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sexta-feira, outubro 18, 2024

Értom - Convivendo com a morte



Ângela tem premonições de gente morrendo. E não são apenas visões, mas experiências vívidas de morte. Ela sente como se morresse junto com a pessoa. Isso causa um profundo estresse na mulher, que desenvolve uma forte fobia social e busca, de todas as formas, isolar-se. Quando ela testemunha um atropelamento, o policial Rafael entrará na sua vida e a transformará para sempre, mesmo contra a sua vontade.

Assim tem início o romance Értom, de Bianca Pontes. O enredo nos leva a testemunhar os problemas de Ângela Értom, seus desafios diários, seu refúgio em um prédio em que mais ninguém mora, a companhia da avó morta, que a assombra. E Rafael. O policial é insistente em fazer de tudo para ajudar a mulher. O que antes parece ser um forte senso de dever se transforma em paixão, que é rapidamente correspondida.

Rafael é o modelo de galã. Bonito, forte, charmoso, lutador de artes marciais e policial exemplar. Ele não consegue esconder o interesse por Ângela. A estratégia para romper as defesas da moça será o cão policial idoso Zeus, um pastor alemão carismático capaz de derreter qualquer gelo.

Ao longo da narrativa, o foco passeia entre Ângela e Rafael, de forma por vezes até abrupta. O leitor tem que se manter atento para perceber com quem está o foco narrativo. Trata-se de uma narradora onisciente neutra, que revela a nós, leitoras e leitores, o que Ângela ou Rafael pensam, suas inseguranças, seus medos e os questionamentos que pipocam em suas mentes nesse complicado jogo de conquista.

Trata-se de uma conquista, sim. É uma história de amor, afinal. Porém, é possível perceber que tanto Ângela quanto Rafael buscam se entender, antes de tudo. A química amorosa é consequência. Intrigado com a mulher que vive isolada de tudo e todos, resistente até a pedir ajuda médica com um braço quebrado, Rafael sente-se no dever de ajudá-la, de entendê-la. Ela se torna um enigma a ser decifrado. 

A avó de Ângela surge como um grilo falante incômodo. Um cacoete de consciência, misturado com pensamento intrusivo, o que torna a vida de Ângela um inferno, ao mesmo tempo que nos diverte na leitura. Os diálogos com esse fantasma são uma forma de humor sombrio, ao mesmo tempo um alívio cômico, uma vez que os comentários da idosa são espirituosos. 

As relações humanas são o grande foco de Értom. Não é o sobrenatural ou mesmo as investigações do diligente policial. Bianca Pontes reflete sobre sofrimento mental, (des)crença, empatia e paixão. Rafael e Ângela sentem um magnetismo forte entre eles. Não sem acidentes, é claro, pois todo relacionamento é feito deles. Rafael luta para entender o problema de Ângela e quer ajudá-la. A questão maior é justamente a abordagem equivocada do policial.

Só que esta é uma história de amor, antes de tudo. Com mortes, visões sombrias, sofrimento, pânico e um fantasma incômodo, mas não deixa de ser uma história romântica. Uma narrativa que aposta no amor acima do sofrimento e dos desencontros. E que acredita que almas que se amam são capazes de vencer tudo, até mesmo a morte.


Ficha Técnica

Értom

Bianca Pontes

ISBN: B0DDK149FJ

Ano: 2024 

Páginas: 184

Idioma: português

Editora: Bianca Pontes


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/ertom-122490552ed122490967.html

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Via Ápia - Cinco vidas, uma invasão


Washington e Wesley são irmãos. Ambos trabalham em uma casa de festas. Enquanto Washington é movido pela força do ódio, Wesley segue suave, juntando seu dinheiro e planejando o futuro. Os dois moram na Cachopa, com sua mãe, Dona Marli. Douglas é entregador em uma farmácia. Murilo é militar e Biel levanta algum dinheiro ocasionalmente vendendo drogas. Os três moram em um apartamento na Via Ápia, principal rua comercial e residencial da Favela da Rocinha.

A vida desses cinco jovens muda para sempre quando a UPP - Unidade de Polícia Pacificadora - invade a Rocinha, instalando um ambiente de horror para os moradores.

Via Ápia, primeiro romance de Geovani Martins, é um visceral relato de denúncia da violência policial na guerra às drogas. O romance não procura idealizar o uso de drogas ilícitas, algo largamente consumido na favela, mas busca traçar uma trajetória contrária à criminalização. O que está em voga é a exclusão social, que potencializa a violência, e a desigualdade.

É impossível não torcer por esses cinco jovens, todos usuários de maconha, para que seu destino não seja como de tantos outros: estatísticas da violência policial e social.

Geovani Martins escreve um livro controverso e ousado, usando do registro linguístico da favela, sem no entanto soar hermético ou forçado. Sua habilidade traz naturalidade à narração e às falas.

Os personagens passam por profundas transformações, tanto para o bem quanto para o mal. Cada um deles é movido por um sonho, um anseio. Douglas quer ser tatuador. Washington deseja um trabalho com carteira assinada. Murilo anseia sair do exército. Wesley sonha ser mototáxi. E Biel? Biel, antes de tudo, quer pertencer a algum lugar. 

Outras personagens se destacam na narrativa. Uma delas é Gleyce Kelly, que divide os corações dos amigos Washington e Douglas. Gleyce tem o desejo de fazer faculdade, de cursar cinema. Sua luta por um futuro é pautada pela educação. Dona Marli, mãe de Washington e Wesley, também se destaca, por sua força e resiliência, por ter criado sozinha dois homens, incutindo neles o senso de honestidade e de trabalho.

Cada personagem tem sua profundidade e seus conflitos. A revolta pela violência que sofrem da polícia é uma constante. Eles não querem se adequar, se acostumar. São inconformados com o sistema. E com razão.

Vivem uma realidade dura, de falta de água e de energia, da ameaça constante da polícia. Sim, aqui a polícia é duramente criticada. Corrupta e despreparada, ela entra na favela para esculachar o cidadão. Portanto, o texto é direto em suas duras críticas à força policial do Rio de Janeiro.

Com uma narrativa aguda e controversa, uma visão diferenciada e crítica sobre a guerra às drogas, Via Ápia é um romance forte, profundo e contundente. É também um manifesto à vida é a cultura da paz, que deve ser buscada onde quer que estivermos.


Ficha Técnica

Via Ápia

Geovani Martins

ISBN-13: 9786559211180

ISBN-10: 6559211185

Ano: 2022 

Páginas: 344

Idioma: português

Editora: Companhia das Letras


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/via-apia-12222387ed12203488.html

segunda-feira, janeiro 22, 2024

O Lobo da Estepe - As existências e transformações de Harry Haller



Harry Haller é alguém dividido. Em seu interior, homem e fera combatem entre si. Os ideais civilizatórios e burgueses vivem em conflito com a imagem de um lobo, selvagem e feroz. É o Lobo da Estepe, que ao mesmo tempo que orienta a personalidade de Harry, também o assombra e aterroriza. 

Romance escrito por Hermann Hesse, esta é uma obra profunda e enigmática. Conta sobre esse indivíduo inteligente e culto, em crise consigo e com o meio em que vive, a burguesia. Harry sente angústias atrozes, a ponto de querer acabar com a própria vida. 

Por conta dessa agonia e da insistente vontade de se matar, Harry sai à rua para caminhadas longas e angustiadas. Em uma delas, o protagonista se vê diante de um letreiro onde está escrito "O Teatro Mágico" e tem contato com um livreto que misteriosamente fala de sua vida, "Tratado do Lobo da Estepe". É um texto que não apenas traça um perfil dele mesmo, mas também procura desconstruir a dicotomia em que este se encontra. 

Harry costuma falar de si mesmo como o Lobo da Estepe. E ao ler o livreto, ele vê o quanto essa divisão interna é enganosa. O texto defende que dentro de cada homem vivem vários, inúmeros. E essas existências várias vão moldando o ser na sua suposta individualidade.

Além disso, Harry deseja conhecer "O Teatro Mágico". Interessado em adentrar nesse recinto, ele tem seu acesso impedido, uma vez que a entrada é garantida "apenas para raros". Ou seja, apenas indivíduos excepcionais poderiam adentrar o misterioso recinto. Ou seriam loucos? Essa ideia chega a flertar com Harry.

E então sua vida passa por uma reviravolta quando ele conhece Hermínia. Inteligente, perspicaz, bonita e talentosa, ela se torna uma espécie de tutora de Harry e o ensinará a "viver", a partir das aulas de dança que irá ministrar-lhe. Ela o introduzirá na vida dos bailes e festas. Além disso, através de Hermínia, Harry conhecerá Maria, com quem terá um romance ardente e transformador.

Outro indivíduo importante no percurso de Harry será Pablo, um músico de jazz. A princípio, ele surge como uma pessoa superficial e inócua. Contudo, Pablo assumirá em certo momento o papel de mentor de Harry, através da experimentação de drogas psicodélicas e experiências sinestésicas, dentro do enigmático Teatro Mágico.

O Lobo da Estepe é antes de tudo uma obra densa. Um texto repleto de digressões e especulações filosóficas do narrador-protagonista, o livro conta também com um longo prefácio, o qual procura apresentar esse mesmo protagonista como alguém real, que teria sido inquilino da casa em que Hermann Hesse morava. Assim, temos dessa forma um perfil psicológico do narrador-protagonista, numa introdução que busca preparar o leitor para a longa e enigmática de autodescoberta de Harry Haller.

Com um texto profundo, repleto de referências culturais e que busca apresentar camadas filosóficas ao enredo, O Lobo da Estepe é uma obra instigante, incômoda e, sobretudo, transformadora. Um livro para ser visitado pelo leitor de tempos em tempos, com a certeza de que, a cada leitura, um novo ser humano surgirá dessa experiência.


Ficha Técnica

O Lobo da Estepe

Hermann Hesse

ISBN-13: 9788577991075

ISBN-10: 8577991075

Ano: 2009 

Páginas: 252

Idioma: português

Tradutor: Ivo Barroso

Editora: BestBolso


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-lobo-da-estepe-1338ed406172.html

segunda-feira, janeiro 08, 2024

Sidarta - O longo caminho para a iluminação



Sidarta, de Hermann Hesse, é uma leitura profunda, reflexiva, interessante e repleta de sabedoria. Hesse cria um personagem que faz um percurso acidentado e sinuoso para chegar ao tão buscado Brama, ao aconchego do Om, ao Nirvana.

Sidarta é um jovem bonito e inteligente. Essa inteligência o afasta dos seres humanos comuns a ponto de desprezá-los. Seu talento permite que aprenda com espantosa rapidez e facilidade conceitos complexos e técnicas de meditação desafiadoras. Além disso, ele tem uma beleza ímpar e um físico invejável, de forma a sempre atrair a atenção de todas as pessoas ao redor.

"Infelizmente", esse mesmo talento o lança em uma longa e tortuosa jornada em busca da santidade, da iluminação. O caminho não é fácil, é cheio de percalços e o jovem, inicialmente acompanhado por um fiel amigo de infância, logo descobre que deverá trilhar sozinho essa senda.

Ele irá buscar até mesmo junto ao comércio e à vida material essa tão desejada iluminação. Será iniciado nas artes do amor e aprenderá o valor do corpo físico, além da vida espiritual. E seu caminho não se encerrará nisso. É de fato uma senda muito tortuosa, uma jornada solitária e muitas vezes inglória. 

Hermann Hesse cria com Sidarta uma primorosa obra que funciona como alegoria para nossa própria busca espiritual. Sidarta é um e vários ao mesmo tempo. Afastando-se do caminho religioso e se lançando no mundo, o protagonista é cada um de nós. Assim, Hesse nos convida a vestir a pele de Sidarta e degustar as delícias e dores que ele atravessa.

Muito se poderia dizer desse romance relativamente. Porém, quanto mais eu escrevo, sinto que mais me afasto do enredo em si. Portanto, cabe a você, leitora ou leitor, vocês leitores, trilhar o caminho e tomar Sidarta pela mão.


Ficha Técnica

Sidarta

Hermann Hesse

ISBN-13: 9788501118295

ISBN-10: 850111829X

Ano: 2019 

Páginas: 176

Idioma: português

Editora: Editora Record

Tradutor: Herbert Caro

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/sidarta-1814ed1008204.html

segunda-feira, janeiro 01, 2024

Batidas da Máquina Escarlate - Ação e romance em dose certa

 


Em um mundo distópico, duas pessoas se encontram. A ilha? Destra, um lugar que sustenta uma sociedade sexista onde mulheres são proibidas de lutar. Nessa ilha vive Scarlet Myr, uma mecânica e inventora excepcional, cujo sonho é se tornar a maior lutadora de todas. Ela então encontra Noah Yasha, um lutador talentoso mas um tanto ingênuo, que está com problemas com a máfia. Juntos, eles irão formar uma improvável parceria para que Scarlet por fim alcance o seu sonho.

Batidas da Máquina Escarlate é uma narrativa online presente na plataforma WattPad. Com um enredo envolvente e cativante, cheio de ação e com uma dose de romance, esta obra é uma boa pedida para quem gosta de ação mas também não dispensa um pouquinho de chamego.

Scarlet é uma personagem que nos seduz. Com seus sonhos e seu passado, ela irá fazer de tudo para alcançar seu objetivo, não poupando esforços ou energia. Ela trabalha como mecânica para uma ordem religiosa chamada Ordem Rubra e não deixa de ser um pouco rebelde. Sua beleza, inteligência e talento são claramente subutilizados nessa oficina para essa ordem religiosa.

Noah é bonito, forte mas um tanto ingênuo. O lutador tem problemas com a máfia e precisa ganhar a próxima luta contra o campeão Teech para pagar sua dívida e não dormir com os peixes. O líder da máfia tem um interessante epíteto: o Mâe.

O mundo em que a narrativa se passa é repleto de referências religiosas. Há o deus sumido, uma catástrofe chamada "a Catarse" e os anjos em conflito com a humanidade. Há muito a se entender e descobrir. Por exemplo, qual o papel dos anjos nesse mundo triste e decadente? E qual o papel da Ordem Rubra nesse mundo hipertecnológico?

Com muita ação e uma pitada de romance, Batidas da Máquina Escarlate foi uma grata leitura, divertida e interessante. Uma obra que me fez vibrar e torcer por Scarlet e Noah e que também me surpreendeu com suas reviravoltas.


Ficha Técnica

Batidas da Máquina Escarlate

Autor Tiago F. Ribeiro

Link para o Wattpad: https://www.wattpad.com/story/351476853-%F0%9D%99%B1%F0%9D%9A%8A%F0%9D%9A%9D%F0%9D%9A%92%F0%9D%9A%8D%F0%9D%9A%8A%F0%9D%9A%9C-%F0%9D%9A%8D%F0%9D%9A%8A-%F0%9D%99%BC%C3%A1%F0%9D%9A%9A%F0%9D%9A%9E%F0%9D%9A%92%F0%9D%9A%97%F0%9D%9A%8A-%F0%9D%99%B4%F0%9D%9A%9C%F0%9D%9A%8C%F0%9D%9A%8A%F0%9D%9A%9B%F0%9D%9A%95%F0%9D%9A%8A%F0%9D%9A%9D%F0%9D%9A%8E

segunda-feira, dezembro 11, 2023

A Esposa do Rei - Filha do mundo azul



Everlin, ou simplesmente Lin, é uma jovem comum que tem um segredo. Na adolescência, ela se apaixonou por um misterioso garoto. Essa paixão a marcou para sempre, de tal forma que a moça se considera incapaz de se apaixonar novamente.

A vida comum de Lin vira de pernas pro ar quando, em um acidente de avião, a moça vai parar em uma ponte de Einstein-Rosen, que a transporta para um mundo sem tecnologia, onde as mulheres são proibidas de estudar e as pessoas diferentes, com traços incomuns, são vistas como especiais.

Lin é salva por um nômade, mas acaba sendo levada pelos soldados do rei, como pagamento da dívida de seu salvador. Assim, ela vai parar no harém do monarca. Por ter traços orientais, a jovem é considerada uma verdadeira raridade. O rei do país quer que ela aceite a condição de esposa mas, por mais belo e sedutor que ele seja, Lin se sente incapaz de se apaixonar e esquecer seu amor do passado.

O texto de M. Okuno é atraente, cativante. Repleto dos elementos da cultura pop, como referências a filmes e músicas, o enredo atrai e captura nossa leitura. O maior conflito é justamente a reiterada e exaustiva investida de Sete, o Rei, para conquistar Lin. Ela se sente fisicamente atraída, mas suas emoções continuam cativas de seu amor da adolescência.

Enquanto resiste às investidas de Sete, Lin busca aprender tudo sobre o mundo em que está, enquanto tenta encontrar uma forma de voltar para o seu mundo - o mundo azul, que é a forma como nosso planeta é conhecido naquela terra.

Com elementos românticos e algumas reviravoltas, A Esposa do Rei é o livro ideal para quem gosta de histórias de amor, mesmo aquelas em que o amor parece perdido no passado.


Ficha Técnica

A esposa do rei

Grupo Editorial The Books

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ISBN-13: 9788554906672

ISBN-10: 8554906675

Ano: 2019 / Páginas: 273

Idioma: português

Editora: The Books



Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-esposa-do-rei-993290ed994878.html

segunda-feira, novembro 13, 2023

Canção para ninar menino grande - Uma balada de romance e amizade


As obras de Conceição Evaristo são sempre magníficas. Falam de pessoas comuns que são heroicas em suas pequenas batalhas. Conta sobre suas consciências e seus desejos de romperem as barreiras do racismo. 

Canção para ninar menino grande é a mais recente obra de Conceição Evaristo e conta as aventuras amorosas de Fio Jasmim ao longo de sua vida, desde sua posição de jovem aprendiz de maquinista até sua idade mais avançada.

Porém, diferente do que se possa imaginar, Fio Jasmim não é o protagonista dessa narrativa, ou melhor dessas narrativas. Protagonistas são todas as mulheres com que ele se enamora, e são muitas. Desde Pérola Maria, sua fiel e legítima esposa, até Juventina Maria, sua derradeira amante. Ou Eleonora Distinta, sua confidente e amiga, com quem não se relacionou romanticamente mas teve uma relação totalmente íntima.

Fio Jasmim é como o nome dele indica: um fio condutor que alinhava as vidas dessas tantas mulheres. A escrita de Conceição Evaristo nos abraça e acalanta. É uma escrita carinhosa, que nos guia pelas vidas das protagonistas e suas vivências, suas escrevivências, pois numa pegada de auto-ficção, Conceição também se insere entre essas que se propõem a contar a história de Fio Jasmim. Ou melhor, a história de seus amores.

Outro ponto interessante na narrativa é o nome das cidades. Todas elas fictícias, as cidades são como as mulheres que Fio Jasmim encontra. Cidades pequenas, singelas e acolhedoras. Cada uma dessas cidades são ligadas pela linha férrea, que Fio Jasmim percorre com sua sanha namoradeira. 

Com uma narrativa forte e amorosa, com uma Poética única e repleta de encanto, Canção para ninar menino grande é uma obra maravilhosa sobre amor, entrega e amizade.


Ficha Técnica

Canção para ninar menino grande

Conceição Evaristo

ISBN-13: 9786556020884

ISBN-10: 6556020885

Ano: 2022 

Páginas: 136

Idioma: português

Editora: Pallas

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/cancao-para-ninar-menino-grande-1005519ed122237359.html

segunda-feira, outubro 02, 2023

Inhamuns - Uma pungente narrativa no sertão do Ceará



Por vezes nos deparamos com leituras que nos atravessam qual navalha e fazem sangrar nosso peito, nos compungindo e maravilhando. Foi o que aconteceu comigo ao terminar Inhamuns, romance da escritora cearense Kah Dantas.

No livro, a protagonista e narradora conta a história de seu retorno a Tauá, cidade localizada nos Inhamuns, Sertão do Ceará. Ela não volta por acaso, mas a trabalho, por conta de uma descoberta de um novo sítio arqueológico próximo a Tauá. Ao chegar, ela encontrará logo seu amigo de infância, e uma antiga paixão renascerá, trazendo consequências irreversíveis.

Pungente e melancólico, o livro de Kah Dantas é também altamente erótico, contando para nós, leitores, uma história de amor salpicada de tragédia.

A narradora, cujo nome não é informado, tem um passado conturbado, com a morte da mãe ainda jovem e o abuso físico de uma tia, em contraste com o amor da avó. Mas esta também está morta; morreu quando a narradora já não morava em Tauá, mas em Porto Alegre, onde fez carreira como jornalista. A cidade tem um enorme preconceito para com a mãe morta, chamando-a de prostituta. Fato é que a protagonista cresceu sem mãe ou pai, aos cuidados de uma avó zelosa, mas ameaçada por uma tia má. E agora ela retorna e revive antigos fantasmas, o amor clandestino do amigo de infância, enquanto enfrenta seus próprios demônios.

Inhamuns é cadenciado e poético. A protagonista não tem uma boa imagem sobre si mesma e ainda acontecem tragédias que pioram essa autoimagem. Há uma tênue tentativa de reconciliar-se consigo, mas não há muito jeito.

A prosa de Kah Dantas é linda e nos afoga em pleno sertão, compondo um romance cheio de águas, apesar da secura da própria narradora.

Com sua prosa pungente e profunda, Kah Dantas cria uma narradora que nos toma pela mão e nos guia por uma jornada a um sertão cearense mítico e erótico.

 

Ficha Técnica

Inhamuns

Kah Dantas

ISBN-13: 9786556810607

ISBN-10: 6556810606

Ano: 2021 

Páginas: 128

Editora: Moinhos


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/inhamuns-11976973ed11968477.html

segunda-feira, setembro 25, 2023

A grande arte - Uma jornada de ação, erotismo e suspense



Mandrake é um advogado incomum. Ao invés de se ocupar em defender a as causas que assume, ele passa o tempo envolvido em conspirações, metendo o nariz onde não é chamado e se envolvendo com diversas mulheres.

O caso mais pitoresco que o advogado assumiu é a busca de uma fita de vídeo cassete, que parece matar todos aqueles que se envolvem com ela. Tudo começa com a narração da morte de uma prostituta. Seu assassino, após matá-la apertando-lhe o pescoço, escreve em seu rosto com uma faca a letra "P". Em seguida, um misterioso homem chamado Roberto Mitry comparece ao escritório de Mandrake e de seu parceiro, Wexler, solicitando que eles intermediassem a recuperação da fatídica fita cassete.

Curioso com a pessoa de seu cliente e com as circunstâncias envolvendo as mortes das supostas detentoras da fita, Mandrake se lança numa espiral de violência, loucura e vingança. Além de muito sexo.

A grande arte, livro de Rubem Fonseca, nos leva a uma narrativa estilo romance policial, em que os culpados são muitos, talvez até mesmo você, leitora ou leitor. A violência é crua, a linguagem direta e o estilo repleto de referências refinadas, embora bruto na linguagem.

Mandrake é um verdadeiro canastrão. Seja com seus charutos, seus vinhos ou suas paqueras, ele parece passar por todos os perigos incólume, ou quase. A morte parece amá-lo tanto quanto as mulheres, bem como o perigo.

Outra personagem importante é Camilo Fuentes, o boliviano indígena, grande e forte, dotado de um ódio frio contra o mundo, sobretudo contra brasileiros. Fuentes entra na narrativa como antagonista de Mandrake e alvo de sua vingança, até alçar-se ao grau de (anti)herói e improvável aliado.

Além de Camilo Fuentes, há um tritagonista nessa narrativa. Este é Thales de Lima Prado, um financista que também é chefe do crime organizado. É através dos supostos cadernos de Lima Prado que Mandrake completará a intrincada e enigmática narrativa, onde todos são suspeitos e ninguém é inocente.

Não posso me esquecer de mencionar também de José Zakkai, o Nariz de Ferro, que entra em guerra contra Lima Prado e vem a ser um improvável mas valioso aliado de Mandrake.

Há um problema de datação no texto, levando-se sem consideração que o mesmo foi publicado no início da década de 1980. Ainda assim, é muito incômodo ler Mandrake chamar pessoas pretas de crioulos ou menosprezar e caricaturizar a homossexualidade.

Apesar dessas questões delicadas, A grande arte foi uma jornada interessante. Uma leitura ágil e revigorante, uma narrativa repleta de ação, erotismo e suspense, onde no final suspeitamos de todos, até de nós mesmos.


Ficha Técnica

A Grande Arte

Rubem Fonseca

Ano: 1983 

Páginas: 296

Idioma: português

Editora: Francisco Alves


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-grande-arte-2401ed105755.html

domingo, setembro 10, 2023

A composição do Romance




Como fazemos todas as terças-feiras, tivemos mais um encontro da Prosa Poética: Oficina de Escrita Criativa. Alguns encontros atrás, ficou a meu encargo falar sobre a composição do Romance. Comecei falando do Romance como gênero literário, sua consolidação no século XIX e do porquê de narrativas longas serem chamadas desse termo, Romance. Falei também de minha leitura do livro do Haruki Murakami, Romancista como vocação. Contei que Murakami tinha um bar de jazz e pouquíssimo tempo para escrever. Ele então escrevia na cozinha, de madrugada. Assim ele redigiu seu primeiro livro, mas não gostou nada do resultado. Resolveu escrever um segundo, mas este em inglês, que ele dominava instrumentalmente. Depois de terminar o livro, ele o traduziu para o japonês e gostou do resultado. Inscreveu a obra em um concurso de uma revista literária e ganhou o prêmio de autor revelação.

Murakami também aborda a importância do escritor romancista ter uma rotina de trabalho. Além disso, ele aponta ser fundamental o romancista fazer exercícios, para aguentar horas e horas de trabalho, escrevendo.

Apontei novamente a questão dos equívocos que fazemos ao usar o termo romance. Trata-se de uma narrativa longa, consolidada no século XIX, no auge do Romantismo. Daí histórias românticas serem chamadas de romance, mas nem todo romance é uma narrativa de amor. Dei como exemplo o romance policial e o romance de fantasia.

Como escritor de romances juvenis de fantasia, contei sobre meu processo de escrita. Expliquei que antes de começar a escrever O Medalhão e a Adaga elaborei um questionário sobre um arqueiro que praticava magia. Eu precisava então responder tal questionário: Quem é o Arqueiro? Onde ele nasceu? Quem são seus pais? O que aconteceu com ele? Assim, respondendo a essas perguntas, fui compondo o texto inicial do romance.

Contei sobre o fato desse estilo literário, ser denominado, em inglês, por Novel e que, de certa forma, a novela televisiva é filha dos romances literários, da mesma forma que as atuais séries. 

Comentei sobre o folhetim, que era a forma dos romances apresentados ao público serem inicialmente publicados nos jornais, uma parte do texto a cada dia ou a cada semana. Não se sabe ao certo se o autor tinha o livro pronto e ia  publicando partes nos jornais, ou se o escritor começava um romance de folhetim e publicava num jornal esse início, sem fazer ideia do desfecho. Existia a necessidade de se criar um fato novo a cada publicação no jornal, bem como terminar deixando um assunto em aberto como forma de manter o leitor interessado na continuidade. Quando se fazia sucesso o folhetim era reunido e publicado em livro.

Por fim, convidei todos os presentes a pensarem num trecho de romance e a escreverem cada um o trecho imaginado. A ideia era trabalhar com o fragmento, tendo a noção de romance como objeto provocador. Em seguida, compartilhamos nossos escritos, lendo uns para os outros e comentando as leituras. Foram produzidos textos muito interessantes.

Fica também o convite a leitoras e leitores que pensem nos seus romances e os escrevam. E para quem mora em Belo Horizonte, deixo o convite de frequentar os encontros da Prosa Poética: Oficina de Escrita Criativa.

Atualizado em 14/09/2023, com contribuições do Augusto Borges.

sexta-feira, agosto 05, 2022

O apocalipse dos trabalhadores - Vidas que se entrelaçam


É um grande desafio para mim falar de O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe. Esse não é um livro fácil. Ele conta as histórias de três pessoas: Maria da Graça, Quitéria e Andriy. Duas portuguesas e um ucraniano. A trama se passa em Portugal, na cidade de Bragança. Nesse emaranhado de vidas há também o Senhor Ferreira, o homem para quem a Graça trabalha e que a assedia constantemente. Por conta das constantes investidas, ela o chama de Maldito, mas admite que por ele está apaixonada. Graça é casada, um casamento sem amor. Ela detesta o marido a ponto de colocar lixívia na sopa dele, na esperança de que morra aos poucos.

Quitéria é namorada de Andriy. Ele fala pouco o Português e sofre de falta de notícias dos pais, Ekaterina e Sasha, que ainda vivem na Ucrânia. O velho Sasha é paranoico e vive com medo de ser levado pelos soldados. Isso porque há muitos anos ele matou um homem. Ou pelo menos é o que acredita. Não dá para saber o que é fato e o que é fantasia para Sasha.

A narrativa não segue um padrão linear, embora haja um enredo central que respeita certa sequência de acontecimentos. O texto é um emaranhado que vai se desenrolando enquanto lemos. A narrativa truncada pode ser incômoda, bem como a forma como as personagens interagem.

Com um enredo simples, mas emaranhado, personagens emblemáticos com atitudes controversas e uma certa dose de erotismo, O apocalipse dos trabalhadores é uma obra densa e incômoda, que nos marca como ferro em brasa.


Ficha técnica

O apocalipse dos trabalhadores

Valter Hugo Mãe

ISBN-13: 9788525063571

ISBN-10: 8525063576

Ano: 2017 

Páginas: 208

Idioma: português

Editora: Biblioteca Azul

segunda-feira, abril 18, 2022

Capitães da Areia - A infância massacrada


Pedro Bala, Professor, João Grande, Sem-Pernas, Pirulito, Boa Vida, Gato, Volta Seca. Estes e muitos outros fazem parte de um grupo de meninos chamado Capitães da Areia, que aterroriza as ruas da "Cidade da Bahia". Pedro Bala é o líder. Forte e decidido, Bala guia o grupo com suas qualidades naturais de liderança. Seus "oficiais" atuam como subchefes e coordenam o grupo, auxiliando o líder.

Capitães da Areia, romance de Jorge Amado, nos conta com detalhes e crueza a vida dessas crianças e adolescentes. Fome, doenças, as torturas na delegacia ou no reformatório, essas são alguns dos inúmeros perigos que enfrentam. Há também outros grupos de crianças, menores e menos organizados, que não deixam de oferecer riscos aos Capitães. Ocasionais batalhas acabam acontecendo por conta disso.

O romance é dividido em duas partes. Na primeira, os capítulos contam as peripécias dos Capitães da Areia, tendo um ou outro como protagonista. Por isso, podem ser considerados episódios sem necessariamente terem um enredo cronológico. Já a segunda parte segue uma linha temporal e conta da entrada da menina Dora para o grupo e seu inocente romance com Pedro Bala.

Há um tom de idealismo no livro, mesclado à crítica social, como se uma revolução fosse a única chance para mudar a vida dessas crianças e erradicar a pobreza. Outro ponto curioso é a ausência da adolescência. Com 16 anos, Pedro Bala é considerado pelo narrador como uma criança. Essa visão estendida de infância é interessante pelo ponto de vista sociológico. Apesar de serem chamados de "crianças", os Capitães da Areia são muitas vezes apresentados como "homens", por sua precoce independência, onde são obrigados a tomarem atitudes consideradas adultas.

Com ação, aventura e romance, Capitães da Areia é um livro que nos envolve, comove e também revolta. E nos faz pensar em nosso papel como seres humanos, agentes de mudança. Lança a miséria em nossa cara, com toda a sua violência e nos convida a tomar uma atitude contra toda forma de crueldade e tirania.


Ficha Técnica:

Capitães da Areia

Jorge Amado

ISBN-13: 9788535914061

ISBN-10: 8535914064

Ano: 2009 

Páginas: 280

Idioma: português

Editora: Companhia de Bolso


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segunda-feira, abril 11, 2022

A filha perdida - Quando não há amor que dê conta da vida


Leda sofre um acidente de carro. A todos que a visitam, ela diz que o sono a fizera sair da estrada, mas isto não é verdade. O que de fato aconteceu será narrado a nós, leitores, nos capítulos seguintes de A filha perdida, de Elena Ferrante. 

Narrado em primeira pessoa, o romance nos apresenta Leda, uma excelente professora universitária que está de férias no sul da Itália. Sofisticada e com uma exuberância natural, ela logo atrairá a atenção de uma família de napolitanos, rude e barulhenta, que também está de férias na praia. Aquela família representa tudo o que Leda mais despreza, pois foi de um lar assim que ela egressou. Porém, quem de fato atrai a atenção de Leda é a jovem Nina, devota mãe da pequena Elena.

Observar mãe e filha em seus passeios e brincadeiras na praia irá despertar sentimentos controversos em Leda, que gradativamente se envolverá com a família de formas inusitadas, o que trará a ela consequências irremediáveis.

A filha perdida é mais um exemplo do indiscutível talento de Elena Ferrante em criar tramas e personagens profundos. Leda é controversa, por vezes inconsequente, e nos perguntamos se sua narração é confiável. Perturbada pelos remorsos que sente, por causa do que fez tanto com sua mãe quanto com suas filhas, Leda parece querer resgatar em Nina a mãe que ela desejava ter sido, bem como a filha que ela não foi.

Outro elemento a ser destacado é a linguagem. A narrativa é crua e visceral, sempre contundente e melancólica. O texto é claro, envolvente, cadenciado. O discurso de Leda é fragmentado e repleto de digressões e rememorações. O tempo todo ela parece pesar e medir as pessoas ao seu redor, ao mesmo tempo que é pesada e medida por si mesma.

Com personagens memoráveis, falas emblemáticas e certa dose de reviravoltas, A filha perdida é uma leitura aguda, que nos prende e absorve até a última página. E nos faz querer voltar ao início para ler tudo de novo.


Ficha Técnica

A filha perdida

Elena Ferrante

 R$ 31,92 até R$ 37,10

ISBN-13: 9788551000328

ISBN-10: 8551000322

Ano: 2016 

Páginas: 176

Idioma: português

Editora: Intrínseca


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segunda-feira, março 28, 2022

Tudo é rio - Vidas na confluência da correnteza



Ler Tudo é rio, de Carla Madeira, é como se jogar na água corrente. É se debater na amarga doçura das palavras e degustar a dor de existências desencontradas. É experimentar um turbilhão. Romance de estreia de Madeira, Tudo é rio vem contar sobre Lucy, Venâncio e Dalva. Não só dessas vidas, mas de outras que se entrelaçam a estas. Lucy, que amava Venâncio, que amava Dalva, que amava sua própria dor.

Muitas são as dores ocultas nesse livro. Muitas também são as histórias. Cada uma escondendo uma dor e um prazer, num jogo de contrastes feito luz e sombra. Nos diversos e entrelaçados trajetos vamos sofrendo juntos essas dores e descobertas. É delicioso provar das palavras fortes e profundas de Carla Madeira. Cada frase parece ter sido cuidadosamente pesada e medida, gestada e parida. Sim, esse é um livro-filho. E na leitura que fazemos, acabamos grávidos das palavras de Carla Madeira.

Não é por acaso que em dado momento o bordado aparece na narrativa. A própria escrita de Tudo é rio nos parece um bordado cuidadoso. As vidas são bordadas no texto com todo o cuidado. Vidas que se vão revelando e já deixando em nós saudades. A tessitura desse romance prende no bordado nossos olhos. E para sempre ficamos enredados.

Como uma torrente incontrolável que tudo traga, a narrativa de Carla Madeira nos arrebata. Vamos levados pela enchente, por tantas e tantas águas. E nas sinuosas palavras da escritora, vamos descobrindo que nós, leitores, também somos rio.


Ficha técnica

Tudo é rio

Carla Madeira

ISBN-13: 9788566256086

ISBN-10: 8566256085

Ano: 2013 

Páginas: 216

Idioma: português

Editora: Quixote

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terça-feira, março 15, 2022

Pequena coreografia do adeus - Uma dança de palavras e silêncios


A autora de O peso do pássaro morto, Aline Bei, está de volta para nos aniquilar através das palavras. Seu romance mais recente, Pequena coreografia do adeus, vem para virar nossas leituras pelo avesso. Mas luminoso que o livro anterior, este não deixa de trazer um texto carregado de melancolia e repleto de sombras.

A protagonista e narradora é agora Júlia Terra, uma náufraga do divórcio dos pais e da animosidade da mãe. Numa narrativa coloquial e disposta em versos, Júlia nos guia pelos destroços de sua vida, mostrando que é, antes de tudo, uma sobrevivente. Apesar da constante violência da mãe e do distanciamento do pai, Júlia vai criando resistência e florescendo. Descobre na palavra uma trincheira e um ponto de apoio. Assim, ela parte do diário rumo a voos mais altos, quando decide escrever ficção.

O romance de Aline Bei é triste, pungente, mesclando o desprezo e descuido da família com o afeto de amizades de pessoas de fora. E com essa acolhida, Júlia vai fazendo seu caminho e se descobrindo potência. O texto de Aline Bei é forte, doído, como a ponta de uma agulha, mas carrega um poder enorme de atração. Na sua força somos tragados e levados a dançar.

A vida de Júlia vai se desdobrando na criação do conto que ela vai escrevendo ao longo do romance. Um conto de tragédia e abandono, dor e perda, sendo também uma narrativa de liberdade através da Arte. E nessa liberdade a escrita de Júlia se encontra, para ser algo mais.

Pequena coreografia do adeus é um romance sobre dor e perda, mas também sobre como se encontrar, nas palavras, nos movimentos e passos de dança, nas notas musicais. Enfim, na Arte, que nos faz humanos e plenos, apesar de todos os nossos destroços.

Ficha Técnica

Pequena coreografia do adeus

Aline Bei

ISBN-13: 9786559210497

ISBN-10: 6559210499

Ano: 2021 

Páginas: 282

Idioma: português

Editora: Companhia das Letras

segunda-feira, março 07, 2022

Demian - Entre dois mundos, uma marca


Sinclair é um jovem diferente. Desde cedo, sente essa diferença. Com uma visão arguta da vida, ele consegue perceber a tensão entre duas existências - a sagrada e a profana. Ansiando sempre pertencer ao mundo sagrado e luminoso, representado por seus pais religiosos, o jovem ainda em pequeno sente profunda atração pelo mundo profano e sombrio, que se representa nos criados que trabalham na casa e nas conversas que eles travam entre si, com relatos sobre sórdidos acontecimentos. Sinclair se percebe fascinado por esse mundo de violência e libertinagem, mesmo querendo pertencer totalmente ao universo sagrado e religioso de seus pais. Assim, essa dualidade lhe causa sofrimento e profunda comoção.

Tudo começa a mudar quando ele encontra Demian. Um pouco mais velho que Sinclair, o garoto tem uma postura altiva, por vezes adulta, mesmo sendo ainda criança. Demian não teme o tal mundo sombrio e age como se pudesse pertencer ao mesmo sem perder seu ar de nobreza e dignidade. Demian parece acima de conceitos de religião e moralidade. Com isso, irá provocar Sinclair, para que este busque seu próprio caminho e alcance um estado de plena humanidade, como detentor da "Marca de Caim".

Assim é, em linhas gerais, o início do romance Demian, de Herman Hesse. Profundo e denso, o livro é narrado pelo próprio Sinclair e nos apresenta três momentos de sua vida: A infância, aos dez anos, a adolescência, aos dezesseis, aproximadamente, e a idade adulta, aos dezoito anos. O livro salta grandes períodos de tempo, focando-se nestes três momentos com maior minúcia e atenção.

Mas afinal, o que quer Demian? Desde cedo ele provoca Sinclair, pois sente nele uma altivez, um porte que o destaca dos demais seres humanos. Demian diz reconhecer no protagonista a "Marca de Caim". Esta não seria sinal de uma maldição, mas da verdadeira liberdade. Aqueles que a tivessem não estariam presos aos preconceitos antiquados, aos valores religiosos e morais, mas estariam prontos a indicar o rumo para o futuro da humanidade.

Desta forma, Hesse reescreve todo o mito bíblico de Cain e Abel, dando-lhe novo significado. Cain deixa de ser um proscrito, amaldiçoado por deus, mas seria na verdade alguém amado pelo altíssimo, que lhe concederia a marca para que fosse protegido. Os demais homens teriam inventado a história do assassinato de Abel por temerem Cain e sua condição de alguém "invulnerável".

Como símbolo central do romance está o falcão que nasce de um ovo, sendo este o mundo, o qual deve ser destruído para que o nascimento possa ocorrer. Sinclair diversas vezes é levado a pensar no símbolo. Afinal, qual dos mundos deve ser destruído para que o nascimento de uma nova humanidade possa ocorrer?

Demian é de fato um romance complexo e profundo. Suas leituras podem ser várias, o que mostra a genialidade do autor. É importante destacar que essa diferença entre sagrado e profano pode também ser uma tensão de classes, uma vez que os pais de Sinclair representam a burguesia. As pessoas ligadas ao mundo considerado profano e sombrio são os pobres, a criadagem, os empregados. Com isso, ao misturar ambos os mundos e destruí-los, Hesse defende que não há superioridade nos valores burgueses. 

Com um texto profundo e inquietante, Demian é um romance inesquecível, capaz de abalar crenças e preceitos. E apesar de ter mais de 100 anos desde que foi publicado, não perde a atualidade. Uma obra que parece ter sido escrita para o nosso tempo de sombras e incertezas.


Ficha Técnica

Editora: Civilização Brasileira

Ano: 1975

Páginas: 162

Tradutor: Ivo Barroso

Perfil do livro no Skoob:https://www.skoob.com.br/demian-1420ed451597.html

sexta-feira, dezembro 03, 2021

O mistério da sala secreta - Aventura e humor na dose certa



Júlia e Gabriel são amigos inseparáveis. Ela é corajosa e extrovertida. Ele é bem humorado e estudioso. Esses dois jovens de 12 anos estudam na Escola Municipal Maria Quitéria de Jesus, que está em vias de ser fechada. Júlia está inconformada, principalmente porque a escola em que estuda tem excelente qualidade no ensino e isso pode impactar seu futuro. Ela não teria condições financeiras para pagar passagem para uma escola no centro da cidade. Por isso, tudo indica que será transferida para a mal afamada "escola da pracinha".

Enquanto Júlia parece fadada a estudar em uma escola que não quer, Gabriel, aluno brilhante, tem chance e condições de estudar em uma instituição melhor. Por isso, não se sente tão afetado pelo fechamento do Maria Quitéria. Mas com isso ele será separado de sua grande amiga.

A aventura de ambos começa quando, numa feira da escola, Júlia e Gabriel ficam conhecendo quem foi Maria Quitéria de Jesus, a mulher que emprestou seu nome à escola. Ficam também sabendo da lenda de que a escola teria uma sala secreta, acessível apenas aos corajosos e merecedores.

Curiosa, Júlia arrasta Gabriel para uma busca pela verdade. Sem que saibam, essa aventura poderá mudar a vida não apenas deles, mas de todas as pessoas que estudam e trabalham na Escola Municipal Maria Quitéria de Jesus.

Esse romance juvenil de mistério foi uma leitura agradável e gostosa. Júlia e Gabriel dividem o papel de narrar a trama em capítulos alternados. São jovens com suas personalidades distintas que influenciam suas atitudes na trama. Enquanto Júlia é mais assertiva, Gabriel é mais contido. Ela é leitora voraz, mas não muito estudiosa. Já ele é o primeiro da classe.

Outro ponto que me agradou muito foi a descrição das personagens. A cor da pele e os cabelos de Júlia e Gabriel ganham destaque, com os volumosos cachos dela e o black power dele. Suas características físicas são bem marcadas e evidenciadas, o que fortalece a questão da representatividade negra na literatura. Os desenhos de Rubem Filho são primorosos e fortalecem ainda mais essa representatividade. 

Com uma trama cativante e um segredo a ser desvendado, O mistério da sala secreta é uma aventura gostosa e divertida, voltada para jovens leitores de todas as idades.



Ficha Técnica

O mistério da Sala Secreta

Lavínia Rocha

Ilustrações de Rubem Filho

Ano: 2021 

Páginas: 176

Idioma: português

Editora: Yellowfante

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-misterio-da-sala-secreta-11717759ed11729822.html

sexta-feira, novembro 26, 2021

Água de Barrela - Sangue e dor na luta por um futuro


Quem foram nossos ancestrais? O que fizeram? Como viveram? Se fosse possível traçar nossas árvores genealógicas e resgatar a história de cada pessoa nelas, o que descobriríamos? Encontraríamos atos heroicos ou crimes hediondos? Será que nos arrependeríamos de buscar as histórias dessas pessoas?

O romance Água de barrela talvez tenha surgido de alguma das perguntas acima. Escrito por Eliana Alves Cruz, este romance histórico é um primoroso trabalho de pesquisa histórica e criação literária. De início, não sabia o que era barrela. Posteriormente, soube que é uma mistura feita para alvejar as roupas, usado pelas mulheres escravizadas para lavar as roupas de seus senhores. Após a declaração da abolição, essas mesmas mulheres continuaram nesse trabalho, como se esse fosse o destino inevitável para elas. 

O livro me encantou já de início, quando vi árvore genealógica que vai de Ewá (Helena), passando por Anolina, Martha, Damiana, Celina, até chegar à Eliana, a autora desse romance histórico que mostra o Brasil a partir da Bahia e das vidas de uma família marcada pela escravização.

Enquanto lia, meus olhos da mente criavam imagens de um país que se transformou de um império colonial a uma república de fachada, como se os tais valores republicanos nada mais fossem do que a tinta que caia um sepulcro. Afinal, essa democracia tão defendida pelos maiores intelectuais brasileiros não alcançou a grande maioria da população, que continuou vítima da exploração, da violência e do preconceito.

Com o objetivo de ultrapassar as barreiras sociais e alcançar ainda que o mínimo de liberdade e dignidade, uma família recorreu à educação. Apesar disso, foi a duras penas e muita roupa lavada que as matriarcas Martha e Damiana foram mudando os destinos dessa família.

Foi através desse livro que conheci Juliano Moreira, médico, um dos maiores do seu tempo. E negro. também conheci Matheus Cruz, grande mecânico, que até os 83 anos lecionava no Liceu Artes e Ofícios.

Mas esse livro é principalmente sobre mulheres. Sobre Martha e Damiana, que vendendo quitutes e lavando roupas foram buscando um futuro melhor para as filhas. Sobre Dodó, explorada até a morte pelo mesmo clã que no passado escravizou, torturou e estuprou suas ancestrais. É sobre Celina, corajosa professora, capaz de enfrentar o risco do cangaceiro Lampião, sem no entanto esmorecer.

Ao terminar o romance, senti culpa por minha branquitude, pelos privilégios estruturais que carrego na minha pele. Senti tristeza por saber que o país continua matando jovens negros. Senti também uma profunda comoção ao ver a justiça de Xangô, que nos descendentes de Ewá, Anolina, Martha, Damiana e Celina elevou essas heroínas, imortalizando-as nesse livro potente e profundo.


Ficha Técnica

Água de barrela

Eliana Alves Cruz

ISBN-13: 9788592736408

ISBN-10: 8592736404

Ano: 2018 

Páginas: 322

Idioma: português

Editora: Malê

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/agua-de-barrela-743875ed834219.html

sexta-feira, novembro 19, 2021

Torto arado - Um talho profundo na alma


Bibiana e Belonísia são irmãs. Filhas de Salustiana e do curador Zeca Chapéu Grande, as duas meninas são precoces, tendo de sobra inteligência e curiosidade. Com elas mora Donana, mãe de Zeca, uma mulher com muitos mistérios e uma mala onde esconde uma preciosa faca de prata. Até que um dia as duas meninas resolvem brincar com o objeto proibido e essa decisão muda para sempre a vida das duas.

Assim tem início Torto arado, romance de Itamar Vieira Júnior. Trata-se de um livro forte, pungente, com uma narrativa em primeira pessoa que aproxima o leitor a um nível íntimo com a trama que se desenrola. O livro está dividido em 3 partes, sendo cada uma conduzida por uma narradora diferente. Pelas palavras delas nós vamos conhecendo a dura realidade da família, moradora do da fazenda Água Negra. Nela, várias pessoas vivem em regime análogo à escravidão, trocando trabalho por moradia e um pedaço de terra para cultivar. 

Talvez o arranjo pareça razoável. Porém, não é o que acontece. As pessoas são obrigadas a trabalhar de graça nas colheitas dos donos das fazendas, de domingo a domingo, não tendo tempo para cuidar de seus roçados. Para garantir sua subsistência, as esposas e filhos dos lavradores precisam se dedicar ao roçado da família. As casas dos trabalhadores não podem ser construídas com material de alvenaria. A proibição existe para que as construções não durem. Sendo assim, as famílias precisam de tempos em tempos construir casas novas, usando o mesmo barro que cobre o chão. Além desses abusos, de tempos em tempos as famílias são extorquidas pelo gerente da fazenda, que rouba suas produções.

É nesse ambiente que crescem Bibiana e Belonísia. Ambas dividem sua vida através do fio prateado da faca de Donana. O pai delas, Zeca Chapéu Grande, é um grande curador e líder espiritual, que conduz as cerimônias espirituais do Jarê, onde os encantados como Iansã e o Velho Nagô se manifestam. Sua história é dura, árdua, desde o nascimento em pleno canavial até a loucura que o acometeu em sua juventude. Assim vão se desdobrando os dramas, as lutas e as potências dessa família. 

No fio da faca de Donana a história é traçada. Esse fio deixa um sulco por onde escorre a água e o sangue. A faca de prata é como um arado a talhar fundo em nós. A agudeza da faca é como a dureza da vida dessas pessoas cujo romance nos faz testemunhas. E não apenas isso. Somos feitos testemunhas e também vítimas. Sendo assim, ninguém sai incólume da leitura desse romance. Ninguém sai ingênuo. Ao fim do romance é impossível ficar alheio a esse Brasil subterrâneo, silenciado e, muitas vezes, amputado.

Vencedor dos prêmios Leya, Jabuti e Oceanos, com sua narrativa poderosa e profunda, Torto arado é um romance desafiador que marca o leitor, deixando sua alma ferida, talhada. Um romance que nos atravessa de ponta a ponta.


Torto arado

Itamar Vieira Junior

ISBN-13: 9786580309313

ISBN-10: 6580309318

Ano: 2019 

Páginas: 264

Idioma: português

Editora: Todavia

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/torto-arado-915037ed921450.html

sexta-feira, novembro 12, 2021

Coraline - Uma passagem para a maturidade


Coraline é uma menina diferente. Movida por uma insaciável curiosidade, ela passa o verão inteiro explorando os arredores da casa em que mora. A própria residência tem suas peculiaridades. Trata-se de um casarão dividido em 4 apartamentos. Um deles está vazio, sendo justamente ao lado daquele em que a menina mora.

A curiosidade de Coraline a impulsiona a longos passeios pelos arredores. Até que um dia chuvoso faz com que a menina perceba uma porta que dá para uma parede de tijolos. A curiosidade por saber o que haveria além daquela parede guia a menina a um outro mundo, onde a comida é mais saborosa, os pais são mais presentes e os vizinhos, muito mais interessantes.

Alguma coisa, porém, mostra a Coraline que aquele mundo ideal não é seguro. Todas as pessoas que lá habitam têm botões pretos no lugar dos olhos. Um detalhe, no mínimo, assustador. 

Coraline pode ser considerado um romance de terror voltado para jovens leitores. Narrado na perspectiva da protagonista, o livro traz muitos dos dilemas da infância, principalmente o abismo entre crianças e adultos, a incompreensão, a tirania e o isolamento a que adultos acabam por relegar as crianças.

A protagonista é intrépida e inventiva. Porém, o texto sempre nos lembra que ela é mais baixa, inclusive para a idade, e também mais fraca. Assim, ela precisa enfrentar desafios muito maiores e mais perigosos do que seria de se esperar para crianças de sua idade.

Para compensar o terror e o perigo a que o ambiente do romance nos envolve, há uma narrativa fabulosa, divertida e aconchegante. É como se estivéssemos o tempo todo segurando a mão de Coraline, para lhe dar coragem, mas também para sermos reconfortados por ela em nossos medos. É preciso mencionar também os inusitados aliados que surgem ao longo da trama.

Por fim, a primorosa ilustração de Chris Riddel nos envolve ainda mais no clima do romance. 

Com uma narrativa envolvente, num ambiente salpicado de sustos e sobressaltos, Coraline é uma elaborada fábula sobre quão assustador é crescer. Assustador, sim, mas necessário.


Ficha Técnica 

Coraline

Neil Gaiman 

Desenhos de Chris Riddel

ISBN-13: 9788551006757

ISBN-10: 8551006754

Ano: 2020 

Páginas: 224

Idioma: português

Editora: Intrínseca

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/coraline-218759ed1193129.html