sexta-feira, janeiro 29, 2021

Ualalapi - O estertor de um império


Por vezes, esquecemos que  não somos os únicos que falam uma língua imposta por um invasor europeu. A nossa língua materna, aquela que nós brasileiros usamos com orgulho e muito ciúme, veio do outro lado do Atlântico, junto com espada, chumbo, pólvora, chicote e muito sangue.

Como já disse, não somos os únicos detentores dessa ambígua "herança". No percurso de invasão ao que futuramente se chamaria "Américas" e "Brasil", os emissários do reino de Portugal traçaram uma rota de muita violência. E deixaram feridas que supuram até nossos dias.

Ualalapi, do moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, é um romance nada convencional. Desprovido de um protagonista, o enredo parte da perspectiva do guerreiro que empresta o nome ao livro. Ele recebe a ordem de Ngungunhane, último imperador de Gaza, para matar o príncipe Mafemane. 

A partir desse relato, uma sequência de fragmentos contam uma história impossível de ser narrada, justamente por seu caráter frágil, múltiplo e irregular. Essa história conta sobre o Império de Gaza, que ocupava a região que hoje conhecemos como Moçambique. E da ruína desse império surge uma colônia que até 1975 estava sob o domínio de Portugal. 

Ualalapi é um livro difícil, principalmente pelas sombras e abismos que revela. No livro, um mundo de espíritos ancestrais sofre uma inevitável dissolução. Seja por conflitos internos ou externos, é possível observar que o tom é de constante perda. Não apenas pelo enredo irregular, mas principalmente pelas violências perpetradas.

A oralidade é outro elemento marcante do texto de Ungulani. Os frequentes discursos, bem como os diálogos, carregam constantes marcações coloquiais. Em dado momento, é levantada a questão do uso do Português, língua imposta a uma população falante de diversas outras línguas. Em um tom de amargura, o texto questiona os valores ocidentais.

Com sua narrativa múltipla, seu tom de amargurado testemunho e sua composição fragmentária, Ualalapi é um verdadeiro épico, uma epopeia daqueles que, embora derrotados e mortos, continuam até nossos dias a bradar seus protestos por alguma justiça. 


Ficha Técnica 

Ualalapi

Ungulani Ba Ka Khosa

ISBN-13: 9788561191924

ISBN-10: 8561191929

Ano: 2013 

Páginas: 125

Idioma: português

Editora: Nandyala


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/ualalapi-59182ed65221.html

quarta-feira, janeiro 27, 2021

Vídeo: Mandala - Leila Míccolis

Olá a todas, todes e todos! Compartilho hoje um poema de Leila Míccolis, chamado "Mandala". Agradeço ao amigo Sérgio Fantini, que me emprestou o livro no qual encontrei este poema.




Até o próximo vídeo, semana que vem!

sexta-feira, janeiro 22, 2021

A espiral de Netuno - A vida em vórtice


Uma espiral é um fenômeno curioso. Algo que ocorre na natureza em diversas circunstâncias. Em umas, é inofensivo, como uma concha de um marisco ou de um caracol. Em outras, é algo avassalador, como um tornado, um furacão ou um sorvedouro.

E ao pensar na imagem do sorvedouro, somos remetidos diretamente ao título do livro A Espiral de Netuno. Escrito por Mishal Katz, este livro de poesia está dividido em 3 partes: O Adulto, A Criança e O Futuro.

Na primeira parte, temos poemas questionadores, repletos de amargura, solitude e desencanto com a vida.

Já a segunda carrega um forte maneirismo e um senso de experimentação e curiosidade. Como que simulando o que há de melhor no comportamento infantil, o eu lírico testa, experimenta, transgride. Os poemas zombam da noção de sentido e forma.

A terceira parte, por fim, assume um tom admoestatório. Os poemas surgem carregados de conselhos, assumindo também um tom esperançoso, em contraponto à amargura do Adulto.

Mergulhar na leitura de A Espiral de Netuno foi uma experiência interessante, uma possibilidade para refletir, discordar e também questionar. Era como se os poemas me convidassem a girar sobre meu próprio eixo. Como se o centro do sorvedouro, o fundo da espiral, fosse aquilo que nós, seres humanos, temos em comum: o próprio vazio da existência. 


Ficha Técnica 

A Espiral de Netuno

Mishal Katz

ISBN-13: 9786590195715

ISBN-10: 6590195714

Ano: 2019  

Páginas: 156

Idioma: português

Editora: Katz


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-espiral-de-netuno-984508ed1107904.html



quarta-feira, janeiro 20, 2021

Vídeo: Ai! Sou apenas um livrinho - Soraia Magalhães e Bernardo Bulcão


Olá a todas as pessoas que acompanham este blog. Hoje trago mais uma leitura em vídeo. Trata-se do mais recente lançamento de  Soraia Magalhães, com os desenhos de Bernardo Bulcão.

Ai! Sou apenas um livrinho lança a Coleção Timtim, publicada pela Editora Tuya.




sexta-feira, janeiro 15, 2021

Sem gentileza - Dor e perda rumo à esperança


O que fazer quando o seu destino parece traçado? Como reagir quando esse destino não oferece alternativa e tudo parece conspirar contra todas as suas tentativas de uma vida um pouco menos cruel? Quando homens que deveriam proteger só trazem desgraça e tristeza?

Talvez essas sejam algumas das questões que atravessam a mente e o coração da jovem Mvelo. Com apenas 15 anos, a garota precisa cuidar da mãe aidética, enquanto se vê vítima de uma violência brutal. Essas não são as únicas aflições da jovem. Moradora de uma favela na África do Sul, Mvelo se vê cercada das piores condições de vida, com ninguém a quem recorrer a não ser ela mesma.

Assim tem início o romance Sem gentileza, de Futhi Nshingila. Ambientado em uma África do Sul após o apartheid, a narrativa mostra como a segregação racial ainda se faz presente na sociedade sul-africana, principalmente através da pobreza, do descaso do governo, da ausência de moradia digna e de acesso à saúde. Outras tantas mazelas cercam Mvelo e sua mãe. Por exemplo, a exploração religiosa e o machismo predatório que vitimam muitas jovens negras.

Nem tudo é desgraça e tristeza, porém. Mvelo encontra em Nonceba, uma jovem advogada, uma figura de referência, alguém que é capaz de se impor, que não se submete a homem algum. Além disso, Nonceba parece protegida pelos espíritos ancestrais. As pessoas que a temem pensam que Nonceba é feiticeira. O poder dessa mulher, de fato, por vezes parece sobrenatural. Contudo, o que mais é perceptível na personalidade de Nonceba é seu pulso firme, além de sua competência e da total confiança em si mesma.

Através de uma escrita direta e concisa, Nshingila guia o leitor, convidando-o a testemunhar diversas vidas e histórias, com momentos cruciais de morte e vida, ressaltando a força da ancestralidade que vai de encontro com os valores ocidentais e brancos. Assim, com um romance repleto de dor e perda, a autora vai traçando um texto de denúncia, expondo as mazelas a que estão submetidas tantas mulheres africanas.

Durante a leitura de Sem gentileza, talvez o leitor irá se perguntar: "Será que existe alguma esperança?" Contudo, mais do que procurar um alívio para as personagens do romance, certamente é fundamental a cada um de nós refletir nosso papel nessa teia, nesse emaranhado de vidas que continuam sofrendo os efeitos de séculos de violência, preconceito e segregação.


Sem gentileza

Futhi Ntshingila

Tradução de Hilton Lima

 R$ 26,91 até R$ 44,90

ISBN-13: 9788583180791

ISBN-10: 8583180792

Ano: 2016 

Páginas: 160

Idioma: português

Editora: Dublinense


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/sem-gentileza-593558ed594744.html

quarta-feira, janeiro 13, 2021

Vídeo: O mal do Lobo Mau - Cláudio Fragata e Luiz Maia



Um lobo doente e uma ovelha enfermeira. Isso só pode dar confusão. Acompanhe as peripécias do lobo adoentado. Será que ele sara ou não? E o que será da ovelha se ele resolver fazer uma refeição?


Ficha Técnica:


"O mal do Lobo Mau"

Claudio Fragata

Luiz Maia

ISBN-13: 9788538520269

ISBN-10: 8538520261

Ano: 2009 

Páginas: 24

Idioma: português

Editora: Positivo




Mais histórias e poesias em: http://www.oguardiaodehistorias.com.br/

sexta-feira, janeiro 08, 2021

Canção sem palavras - Sobre tudo que é impossível dizer


Há livros que prometem reverberar para sempre em nós. Por vezes nos arrebatando apenas uma vez, por outras nos atraindo para mais uma leitura. Foi o que aconteceu comigo quando terminei de ler Canção sem palavras, de Laura Cohen Rabelo.

Romance de viagem, esse livro conta o périplo de Maria Teresa, Matê, por fronteiras e continentes. A maior parte da narrativa, porém, acontece em Israel. Matê é judia e por isso tem o direito a uma viagem por esse país, financiada pelo programa birthright

A oportunidade dessa viagem torna-se também uma possibilidade de mudança e transformação. Antes de viajar, Matê estava em crise. Violonista de sucesso, ela faz um duo com o namorado, Arie. Tudo parecia estar dando certo para eles até que o rapaz decide romper o relacionamento e desaparecer. Matê se sente traída e abandonada. Para quem tinha tantas certezas, agora tudo parece incerto.

Assim, a moça empreende uma viagem que também representará um mergulho em seu interior, na história de seu povo e de sua própria família. Como todo rito de passagem, essa jornada muda profundamente a jovem, assim como o deserto, que parece sempre o mesmo, está em constante mudança. 

Ainda que escrevesse milhares de palavras, talvez não conseguiria expressar tudo o que esse romance significou para mim. As referências musicais, os elementos geográficos e históricos, a escrita lírica e ao mesmo tempo contida de Laura Cohen Rabelo, esses e outros elementos elevam esse livro à condição de obra-prima. 

A narrativa fala de muito do que não pode ser dito, por mais que as pessoas tentem verbalizar. A relação entre Matê e as pessoas que ela ama, por exemplo, ou mesmo o que o violão significa para ela, ou como toda a jornada que faz vai movendo o seu interior, na certeza de que nada é permanente.

Por fim, ao terminar a leitura, também me senti contaminado por esse sentido que não conseguia definir. Algo que parecia saudade, nostalgia, uma pequena e doce tristeza. No deserto do meu interior, nesse deserto marcado no tempo em que estamos, o deserto chamado pandemia, pude ser impactado pela certeza de que tudo muda, de que tudo vai mudar.


Ficha Técnica

Canção sem palavras

Laura Cohen Rabelo

ISBN-13: 9788594940148

ISBN-10: 8594940149

Ano: 2017 

Páginas: 280

Idioma: português

Editora: Scriptum


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/cancao-sem-palavras-745393ed748336.html

quarta-feira, janeiro 06, 2021

Convite - Contar Histórias - Universidade da Cidade - UFMG


Quero fazer um convite. Estaremos hoje dando início a encontros literários no canal do Espaço do Conhecimento da UFMG (youtube.com/espacoufmg).

Confira a Programação:

06/01 - A poesia na boca (leituras de Cora Coralina) – Equipe da Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte

13/01 - Do terror ao riso na literatura brasileira – Equipe da  Biblioteca do Centro Cultural Liberalino Alves de Oliveira

20/01 - Leituras de Conceição Evaristo – Equipe da  Biblioteca do Centro Cultural Vila Santa Rita

27/01 - Do chapéu à fita - os muitos modos de contar uma história (leitura do conto "Fita verde no cabelo", de Guimarães Rosa) – Equipe da  Biblioteca Centro Cultural Salgado Filho

Vamos lá?


 



segunda-feira, janeiro 04, 2021

Pesadelos de Pandemia

Fonte: https://pixabay.com/pt/photos/lugares-perdidos-keller-elevador-1928727/

Ele tinha pressa, pois a reunião estava para começar. Não precisava correr, era só ligar o computador, mas a pressa o fazia pensar em sair correndo para não chegar atrasado. Como a maioria das coisas que acontecem em sonho, isso não fazia sentido.

Conseguiu então fazer o notebook funcionar. Entrou em reunião através do link, mas foi como se adentrasse pesados portões. Apesar disso, estava com o microfone e câmera desligados. Até aí, tudo bem.

Foi subitamente chamado para fazer uma apresentação. Porém, ele não tinha preparado nada; havia se esquecido da tarefa. Mesmo assim, tinha que apresentar alguma coisa. Resolveu improvisar.

Abriu o microfone e começou a falar. Foi aí que percebeu: estava pelado. Conferiu a câmera e sentiu alívio ao constatar que ela estava fechada. Então por que todos estavam rindo como se vissem algo ridículo? O alívio deu lugar à desconfiança e esta, ao medo. Passou a achar que todos conseguiam ver que estava pelado, mesmo com a câmera desligada. Também não conseguia entender como sabia que todos riam dele, se a tela do notebook também estava desligada. 

Seu maior pesadelo acontecia: acessar uma reunião de teletrabalho com a sensação de ter esquecido de ligar o computador.