amor e aprenderá o valor do corpo físico, além da vida espiritual. E seu caminho não se encerrará nisso. É de fato uma senda muito tortuosa, uma jornada solitária e muitas vezes inglória. 

Hermann Hesse cria com Sidarta uma primorosa obra que funciona como alegoria para nossa própria busca espiritual. Sidarta é um e vários ao mesmo tempo. Afastando-se do caminho religioso e se lançando no mundo, o protagonista é cada um de nós. Assim, Hesse nos convida a vestir a pele de Sidarta e degustar as delícias e dores que ele atravessa.

Muito se poderia dizer desse romance relativamente. Porém, quanto mais eu escrevo, sinto que mais me afasto do enredo em si. Portanto, cabe a você, leitora ou leitor, vocês leitores, trilhar o caminho e tomar Sidarta pela mão.


Ficha Técnica

Sidarta

Hermann Hesse

ISBN-13: 9788501118295

ISBN-10: 850111829X

Ano: 2019 

Páginas: 176

Idioma: português

Editora: Editora Record

Tradutor: Herbert Caro

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/sidarta-1814ed1008204.html

quinta-feira, dezembro 09, 2021

SalmOdiando

Fui moço

Agora sou velho 

E quando o justo 

Foi desamparado

E sua descendência 

Mendigou o pão

Não hesitei

Resoluto

Eu olhei para

O outro lado.

segunda-feira, maio 25, 2020

Segunda vinda


Para aqueles
que aguardam
a volta de seu Cristo,
Saibam que ele 
já esteve aqui.
Já voltou.
E o que viu
O encheu
de horror 
E assim ele
deu suas costas
e partiu.
Para jamais
Voltar.

domingo, maio 03, 2020

Vídeo: Vandalismo - Augusto dos Anjos



Compartilho este vídeo, que foi gravado há bastante tempo, mas continua atual, assim como o poema que ele performa:




Vandalismo

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas,
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a Imagem dos meus próprios sonhos!


"Eu & outras poesias"
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1772




Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/eu-e-outras-poesias-1328ed206177.html

sexta-feira, abril 17, 2020

Crespim - Quando os anjos também sabem batucar

Crespim é um anjinho muito diferente. Ele não curte ficar de bobeira, tocando harpa ou trombeta. Seus talentos são mais voltados para os instrumentos de percussão. Além disso, seu visual difere dos anjos europeus - ele é um anjo com um cabelo volumoso, sarará. E sua alegria combina totalmente com as raízes africanas que compõem o povo brasileiro. Sua madrinha, que é meio anjo meio fada, passa aperto com o anjinho mas também se diverte.

Esse é apenas o começo de Crespim, de Jussara Santos. Escrita com leveza, humor e muito ritmo, a história desse anjinho é também uma história de amor, do encontro entre Amélia e João, um casal de jovens apaixonados. Para além de seu papel de anjo da guarda, Crespim faz vezes de cupido, selando assim um amor que também é abençoado pelos céus.

O texto de Jussara Santos é repleto de poesia. Suas rimas saem do lugar-comum e por vezes lançam mão do nonsense como recurso de humor. A alegria e a jovialidade estão presentes a todo momento, seja no jeito espevitado e bagunceiro de Crespim, seja no amor atrapalhado de João, que mistura olhares e cores ao se encontrar com Amélia.

Os desenhos de Vivien Gonzaga apresentam formas e cores que dialogam muito bem com o texto. As imagens de Crespim transmitem graça. Carlota, sua madrinha, transmite uma mistura de autoridade e afeto. Já o casal Amélia e João é retratado com o típico ar que passeia entre a inocência e a vontade.

Assim, o livro Crespim, com seu humor e seu romantismo juvenil, com sua alegria e os batuques do protagonista, mostra logo a que vem, destinando-se a crianças de todas as idades. E mostra que o Amor é a força que impulsiona todos nós.

Ficha Técnica
Crespim
Jussara Santos
Vivien Gonzaga (desenhos)
ISBN-13: 9788563612106
ISBN-10: 8563612107
Ano: 2013 
Páginas: 36
Idioma: português
Editora: Impressões de Minas


 Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/1159411ED1160200

segunda-feira, março 30, 2020

Um dia

Um dia, o mundo acordou diferente. Obrigados a uma quarentena, em reclusão forçada, os patrões começaram a ter mais tempo para pensar. E a preocupação na queda dos lucros foi lentamente se tornando apreensão pelas vidas de seus funcionários.

Alguns, de suas fortalezas tecnológicas, passaram a ter sonhos inquietantes em que escutavam os gritos de quem era obrigado a trabalhar e ficava doente. E infectavam seus entes queridos. E infectavam outros que estavam nas ruas, e assim espalhavam a doença.

Outros patrões, simplesmente por aumentarem suas leituras durante o ócio, percebiam como eram idiotas as ideias de egoísmo, preconceito, desrespeito e descaso. Começaram a mudar suas convicções. 

Primeiro timidamente, um movimento começou a aumentar. Empresários, banqueiros, industriários e grandes comerciantes começaram a se articular. Enquanto se organizavam, notificavam seus políticos de estimação. Exigiam um esforço conjunto.

Uma enorme cadeia de apoio foi criada. Através das maravilhas da tecnologia, os produtores e distribuidoras de alimentos e itens essenciais fizeram seus bens chegarem a quem mais precisava. Equipamentos de prevenção eram gratuitamente colocados à disposição de caminhoneiros, operários e brigadistas voluntários.

A concorrência desapareceu. O dinheiro, ao que parece, tornou-se supérfluo. Afinal, os bens eram produzidos por prioridade e mantidos à disposição.

Alguns tentaram se aproveitar da situação, é claro. Mas diante da abundância, perceberam que não adiantava estocar itens para vender depois. Toda a riqueza estava direcionada para proteger as pessoas.
Indústrias farmacêuticas liberaram patentes de remédios. Produziram testes como se não houvesse amanhã. Dar era a nova palavra de ordem.

Eu observava tudo isso maravilhado. Como brigadista voluntário, via de perto os olhares luminosos que as pessoas lançavam quando recebiam em mãos aquilo que elas não poderiam conseguir em segurança. Algumas tentavam me pagar, acreditando que algum gesto de gratidão era necessário. Com um sorriso, eu negava o dinheiro, papel agora sem qualquer valor.

Estava feliz. Estava maravilhado. E foi com essa sensação de maravilhosa satisfação que acordei desse sonho.

segunda-feira, agosto 19, 2019

segunda-feira, julho 29, 2019

Dócil

Aquela palavra
Que é espada
Fincada
Em meu
lóbulo frontal

Pela palavra
Dei milhares de passos
Marchei soldado
De cristo

Quantos cativos
fiz por uma
loucura?

Quantos brados
dei para
ruir muralhas e
promover mortes?

Quantos aprisionei
e com a mesma palavra
cortei seu desejo?
Quantos lobotomizei?

Hoje eu me decido
arranco de mim
essa palavra e ponho
minha coroa em leilão

segunda-feira, abril 22, 2019

A maquininha do senhor

Era um completo devoto. Frequentava o culto em todos os horários previstos. Participava de todas as reuniões, das convocações para panfletar na rua, dos atos beneficentes e dos retiros espirituais. Seu tempo livre era ainda mais extenuante que aquele gasto no expediente da fábrica. Menor ainda era o período em que podia passar em casa.
Não se importava. Afinal, morava sozinho em um barraco de um cômodo, nos fundos do lote de um conhecido de seu finado pai. O aluguel não era alto e na verdade era o único que ele tinha condições de pagar com o salário magro que tinha.
Seus compromissos financeiros eram sagrados. Antes do aluguel, o dízimo. Havia também o montante para as ofertas alçadas, além do sacrifício. Como o pastor sempre afirmava: Se não fizer falta, não é sacrifício.
Em duas ocasiões, o dinheiro não foi suficiente para comprar comida para o mês inteiro. Aproveitava para jejuar. Dizia para si mesmo que era o senhor providenciando momentos para que seu humilde servo pudesse desenvolver a espiritualidade. Sua marca era de sete dias consecutivos sem comer nada, apenas bebendo água. Lembrava-se de Elias, que jejuou por quarenta dias e quarenta noites, sem ao menos beber água. Sentia-se mais próximo dos heróis da fé.
O mais importante era manter a fidelidade. E segundo o seu pastor ensinara, o dízimo selava a fidelidade. Para ser próspero, era preciso alçar sacrifícios ainda maiores. Como a vez em que ele tentou passar o mês apenas com dez por cento de seu salário, doando o restante para a igreja. Foi difícil, quase impossível, sua fé quase fraquejou. Por isso, ele acreditava que precisava tentar outra vez, para sentir que era purificado de qualquer dúvida.
Enquanto se preparava, ele seguia sua vida entre os dízimos e as ofertas. Sempre fazia questão de ter algum dinheiro na carteira para ofertar durante o culto. Na maioria das vezes, doava até o vale-transporte e voltava a pé para casa.
Os tempos mudaram, o vale foi substituído por um cartão eletrônico. Para manter a busca pela prosperidade, ele deixou o cartão na cesta de ofertas. Com o tempo, esse ato para ele foi perdendo sua profundidade. Afinal, não era a mesma coisa que, noite após noite, deixar aquele papelzinho no cesto e ofertar uma caminhada ao Senhor.
Certa noite, o pastor parecia mais radiante e anunciou que tinha uma grande notícia. Exibiu uma máquina de cartão e declarou que agora deus tinha conta-corrente. Todos poderiam entregar seus dízimos e ofertas, mesmo se não tivessem dinheiro em papel nas bolsas e carteiras.
Os obreiros assumiram seus postos em cada fileira de bancos. Sob a estrondosa voz do pastor, vigiavam rigorosamente o cesto com a maquininha passando de mão em mão. Fosse por barreira tecnológica ou ausência do valioso plástico, poucos fiéis acabaram usando a tal máquina. 
Chegou a vez dele. Tinha dinheiro na carteira, mas não o suficiente para o dízimo. Havia pensado em entregá-lo no domingo, dia mais abençoado da semana. Mas então se lembrou de que tudo acontece como desígnio do senhor e por isso aquela maquininha era uma ordem clara para que o dízimo fosse logo entregue. Suspirando, ele retirou o cartão magnético da carteira, inseriu-o no dispositivo, selecionou débito, digitou o valor e depois a senha. Concluiu a operação, deixando uma via do comprovante na cesta de ofertas e a segunda mantendo consigo.
Sentiu paz, mas por pouco tempo. As coisas logo começaram a ficar confusas. No mês seguinte, o pastor ofereceu aos dizimistas o "modelo assinatura". Assim, o valor do dízimo seria debitado automaticamente na fatura do cartão de crédito. O rapaz, que nunca tivera usado a modalidade crédito de seu cartão, acabou aderindo. E então ele passou a receber, mensalmente, uma fatura com o valor de seu dízimo. No rodapé, havia os dizeres: "Débito em conta. Para cancelar, favor entrar em contato pelo número abaixo". Ele não queria cancelar, é claro. Apenas sentia-se um pouco desanimado, pois amava o momento de levar os dízimos e ofertas até o altar. Amava separar o dinheiro a ser ofertado ao senhor. Amava o momento de cerimoniosa gratidão diante da congregação.
Até que um dia, ele recebeu a mesma fatura, mas com uma quantia absurda em débito. Preocupado, ele procurou o pastor e depois o banco. Todos negaram qualquer conhecimento sobre o caso. Ninguém foi capaz de ajudá-lo. Fez um financiamento de 30 anos para quitar a dívida e largou a igreja. E para todos que perguntassem o motivo de ter abandonado a fé, ele apenas declarava que depois de anos achando que deus era fiel, descobrira que ele era nada mais que um golpista.