Mostrando postagens com marcador Infância. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Infância. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, fevereiro 14, 2024

Grande novamente

https://pixabay.com/users/ljcor-3559387/

Não me lembro de ter sentado no colo de meu pai. Lembro-me, sim, de ter subido em seus ombros. Segurava com minhas mãos pequenas a sua grande testa e repousava o queixo em sua cabeleira farta. Meu pai era um homem baixo. Pra mim, porém, era enorme.

O tempo e um divórcio nos afastou. A distância também se fez presente no campo físico. Cidades e estados diferentes nos separavam. Meu pai, antes enorme, foi diminuindo até desaparecer. Até mesmo das fotografias.

Certa vez, viajamos para o Rio e minha mãe tentou uma reaproximação nossa com o meu pai. Ele estava em seu terceiro casamento, e um quarto filho, que a gente não conhecia. Ele resolveu sair do Realengo e nos visitar lá na Tijuca onde estávamos hospedados. Foi assim. A campainha tocou. Fui até a varanda do apartamento de segundo andar para ver quem era e deparei-me com ele, com sua baixa estatura (ainda era alto pra mim) e seus olhos azuis. Estava com a mão erguida na altura dos olhos, para protegê-los do sol.

Com o choque, corri e me escondi debaixo da cama. Sentia pânico desse estranho tão familiar, tão meu. Minha mãe foi me buscar e tentar reconciliar-me com o meu pai. Não foi fácil, mas no fim, eu aceitei sua presença e partimos, com meu irmão e minha irmã, para o Realengo.

No caminho, paramos em um açougue. Meu pai comprou alguns quilos de carne para nós. Era uma época em que carne era sempre uma festa. Ele pediu que o açougueiro passasse o bife "naquela máquina esperta". O efeito da tal máquina era deixar o bife mais macio, creio eu. Um rolo compressor com pinos que espremiam a carne. Mas a coisa mais curiosa era que o pedido de meu pai me fez sentir orgulho dele. Era como se tudo que meu pai fizesse ou falasse fosse algo digno de nota, tamanho era meu deslumbramento. Naquele momento, em que fazia um pedido trivial cheio de maneirismos e da simpatia carioca, meu pai ganhava dimensões quase míticas. Ele era novamente grande. Melhor ainda, era meu.


quarta-feira, fevereiro 07, 2024

De mudança em mudança

https://pixabay.com/users/msaeedsalem-5655159/

Minha infância foi pautada por mudanças. Do Rio de Janeiro para Belo Horizonte, Minas Gerais, de volta ao Rio e depois para Teófilo Otoni, em Minas. Nessa cidade do interior de Minas, também me mudei algumas vezes. No fim da infância, viemos todos para Belo Horizonte, onde estamos estabelecidos desde então.

Da mudança para Teófilo Otoni, lembro-me da viagem para lá. Eu tenho essa memória de acordar ainda no ônibus e ver morros suaves no lugar de montanhas. Esses morros eram salpicados de árvores e davam uma paz tão grande! Estava curioso com a nova cidade onde moraria. É engraçado como não me lembro bem do processo de mudança. Só me lembro de estar lá, já estabelecido, nem desfazer minha mala está em minha memória. Talvez eu mesmo não tenha desfeito essa mala, por conta da idade.

Lá em Teófilo Otoni, fui matriculado em uma escola pequena, particular. Algo que levei comigo foi a dificuldade de aprendizado. Uma das coordenadoras chegou a sentar do meu lado e tentar me explicar algo básico: como copiar um texto sem transcrever palavra por palavra, mas a frase toda. Ela dizia: "Leia a frase inteira, ou um pedaço dela, guarde essa frase na cabeça e depois escreva no caderno." Nem isso eu conseguia. Ela acabou desistindo. Depois, fui para uma escola pública que levava o nome da cidade. Foi lá que eu descobri o prazer da leitura.

Da separação dos meus pais, levei os vazios das fotos. Digo vazios porque um dia eu e minha irmã cortamos nosso pai das fotografias, achando que ele era um estranho. Perguntamos para minha mãe se podíamos cortar o estranho das fotos e ela autorizou.

Em Teófilo Otoni, encontramos novas possibilidades de existência. As mudanças, porém, não acabaram. Do Centro, nos mudamos para o Boiadeiro e, de lá, para o Bairro São Jacinto. No Boiadeiro conheci a arte de amar as galinhas. Tive uma de granja, toda branca, que amei até ela desaparecer na vida. Ou na panela, talvez. 

No São Jacinto criamos coelhos, além das galinhas. Fomos morar em uma casa bem simples, com paredes de barro que descarnamos do reboco numa reforma. A casa foi transformada. Porém, antes de ficar pronta, partimos para Belo Horizonte. 

Nossas vidas de mudanças não acabaram, porém. Em Belo Horizonte, conhecemos os bairros Lagoa e Jardim Europa. Nosso pouso definitivo foi no Céu Azul, numa região conhecida como Garças. 

Ah, quem dera aquele lugar fosse um paraíso. Revelou-se purgatório, ao menos. Descarregar tijolos, peneirar areia, levar baldes de cimento nas costas. Todo esse trabalho foi para erguer uma casa do zero. E se tornou a casa de minha mãe e meu padrasto, até hoje. Quase trinta anos se passaram e essa casa nunca ficou pronta completamente. Seu projeto original nunca foi concluído e ela passa por reformas que a alteraram completamente. 

Trinta anos. Sim, após uma infância repleta de mudanças, estabeleci-me em Belo Horizonte. Essa família que chamo de minha, fragmentada e remendada novamente, reconfigurada a partir de novos integrantes, é também reflexo da minha própria existência, fragmentada, dividida e reconfigurada. E continuo buscando um sentido. Não sei qual, mas sigo em busca. O que fazer quando encontrá-lo? Aí, sim, talvez minha vida comece de verdade.

segunda-feira, novembro 06, 2023

A pelada peluda no largo da bola - Abordando o racismo com coragem


Dia desses li um ótimo livro do Cuti. A Pelada Peluda no Largo da Bola. Um livro incômodo mas divertido sobre questão social e a miscigenação de parte da classe média baixa no Brasil. As questões raciais, socieis e de gênero abordadas no livro são complexas, mas Cuti as aborda com coragem e inteligência.

O livro conta de um grupo de crianças que organiza uma pelada polêmica que chega a ser peluda: pretos contra brancos. E logo de cara já surge uma fala racista de uma personagem e a outra reage, dando-lhe um soco na cara. Uma reação à altura da violência sofrida.

Cada capítulo apresenta um novo personagem, com seus dilemas, sua individualidade e questionamentos. Seja João Pena, filho de uma viúva, seja Henrique, criado pela vó e já trabalhando tão cedo, ou até mesmo Baiano, o de cor mais escura e vítima da estigmatização.

A escrita de Cuti é sublime e não há um só protagonista. A vivência da questão racial é complexa para se representar num só herói. Os lugares e não-lugares são muitos e incomodam; são espinhosos e doloridos.

Os desenhos já datados de Edu Andrade mostram uma estética que ficou no tempo, numa época em que a ilustração não era vista com a riqueza e complexidade que se vê hoje. Isso acaba interferindo de forma negativa a leitura do livro.

Confesso que é difícil falar desse livro, apesar do diálogo apaziguador que vem através da sabedoria africana. Cuti não poupa ninguém, embora honre as representantes dos orixás. Até mesmo o preconceito cristão evangélico é denunciado através da hipocrisia de um certo finado.

Apesar dos desenhos não tão primorosos, o texto de Cuti nos embala e mostra que o racismo na literatura, por mais espinhoso que seja, é um tema que precisa ser abordado com coragem e responsabilidade.


Ficha Técnica

A pelada peluda no largo da bola

Cuti

Ano: 1988 

Páginas: 40

Idioma: português

Editora: Editora do Brasil S/A

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-pelada-peluda-no-largo-da-bola-75096ed82787.html

quarta-feira, outubro 25, 2023

Uma biblioteca para todas as crianças



Falar sobre uma biblioteca que acolha a infância é um grande desafio. E esse desafio foi aceito por Fabíola Farias e Cleide Fernandes na oficina "Uma biblioteca para todas as crianças", acontecida na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH no dia 06 de outubro de 2023, sexta-feira, pela manhã. Fabíola deu início à sua fala nos convidando a pensar na infância e sua relação com a biblioteca. Disse que aborda a infância a partir da perspectiva do recorte etário. Sendo assim, ela fala de experiência de infância, ou seja, os muitos jeitos de ser criança.

Em seguida, ela nos convidou a pensar a biblioteca e lançou a pergunta: Qual o sentido de uma biblioteca hoje, quando tudo está às mãos no toque de um celular? Para que uma biblioteca hoje? Para pessoas com poder de compra? Ela perguntou se com o recurso gasto na biblioteca (água, luz, telefone, funcionários, acervo etc.), seria mais barato dar um tablet para cada leitor. O que ganhamos com a biblioteca? 

Dentre as participantes, algumas pessoas falaram da experiência de usar uma biblioteca. Outras disseram da importância do apoio de um bibliotecário. Uma outra pessoa disse que o livro físico é insubstituível. Fabíola contrapôs que sua filha de 17 anos discorda. Outra pessoa colocou que s questão seria a ação cultural e também da experiência num sentido mais amplo.

Eu aproveitei e coloquei minha opinião. Disse que o tecnológico se perde com muita facilidade. Um livro digital pode desaparecer no volume de informações. O advento de esbarrar com um livro que você nem sabia que queria é algo fabuloso. A IA não sabe o que eu preciso e não sei que preciso. Ela não favorece a descoberta. A preparação para as mediações que não são imediatas. O encontro. 

Voltando à questão da experiência num sentido mais amplo, Fabíola falou sobre as ações de ver, indagar, transformar o mundo e assim ter um contato menos ingênuo e menos imediato com o mundo. Uma possibilidade de formação e acesso ao conhecimento.

Dando continuidade, Fabíola pediu para pensarmos na representação das crianças na literatura. Quem são as crianças que imagino quando abro as portas da biblioteca? A criança "danoninho", idealizada? A criança que reflete os nossos desejos. Isso fala de uma romantização da infância. Estudos "identitários" mostram que a experiência da infância é muito mais ampla do que imaginávamos. Por fim, Fabíola nos convidou a pensar nos livros e como eles retratam as crianças.

Ela lançou então a seguinte pergunta: O que é uma criança? Podemos responder pelo viés da Sociologia, da Pedagogia, da Biologia, da Lei, da Psicologia. A lei é mais universal. Porém, existem características que singularizam a experiência.

Voltando à questão dos livros, de 20 anos para cá, a representação e a representatividade das crianças mudaram nos livros. Não havia antes livros com crianças negras e, quando havia, esta era estereotipada. Com a Lei Federal 10639 de 2003, o cenário começa a mudar. Foram surgindo livros que tratavam do tema ancestralidade, relação com o fogo, uso de tranças no cabelo. Havia uma romantização de pertencimento ao continente africano. A autoria nem sempre era de pessoas negras. O mercado teve que se adequar. Afinal, o dinheiro fala mais alto. Não podemos negar, porém, que essa fase foi importante. Contudo, outras representações foram surgindo, o que mostra um amadurecimento na produção editorial.

Existe o benefício da identificação. Com exemplo, há o livro À sombra da Mangueira. Está disponível sua versão digital para leitura. Ele mostra outro lugar para essa representação. Fabíola então contou a história do livro. Ângelo Abu foi para Moçambique pesquisar para fazer as capas dos livros do Mia Couto. Entrou em contato com uma ONG e ofereceu oficinas de arte em troca de casa e comida. No final, as crianças deram uma oficina para ele. Foi uma viagem transformadora.

Outro exemplo é o livro Brincar de livro que, dentre outras coisas, fala do direito ao tempo da leitura. Esse livro faz um deslocamento muito grande. Ele aborda personagens negras com tempo para brincar e ler. É uma história linda  com uma representação deslocada dos estereótipos. Outros livros foram apresentados com representações diversas. É importante pensar nas crianças com mãe ou pai privados de liberdade, adotadas, com pais gays, indígenas, com deficiência. 

E por falar em pessoas com deficiência, Cleide entrou abordando a questão das exigências que os editais atualmente estão fazendo. Trata-se de um avanço. Na perspectiva das pessoas com deficiência, nós temos que escutá-las. São vários os recursos atuais. Com o aumento de recursos utilizados, mais pessoas serão incluídas.

Um dos recursos mais comuns é o Braille. Mas nem todo cego vai ler em Braille. Se for cegueira de diabetes, não haverá sensibilidade nos dedos. Sendo assim, é importante ter sensibilidade, disposição para aprender e, principalmente, mediar. 

Ao final da oficina, saímos repletos de conhecimentos, com muita coisa para pensar. E principalmente, ficamos muito gratos pela Cleide Fernandes e pela Fabíola Farias pela oficina que nos foi ministrada. Que possamos nos sensibilizar para as diversas experiências de infância e que busquemos uma biblioteca mais plural e acolhedora.






















Registros feitos pela Marly Rezende. 

segunda-feira, outubro 23, 2023

Toda cicatriz desaparece - Pequenos pecados e grandes tragédias



Há pessoas que, desde que nasceram, enfrentam as mais diversas dificuldades. Fome, pobreza, doença. E tais dificuldades parecem moldar, definir as vidas dessas pessoas. Principalmente se essas tragédias aconteceram durante a juventude.

Toda cicatriz desaparece, livro de crônicas autobiográficas de Rogério Pereira, nos apresenta alguém marcado pela vida. Fome, miséria, alcoolismo, trabalho infantil, essas são algumas das tragédias que acompanham o cronista, que carrega o ar de quem foi marcado profundamente por elas. Melancolia é pouco para tentar definir o tom do livro.

As crônicas são pungentes, agudas, doem aos olhos e nos comovem. Rogério aparece como um náufrago, arrastando consigo seus fantasmas e memórias de pequenos pecados inconfessos. Destes pecados o mais destacado talvez seja o de furto. Um ladrão de comida. O de matador de passarinhos vem em segundo lugar. Em seguida, outros pecados aparecem, sempre apresentados num tom que passeia entre o desafio e a resignação.

Apesar das crônicas abarcarem o tempo cronológico da infância e da juventude, com uns lampejos da fase madura, não há uma sequência temporal. Ao invés de uma linha reta, nós nos deparamos com uma espiral, onde memórias dolorosas são revisitadas à exaustão. Assim, somos convidados a conhecer o inferno particular de Rogério Pereira, com suas dores e fugidias delícias.

De todas as tragédias pessoais abordadas no livro, talvez a mais referenciada seja a súbita morte da irmã, aos 27 anos. Uma morte abrupta e sem sentido. A forme que acossava a família é outra tragédia dissecada pela pena do autor. Há outras mais, como o vício do pai no álcool, que seguiu o autor como um atavismo, bem como as ameaças e surras que o pai dava na mãe e nos filhos.

Ninguém escapa da crueldade do pai. Nem a cachorra Princesa, que foi levada para ser abandonada em um bairro distante. Os dois meninos, levados para acompanhar a operação, podiam, inclusive, imaginar o perigo de sofrerem fim semelhante.

Nesse livro, toda a beleza é desconstruída, seja pela fome que se torna uma urgência, seja pelo piolho passeando livremente pela orelha da amada. As fealdades, porém, são destacadas, também pela fome, pela situação indigna dos personagens, na doença personificada pelo câncer, que tudo corrói.

Não há lugar para otimismos. Mesmo momentos de vitória, como a leitura de uma crônica em Frankfurt, se torna episódio de melancolia e da constatação de uma derrota pessoal, íntima e intransferível.

Todos os mortos são vasculhados, dissecados e expostos. Seja a mãe, com sua boca sem dentes e o furo da traqueostomia, seja a irmã, com seu silêncio, seu corpo franzino e as surras que levava. Até  alguns colegas mortos são evocados, através das travessuras provocadas pela forme e escassez, ou também pelos sonhos compartilhados em comum, de alcançar o estrelato em algum campo de futebol.

E por falar em sonhos, eles aparecem justamente para serem destroçados. Numa escrita poética e profundamente visceral, as crônicas nos falam desses sonhos frustrados numa narrativa que nos envolve e comove.

Com um emaranhado de memórias, uma narrativa de uma escrita primorosa, Toda cicatriz desaparece é um mergulho em lembranças dolorosas, escritas com apuro, uma jornada íntima ao passado de um homem que, a despeito de suas conquistas, nunca deixou de sentir cada uma de suas dores. 


Ficha Técnica

Toda cicatriz desaparece

Rogério Pereira

ISBN-13: 9786557982549

ISBN-10: 6557982540

Ano: 2022 

Páginas: 208

Idioma: português

Editora: Maralto


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/toda-cicatriz-desaparece-122245025ed122251461.html

quarta-feira, outubro 18, 2023

Devaneios sobre um guarda-chuva

https://pixabay.com/pt/users/pexels-2286921/


Quando criança, usava o guarda-chuva mais como brinquedo do que proteção para a chuva. Por vezes era espada, influência dos sabres de luz jedi ou dos filmes de cavalaria. Em outras ocasiões, era espingarda, com a qual combatia vietcongues, mafiosos e bandidos.

Em períodos chuvosos, quando precisava do guarda-chuva em sua função para o qual foi fabricado, imaginava-o como cobertura de um veículo sofisticado, fosse terrestre, aquático ou aéreo.

Hoje, com o esfarelamento da minha infância e da ludicidade inerente a ela, quase não uso guarda-chuva. Prefiro as capas, que por mais que me façam suar, cobrem minha vergonha.

Nunca brinquei com o guarda-chuva como um objeto vivo. Bem, já o imaginei como um bastão mágico, objeto onírico, com o qual fazia valer minha suposta vontade. Isso, porém, era mais delírio que brincadeira. 

Em minha juventude, nunca dividi o guarda-chuva com uma amada platônica ou uma paixão não declarada. Minhas chuvas sempre foram solitárias e melancólicas. Tanto que suspiro sempre que vejo a chuva. Sinto meu corpo todo arrepiado. 

Existe um mistério na chuva. A água que cai do céu, por mais que o fenômeno seja explicado, é sempre um milagre.

Por isso talvez não goste tanto de guarda-chuvas. Sentir a água em meu corpo é uma forma de também viver essa magia. Esse milagre tão singelo e gratuito.