quinta-feira, dezembro 22, 2011

Um conto de natal – Parte Final


O duende jogou-se aos pés do Papai Noel. As crianças, horrorizadas, foram esconder-se atrás dos seus pais. Os seguranças pararam a alguns metros de distância, como que para observar a conversa que aconteceria dali em diante. Apesar da confusão de todos, o bom velhinho continuava calmo e sereno.

– Papai Noel – disse o duende –, eu não posso acreditar que encontrei o senhor. Sou o único que restou de todos nós. Não sei mais dos outros. Agora estou feliz porque o senhor vai cuidar de seu duende-mestre, do supervisor da sua antiga fábrica de brinquedos.

– Afaste-se, Dimas. – disse o velhinho, calmamente – Nossa fábrica faliu, estou fazendo esses bicos para ver se pelo menos consigo tirar meu nome do SPC.

– Mas, Pa..Papai Noel... – o duende parecia horrorizado ante a frieza de seu antigo mestre. – Eu avisei ao senhor para que não mudássemos nossa moeda, que transferir-se para o Brasil não seria uma boa idéia, faria mal para as renas, mas o senhor insistiu em não manter nossas transações em ouro e ainda por cima quis comprar um chalé na Serra da Mantiqueira...

– Eu sei, Dimas, eu sei – retorquiu o velhinho, com um sorriso entre a bondade e a tristeza. – Estou pagando caro por minhas ideias. Nossos investidores quebraram. O Banco do Pólo Norte pediu concordata e conflitos mundiais me encheram de temor. Pensei que seria um bom negócio vir para cá. E onde estão os outros?

– Acabaram-se – o duende baixou os olhos, com um olhar triste –, todos viraram gesso ou pedra. Eu acho que Kalil está entre aqueles enfeites ali.

E apontou para os falsos duendes do Shopping. Pelo visto um deles não fora falso um dia. Eu permaneci calado. É, parece que a crise atingiu até mesmo o Papai Noel! Pensei que o bom velhinho, um dos símbolos do Capitalismo, seria o único imune a suas adversidades. Os dois continuaram sua conversa. Noel mantinha uma expressão cada vez mais fria e severa. O duende, por sua vez, curvava-se cada vez mais.

– Papai, por favor, me aceite a seu serviço. Eu posso ser seu assistente, como antes!

– Impossível, caro Dimas. Eu só posso pagar duas assistentes e – Noel apontou as moças que o acompanhavam –, como vê, não há como eu deixar uma dessas duas lindas jovens sem amparo financeiro, em troca de um molenga como você!

– Mas, mas...

– Chega de “mas”, Dimas! – a voz do velhinho foi enérgica, fazendo o duende encolher-se. – Não quero ouvir mais suas lamúrias. Se quiser, torne-se gesso de uma vez e faça companhia para Kalil. Talvez o Shopping deixe você aí junto com os outros enfeites e, no final da temporada, encontre um lugar quente e seco para te guardar até o próximo natal. Essa é minha única oferta!

Dimas, entristecido, baixou os olhos. Fora vencido, não havia para quem mais recorrer. Eu olhava com compaixão para o pequenino duende. Pensei até em convidá-lo para trabalhar para mim, como faxineiro talvez. Uma criaturinha daquela deveria comer tão pouco! Mas ter um duende em casa talvez não seria lá uma coisa muito comum de se ver. Eu seria alvo de curiosos, telejornais, mídia. Eu não queria publicidade, queria só um conto de natal. Enquanto eu ponderava sobre as vantagens e desvantagens de se ter um duende em casa, Dimas foi lentamente se transformando. Aos poucos tornava-se uma figura mais fictícia do que real, feita apenas de gesso e tinta. O duende agora não passava de uma estátua velha e mal pintada.

Esfreguei bem os olhos, como se estivesse saindo de um transe. Olhei para aquela figurinha triste, enquanto, para minha admiração, as pessoas voltavam às suas preocupações normais. Papai Noel já voltara a atender as crianças com o sorriso mais bonachão do mundo, enquanto os pais riam e conversavam uns com os outros, esperando na fila a vez de seus pequeninos. Somente eu estava maravilhado. Somente eu me preocupava com o duende. Deixei o Shopping com pressa, ouvindo uma música fúnebre, saindo de não sei que lugar, sobrepondo sorrateiramente a música natalina que enchia todo o ambiente.

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Um conto de natal – Parte I


Eu caminhava pelas movimentadas ruas do centro, tentando inutilmente proteger-me do frio com a gola da minha jaqueta. Sim, este é um conto de natal, e todo conto de natal tem que ser aclimatado em uma baixa temperatura, se possível com neve e pessoas taciturnas, cobertas de casacos. Mas estamos em um natal dos trópicos e, por isso, não haverá neve e será verão. Providencialmente, uma frente fria chegou. Motivo do frio que veio a calhar perfeitamente em nosso conto.

Estou andando, sim, tentando não esbarrar com nenhum dos frenéticos cidadãos que precisam fazer suas compras de véspera de natal. Milhares de pessoas acotovelam-se na calçada, em busca de tentadoras ofertas que façam seu presente valer até o último centavo. Eu, porém, não compartilho desse frenesi. Ando à revelia, estou buscando uma cena que sirva de inspiração para meu conto. Infelizmente, apesar do frio, meu natal está pobremente provido de elementos inspiradores. Não existem papais noéis balançando sininhos e pedindo esmolas. Isso é coisa de filme americano. E na verdade quase não vejo Papai Noel algum. Eles estão todos confinados aos Shopping Centers.

Uma idéia atravessa minha mente. É isso! Talvez em um Shopping, devidamente ambientado de acordo com o espírito do natal, eu possa encontrar a inspiração certa para um lindo conto. Sigo quase correndo para o Shopping. Estou com pressa, assim como todos os compulsivos compradores, mas não quero comprar nenhum presente. Quero na verdade criar um conto, presentear o mundo com uma história comovente, talvez até resgatar minha alma.

Entrei pelos altos portões de vidro e senti uma lufada do ar condicionado, mais fria do que lá fora. O caloroso espírito do natal evidentemente já tomava conta dos corredores do Shopping, abarrotado de pessoas que só paravam poucos segundos diante das vitrines para examinar quase mecanicamente os produtos exibidos. Fiquei observando esse bando de autômatos, enquanto andava, calmamente, pelo largo corredor, já assimilando a magia que enchia os enfeites de natal. Tudo é paz, tudo amor. Uma música natalina quase não conseguia superar o barulho de vozes e passos apressados. Segui pelo corredor até chegar ao pátio central, onde uma imensa árvore de natal fora armada.

Meus olhos pararam diante dos enfeites. O trenó, as renas, os duendes, todos inanimados. Somente o Papai Noel esbanjava vida, cobrando módicos valores aos afortunados pais que quisessem satisfazer a vontade de seus filhos de tirar uma foto sentados no colo do bom velhinho. Enquanto eu divagava diante da cena das crianças quase se esmurrando para ter a primazia junto ao Papai Noel, um tumulto começava a surgir alguns metros atrás de mim.

Antes que eu pudesse me virar para observar do que se tratava, o causador da bagunça já passava por mim e andava apressado na direção do trono do velhinho Noel. Assustei-me com a figura. Parecia uma criança, à primeira vista, devido à baixa estatura. Mas, gastando um pouco mais de atenção no exame, qualquer um veria que aquela pessoa não seria uma criança de fato. Seus cabelos eram grisalhos e lisos, embora grossos e cobertos por um gorro verde. Tinha-os na frente aparados rente aos olhos e, atrás, na altura na nuca. Um par de orelhas pontudas despontava além do gorro, insinuando que aquela pessoa não era um ser humano. Seus olhos eram astutos e confiantes, embora estivessem um pouco tristonhos, adornados por sobrancelhas expressivas, também grisalhas. Um bigode espesso cobria o lábio superior, dando à criaturinha um certo ar de autoridade. Sua roupa era toda verde, guarnecida de guizos prateados.

A princípio, quis negar o que meus olhos denunciavam e imaginei que poderia ser um anão fantasiado, talvez um mendigo que conseguira driblar os seguranças, que seguiam atrás dele.

De fato, sua roupa não estava lá um primor. Tinha vários remendos e alguns guizos faltavam, enquanto outros estavam manchados, escurecidos pela ferrugem. Aquelas orelhas não pareciam ser falsas, é verdade, mas existem hoje fantasias que simulam totalmente um personagem natalino. E esse sujeito era idêntico às estátuas de duendes que acompanhavam o trenó e as renas de mentira que enfeitavam a árvore de natal do Shopping.


sábado, dezembro 03, 2011

A Sombra do Vento - A sombra do livro



Quando um livro deixa de ser mero objeto? Na resenha passada, falei sobre esse poder que algumas obras literárias (se não todas) sobre nossas almas e que nunca somos os mesmos após a leitura de um livro.

Nem sempre somos fisgados ou cativados por um texto, por mais sedutor que ele seja. Pode acontecer, no entanto, que sejamos seduzidos sem nem sabermos. Torcemos o nariz para o livro durante toda a leitura para, ao fecharmos as páginas, descobrirmos que a história não será esquecida, que fará parte de nós, que a narrativa irá reverberar em nós, durante nossos silêncios, acompanhando nossa jornada na vida como uma sombra.

Foi um pouco do que aconteceu quando terminei a leitura de A Sombra do Vento. Uma leitura controversa, confesso. Isso porque o livro, por mais bem escrito (as imagens literárias são lindas), ainda não havia cativado este leitor aqui. Continuei resistente até próximo ao final, mais especificamente ao fim de uma parte que se constitui o depoimento de uma das personagens mais importantes da trama. Descobri que estava amando a história.

A Sombra do Vento, obra de Carlos Ruiz Zafón, tem início quando Daniel, protagonista e narrador, desperta em sua cama desesperado, ao descobrir que não se lembra do rosto de sua mãe falecida. Daniel tem então dez anos. Seu pai, um homem sensato, sábio e sobretudo culto, resolve partilhar com o garoto um importante segredo: O Cemitério dos Livros Esquecidos. Nessa mistura mágica de biblioteca e necrópole, o menino encontra um livro que irá mudar para sempre sua vida: A Sombra do Vento, escrito pelo obscuro Julián Carax.

O livro deixa o garoto tão comovido que ele passa a ser admirador de Carax. Infelizmente, não há muita informação sobre esse homem e os anos passam sem que Daniel saiba muito mais. Aos dezessete, porém, uma série de acontecimentos, dentre eles uma forte decepção amorosa, lançam Daniel em uma cruzada arqueológica cujo objetivo é desenterrar as obras e o passado de Julián Carax. Cruzada que se revelará cada vez mais perigosa, à medida que diversos personagens vão se revelando.

Durante a leitura, muitas vezes me perguntei sobre o sentido do título. Afinal, o vento não teria sombra. Quem leu de certa forma sabe a resposta. Apesar da beleza das últimas palavras do romance, pensei em uma gama mais profunda de significados. Na interpretação, damos muito valor ao que foi dito, mas existe também o não dito. Como Clarice Lispector bem disse, as palavras não existem para que as entrelinhas sejam estragadas. Elas servem para realçá-las.

Sendo assim, quando Zafón batiza seu romance com esse título, cria uma bela imagem poética, mas também fala sobre o valor da sombra na trama. Afinal, Carax é um personagem obscuro. Além de ter sido um jovem sombrio, o personagem também é quase desconhecido, quase vivendo na sombra. Se a razão é a luz, a loucura seria a sombra. E não podemos negar que um dos temas mais fortes presentes neste romance é a loucura.

Outro ponto que se revela como possibilidade é a relação entre obra e autor. Ao lermos um livro, pouco sabemos sobre o seu criador. Afinal, quem é esta pessoa que ficou horas a fio imaginando personagens e dando-lhes forma através de linhas e linhas de texto? O que levou essa pessoa a escrever? Existe algum sentido, alguma mensagem que ele desejava transmitir? Ou ele escreveu por puro prazer? Nem todo mundo se faz perguntas desse tipo, mas não podemos negar que as respostas nem sempre estão lá. Assim como aconteceu com Daniel, essas respostas podem estar nas sombras.

Sendo assim, de uma maneira bem ousada, divago até chegar à conclusão de que o livro seria o Vento e o autor sua Sombra. Ainda que invisível, o vento tem uma força incrível. Pode tanto dar forma quanto destruir. O vento é vida e tempo, pois é movimento em excelência. Movimento sem um objeto físico, sem um corpo. O vento muda o rumo dos barcos a vela no mar, assim como um livro mudou a vida de Daniel. Já a sombra é a pergunta que está além do vento. O que o impulsiona? De onde vem? Para onde vai?

É quase impossível imaginar os contornos da sombra de algo desprovido de forma. Eu disse quase. Esse é o poder das palavras e, a um nível maior, da Literatura. Poder de dar vida a conceitos e imagens que antes julgávamos impossíveis. O poder de dar forma ao mundo, de mostrar que a vida é mais do que parece.

Assim, Carlos Ruiz Zafón, em seu A Sombra do Vento, dá forma a ideias controversas. Algumas quase terríveis, outras sublimes de tão belas. Se você quiser se enveredar por essas ideias, bem-vindo. Se não, pode também se encantar com a glamourosa Barcelona dos anos 1950, sempre bela sob a chuva. Pode testemunhar a beleza do amor adolescente. Tenho quase certeza de que, como eu, você sentirá que a viagem valeu à pena.

Ficha Técnica:
Título: A Sombra do Vento
Autor: Carlos Ruiz Zafón
Editora: Suma de Letras
ISBN: 9788560280094
Ano: 2007
Páginas: 399

Tradutor: Márcia Ribas


Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/103

quarta-feira, novembro 30, 2011

A estrada, a casa e seus sabores

27/11/2011 - 15h30. No carro, a caminho de Joaíma.

As montanhas verdes nos circundam. O gado salpica os cumes mais próximos. Montes abaulados e convidativos. As curvas sinuosas parecem acentuar nossa velocidade, que nem é tanta: 80 km/h.

Pouco antes dessa corriqueira viagem: Um almoço farto, caloroso e aconchegante foi o prenúncio de um cochilo na penumbra do quarto emprestado. Minutos de silêncio se desdobraram em horas de sonho. Horas apenas em sonho. O retorno à realidade me ocorreu pelo olfato: cheiro de café novo. Na cozinha. Parecia que ainda sonhava, enquanto percorria quase cambaleante o caminho do quarto até a cozinha. O café forte envolveu-me como um abraço amoroso. Voltei ao quarto, completo por um instante, por um instante sábio. Já imagino que ser feliz é isto.

Dedicado aos meus: Brenda Linda e Fernando José.

segunda-feira, novembro 28, 2011

A Cidade Suspensa – Parte Final


Kain chegou ao fim de sua jornada. Auxiliado por asas vermelhas e pelo amor que venceu até as marcas mais profundas em um coração, o viajante está para ficar cara a cara com o Rei da Cidade Suspensa...

Com um estrondo, os portões do gabinete real foram escancarados. Kain parou por alguns instantes, procurando examinar o interior do recinto. Parecia a entrada de uma tumba há muito fechada. Tudo cheirava a podridão sepulcral. Kain entendeu que era um feitiço. Mas seria uma armadilha ou um procedimento padrão de segurança? Não importava. Deveria apressar-se. O viajante penetrou na escuridão do gabinete com passos firmes, porém cautelosos. Um rugido súbito pôs Kain em prontidão, mas não o suficiente para evitar que vários tentáculos o agarrassem firmemente.

"Então o insolente irmão por fim retorna..." bradou alguém na escuridão. "Não ponderei que seria tão atrevido e temerário. No entanto apreciei imensamente quando soube da sua jornada em busca do seu coração."

Kain nada respondeu. Erguia barreiras contra os ataques do inimigo, ao mesmo tempo que preparava feitiços de reação. Mas sabia que sua derrota era praticamente certa. De fato, o Rei da Cidade Suspensa era o monstro que ele imaginava. Da escuridão, surgiu o corpo que sustentava os tentáculos. Era um homem enorme, talvez tivesse uns três metros de altura, e trajava um casaco comprido, de onde saíam os asquerosos tentáculos que prendiam o viajante. A coroa era enorme e bizarra, como os galhos de uma árvore seca, além de também ser uma máscara que ocultava o rosto do monarca.

"O ciclo está agora completo. Graças a ti, tornei-me rei deste lugar. Graças a mim, foste privado de teu coração. Percebo em teu rosto confusão; pelo visto, és muito menos de que já foste há milênios atrás."

"Quem... é você... afinal?" perguntou Kain, cada vez mais fraco por causa da força que os tentáculos faziam ao segurá-lo.

"Eu? Sou o Exemplo, o Ideal. Sou a quimera que todos perseguem e almejam alcançar, a Perfeição. Sou o Humanismo perdido pela própria humanidade. Eu, caro irmão, sou Abel."

Nesse momento, um turbilhão de dolorosas imagens atravessou a mente de Kain, imagens de culpa e confusão. Viu as lembranças do Rei da Cidade, um jovem pastor de ovelhas, vítima do assassinato motivado pela inveja. O assassino, sangue do próprio sangue, condenado a viver sem identidade e sem sentimentos, sendo obrigado a trabalhar como um Vazio, tendo seu corpo preenchido por memórias alheias e o rosto desfigurado. Enquanto as lembranças de Kain e Abel se misturavam, o viajante viu pelas memórias do Rei que o Vazio enviado para caçar Kain já havia sido informado e aproximava-se do Torreão Real.

Mas subitamente a torrente de pensamentos que invadia a mente de Kain cessou, enquanto a força dos tentáculos ia lentamente diminuindo. Kain recobrou o controle de seu corpo e viu nisso a oportunidade para um contra-ataque. Ergueu chamas ao seu redor, para lançá-las contra seu inimigo, mas parou por alguns instantes. O rei parecia temeroso por causa de alguém que acabava de entrar no recinto.

"Você..." murmurou Abel. "Por que está aqui?"  

Kain, já livre dos tentáculos, virou-se e viu uma jovem pálida, de cabelos loiros e olhos azuis, tristonhos. O viajante não pôde conter sua surpresa ao ver Marília surgir vacilante do mesmo portão que Kain surgira. Aquela era a chance, talvez a única, para um contra-ataque, mas Marília adiantou-se, ficando entre o Rei e o viajante. Se atacasse agora, Kain com certeza atingiria também a filha do Bibliotecário.

"Marília..." sussurou o Rei, "... como alcançou este lugar?"

"Recebi a ajuda da Aurora e suas asas avermelhadas" respondeu Marília, de forma a deixar claro a Kain que a jovem fora ajudada por Scarlate. "E estou aqui para acabar com esse teatro infame."

"Insolente!" rugiu Abel, ameaçadoramente. Buscava recobrar sua fala pomposa. "Não admito tal comportamento em minha presença. Se não deixares este recinto agora, sentirás a minha ira!"

Mas Marília não pareceu importar-se. Sorriu e, nesse momento, murmurou:

"Então invoquemos todos os personagens desta peça. Agora."

Subitamente, as paredes se alongaram e em cada canto do recinto surgiram o Ambulante Chinês, Salomão, o Bibliotecário, a Cortesã e o Vazio. Todos estavam lá e, ao mesmo tempo não estavam. Eram miragens e não eram.

Da porta surgiu Scarlate, com suas asas vermelhas ainda à mostra. Sua miragem permanecia em um canto, pois neste ato final ela era algo além da Cortesã.

Kain sentiu o terror encher seu peito, ao ver que a peça iria por fim terminar e ele veria seu fim sem ao menos recuperar seu coração. Mas Marília aproximou-se e, ainda sorrindo, tocou o rosto do viajante.

"Ainda há um pedaço do seu coração aqui dentro. Um pedacinho que o Demônio do Gelo e do Fogo não conseguiu arrancar. Esse pedaço vai te ajudar a encontrar o caminho de casa."

Marília então virou-se para o rei e bradou:

"O que sustenta esta cidade também é sua maior fraqueza. Ela sempre precisou de Vazios e Exemplos. Você, meu querido, meu jovem pastor, foi apenas mais um escolhido para ocupar o papel de Rei, assim como Kim foi tornado em Vazio. Você crê, meu querido, que sempre haverá um Rei na Cidade Suspensa e este sempre nascerá pelas mãos sanguinárias de um Vazio. Mas eu digo basta!"

Nesse momento, a filha do Bibliotecário enterrou a mão no peito e arrancou do mesmo o próprio coração. Parecia uma brasa azulada, que brilhava com intensidade. Marília estendeu a mão e andou com passos firmes em direção ao Rei. 

Não há magia mais poderosa que um coração puro entregue em benefício de outra pessoa. Ainda que Abel tentasse repelir a moça com seus tentáculos, os mesmos eram destruídos logo que se aproximavam. O coração brilhante de Marília tocou o indefeso monarca que explodiu em luz, junto com a jovem. O Torreão Real começou a balançar, instável. Kain apenas observava, surpreso e confuso. Tudo brilhava e, em meio à luz, Kain identificou as silhuetas de Marília e de um jovem e belo rapaz se abraçando como se há muito tempo não se vissem. O casal desapareceu em uma explosão de luz.

A escuridão subitamente envolveu o recinto. Kain sentiu mais uma presença naquela sala, além de Scarlate. As sombras que antes tomavam forma dos outros personagens se dissiparam, ficando apenas o Ambulante Chinês, que se tornava cada vez mais nítido. Seu olhar cada vez mais feroz.

Em segundos, as roupagens antes simples do oriental se tornaram vestes pomposas. Seu cabelo estava arranjado em um coque elaborado sobre sua cabeça, onde uma singela coroa dourada se sustinha. Sua face assumiu um ar arrogante.

“Agora este é meu momento” bradou ele. “Ajoelhem-se perante seu Imperador.”

Scarlate ergueu suas asas de forma protetora, mas antes de qualquer iniciativa, ela foi lançada contra a parede, que engoliu metade do seu corpo. A moça estava presa.

“Quieta, rameira” rosnou o Imperador. “Uma Nova Ordem nasceu. Graças a vocês dois, casalzinho patético. Obrigado.”

A risada do Imperador feriu o peito vazio de Kain, que até o momento estava paralisado de terror. O Imperador ergueu a palma da mão direita e exibiu uma chama lúgubre e avermelhada, que bruxuleava.

“Reconhece este coração?” perguntou. “É aquele mesmo que você vendeu. Assim é você. Uma chama moribunda. Alguém que negocia qualquer coisa. Você é tão inútil quanto a rameira. É um vaso quebrado.”

Num grito de ódio, Kain reuniu todo o seu poder. As furiosas chamas antes destinadas a Abel foram lançadas contra o Imperador Chinês, que apenas ergueu a palma da mão esquerda. Nela estava o botão que o viajante negociara. Esse mesmo botão, ao ser atingido pelas chamas, fez com que Kain fosse envolto pelo seu próprio feitiço. O que antes era ódio tornou-se dor, pura e simplesmente. 

O Imperador Chinês, ainda resmungando sobre Kain ser um vaso quebrado, fez um gesto cabalístico. A alma artificial de Kain foi arrancada, enquanto o que restava do viajante era consumido pelas suas próprias chamas. Num último resquício de consciência, Kain constatou que sempre desconfiara. Aquele que antes havia sido o Ambulante Chinês tivera tempo para fazer seus contatos, seus negócios. Bastou que o poder na Cidade Suspensa fosse desestabilizado para que o antigo mascate acionasse suas engrenagens, cobrasse seus favores por meio de feitiços e assumisse o posto máximo. Kain fora apenas a última peça naquele mecanismo, usado para depois ser jogado fora. Mesmo assim, tinha certeza, faria tudo de novo.

O sol se ergueu sobre o horizonte, iluminando a Cidade Suspensa, eterna e sólida sobre as nuvens.

FIM

sexta-feira, novembro 25, 2011

Terra sonâmbula: vidas em trânsito


Uma das coisas que mais aprecio nos livros e na leitura é a possibilidade de trocarmos impressões, compartilharmos nossa vivência literária. Ler é um ato filosófico e transformador: nunca mais somos os mesmos ao final de uma leitura. A intensidade dessa mudança depende do quanto a leitura foi relevante para nós, do quanto essas palavras tiveram peso em nossas almas.

Ouso afirmar inclusive que o livro também não é o mesmo quando chegamos ao seu fim. Antes o que era um objeto se torna algo que vai além de seus limites físicos. Uma obra espiritual. E por isso mesmo, o livro passa a não pertencer mais apenas ao seu autor. Nós, como leitores fiéis, nos apropriamos da narrativa, dessas vidas secretas, e as tornamos parte de nós. O livro e todo o universo que ele encerra passa a nos pertencer.

E assim como o livro nos transformou (e transformamos o livro), queremos que outros passem também por esse processo. Queremos que essa transformação secreta e íntima passe a tocar outros universos, outras pessoas. Por isso, quando sentimos empatia com algum leitor, compartilhamos leituras, compartilhamos vida.

A leitura é um fenômeno que transcende o espaço e o tempo. É um ato íntimo, uma jornada em que o caminho percorrido é composto de memórias alheias mescladas às próprias memórias do leitor, pois ele precisa reconhecer os signos, as figuras de linguagem, as referências espaciais.

Não é preciso ter tudo isso em mente, mesmo sabendo que, de certa forma, é isso que acontece em Terra sonâmbula. Eu pensava nisso tudo depois de passear pelo blog da Fefa (Apaixonada por papel). Ela citou um autor que ainda não havia lido. Depois de algumas conversas, perguntou se eu teria algum livro dele pra indicar. Por isso decidi apresentar aqui o livro que me fez amar cada linha traçada por esse moçambicano de quase 60 anos, registrado como António Emílio Leite Couto, mas conhecido como Mia Couto, por causa de sua paixão por gatos.

Ainda jovem, Mia escrevia e publicava poemas. Depois passou para os contos e o romance foi seu gênero literário tardio, de certa forma refletindo sua maturidade. Em Terra sonâmbula, seu primeiro romance, publicado em 1992, Mia Couto narra o encontro de dois mundos, ambos órfãos. O menino Muidinga, fugitivo de um campo de concentração em plena guerra civil, encontra em um ônibus queimado uma mala contendo cadernos escritos por um tal de Kindzu. Nesses cadernos um pouco do passado de Moçambique se revela, enquanto o autor do relato desenrola seu périplo em busca de respostas para seu destino, para o amor e para a vida.

Kindzu e Muidinga não se conhecem de fato, mas através dos cadernos, escritos numa linguagem quase mitológica, o menino passa pelo processo que descrevi anteriormente, essa transformação e apropriação que acontece quando um texto literário nos invade com toda a força e vitalidade que carrega. Assim, os dois, que antes eram estranhos, se tornam quase irmãos.

Muidinga também é auxiliado pelo velho Tuahir. Ainda que não sejam parentes, Tuahir cuida do menino como um pai. O velho não sabe ler, mas conta com a habilidade de Muidinga para também participar da história, ouvir a leitura em voz alta e fazer parte desse mundo mágico que é reconstruído através dos olhos e da voz do menino. 

Nessa jornada, a própria estrada onde o ônibus queimado repousa começa a se transformar, contaminada pela magia das palavras que, antes mortas no papel, são ressuscitadas pela voz de Muidinga. Muitos são os desafios e aventuras. Muitas são as perguntas. As respostas ficam a cargo do leitor.

Terra sonâmbula é mais do que um romance. É um tratado a favor da vida e da esperança, um mágico guia de viagem que fala do poder criador das palavras.

Deixo por fim um pequenino trecho que considero carregar um pouco da alma do romance, pois traduz o próprio sentido do título. É uma fala de Kindzu:

"Talvez, quem sabe, cumprisse o que sempre fora: sonhador de lembranças, inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera."

Ficha técnica
Título: Terra sonâmbula
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 9788535910445
Ano da edição: 2007
Páginas: 208


Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/2940

quarta-feira, novembro 23, 2011

Memórias de uma existência ignorada

Deitado em minha cama, escuto o som da descarga do apartamento de cima. A água escorrendo pela tubulação faz aquele som tão característico que não dá pra imaginar a sujeira que carrega.

Esse som também sugere a água que bate no tombadilho de um barco e escorre pelo convés, por entre as frestas das tábuas, algumas vezes chegando até os porões, onde repousam acorrentados os remadores. O som é raro, mas carrega em si uma cadência própria, como uma música secreta, revelada unicamente a ouvidos atentos, eleitos. Sim, ouço mais uma vez o escorrer da água e penso no mar.

Não, a água não pode vir do mar, pois não sinto o movimento das ondas. Talvez eu esteja há tantos dias no mar que meu corpo se acostumou ao seu ritmo, sua pulsação. A privação de sol faz com que eu perca a noção de tempo. Há tantos anos aguardo neste porão, entre os turnos de remadas e repousos que se alternam. Não conto mais o tempo que aguardo para ver novamente o sol; para ir ao convés, recostar meus braços junto ao tombadilho e confirmar se as cores do mundo se desbotaram, se o céu e o mar são agora uma rasura do que já foram.

Tantas vezes pedi ao contra-mestre que me deixasse subir, nem que fosse por alguns instantes, mas a única prova da existência do mundo externo é esse som raro e irregular de água escorrendo.

Em breve virão me buscar. Estou há tempo demais em meu catre, ferrado de piolhos e sentindo todos os meus ossos desconjuntados. Ontem foi um dia perverso, pois remamos sob ritmo forçado por quase 22 horas sem descanso. Nenhum dos oficiais disse o motivo, mas corre um boato de que estivemos perseguindo um navio pirata que não quis dar batalha ao Capitão. Isso é o que dizem. Poderíamos estar fugindo de piratas, tanto faz. Acorrentado a este casco de madeira corroída, pouco me resta a decidir sobre meu destino.

Ouço ao longe os passos graves do capataz, subordinado ao contra-mestre. Vem acordar-nos. Os outros estão cansados a ponto de parecerem mortos, de tão silenciosos e imóveis. Não os culpo; somos qual mortos, condenados a uma existência ignorada. Aí vem ele; finjo dormir. Segura-me a camisa e sinto seu brusco puxão.

Caio da cama, assustado, ainda sem reconhecer o quarto na penumbra. Estou em meu familiar apartamento. Confiro as horas, num misto de estranhamento e urgência. Constato que preciso correr, se não quiser perder o horário de trabalho. Esfrego os olhos e caminho para o banheiro, sentindo na boca um curioso gosto de maresia.


segunda-feira, novembro 21, 2011

A Cidade Suspensa – Parte XIV

É confirmada a identidade da pessoa que mais tem ajudado Kain em sua jornada em meio aos edifícios labirínticos da Cidade Suspensa. Mais aspectos da Verdade estão prestes a ser revelados...

Kain e sua inusitada companheira caminharam apressadamente por caminhos cada vez mais escuros e úmidos. Segundo Scarlate, o aqueduto levava diretamente a um torreão e este para uma escada secreta que dava diretamente na câmara do Rei da Cidade Suspensa. Não havia garantias de que a entrada não estaria vigiada, mas a Cortesã contava com o fato de que quase ninguém conhecia essa passagem. 

"Ao que parece," comentou a jovem, "nem o Rei sabe que essa passagem existe."

"Isso é bom demais para ser verdade, Sofia" ofegou Kain. "Ainda me pergunto se isso tudo não é uma armadilha."

"Você me ofende com essas palavras, Kim. Mas me ofende mais ainda ao me chamar por esse nome. Eu deixei de ser Sofia há muito tempo. Só voltarei a atender por esse nome quando você tiver de volta seu coração."

Kain fez um muxoxo, enquanto acompanhava Scarlate, que havia transformado o passo rápido em ligeira corrida. Não confiava na Cortesã, nem em seu agente, o Ambulante Chinês. Ao que parecia, o oriental havia ajudado a moça por todo o tempo que ela passara lá, inclusive garantindo seu ofício na taberna. Com as décadas se tornando séculos, a antiga dona do lugar cedeu o direito de propriedade à cortesã mais bela e talentosa, a moça cujo nome antes fora Sofia e que agora chamava-se Scarlate. 

Toda essa história fora contada às pressas para o viajante, que não conseguia abrir mão de sua desconfiança. Era fato de que nomes e rostos misteriosamente surgiam como sendo familiares. Havia alguém, uma imagem no passado que insistia em pregar peças na mente do viajante, mas ele tentava resistir. Precisava concentrar-se, cumprir sua ambição, para depois partir para sempre daquele lugar. Sem ter seu coração de volta, seria sempre um Vazio, uma sombra, um escravo sem identidade, fugindo de senhores poderosos, que brincavam com a vida de homens e outras criaturas.

No fim do aqueduto, Scarlate levou Kain por uma porta oculta na escuridão. A porta era de fato imperceptível, seu contorno só tornou-se visível quando a cortesã tocou algumas pedras na seqüência do que parecia ser uma senha. Logo que a passagem abriu, os dois entraram com rapidez, chegando a uma escadaria íngreme e perigosa, que subia pela parede externa do torreão central. 

Os dois subiram em silêncio. Nada se ouvia, a não ser o som de suas respirações ofegantes. Scarlate era a que mais ofegava, segurando a saia para que não tropeçasse em sua barra. Kain olhava por sobre os ombros da cortesã e lembrava do coração marcado de mordidas. Era delicioso e ao mesmo tempo completamente asqueroso. Algo então chamou sua atenção. Já estavam a uma altura considerável. O Torreão Real parecia ser mais alto até mesmo que a Biblioteca. Assim, o viajante pôde ter uma visão panorâmica da cidade, de seus titânicos edifícios e formidáveis fornalhas. Era imensa, vasta, como um Mal impossível de se extinguir. A visão foi tão perturbadora que Kain estacou entre os degraus, sentindo vertigem. Só não caiu porque foi agarrado por Scarlate.

"É incrível, não é mesmo?" comentou a cortesã, em um tom de malicioso desinteresse. "Essa é a Cidade. A Cidade dos Sonhos que todos almejam alcançar. Dizem que todos aqueles que acabam nos abismos mais profundos almejam um dia morar aqui. Neste lugar, uma pessoa pode negociar sua alma pelo mundo inteiro ou o mundo inteiro por uma alma nova.

Kain permaneceu calado. De qualquer forma, tudo o levava a crer que sua existência estava intimamente ligada àquela cidade. Talvez ele fosse um completo faz-de-conta. Talvez apenas reminiscências do corpo desse "Kim" fizessem parte do viajante e que a busca de um coração fosse algo completamente impossível e sem sentido. Uma alma artificial. Era bem provável que ele fosse apenas isso, um retalho de almas alheias. Mas Scarlate dizia algo importante e Kain resolveu prestar atenção.

"Está vendo aquelas enormes fornalhas? Já devem ter te falado que elas movimentam a Cidade e aquecem as caldeiras. Sabe o que mantém aquele fogo vivo? A magia dos corações negociados nesta cidade. Os corações vendidos por aqueles que querem trocar de alma e não têm posses para tanto. Esses corações são penhorados e, em seguida, transportados ao Banco, que os resgata. Em seguida, o Banco os vende ao Senhor das Fornalhas, que os usa para nunca deixar o fogo morrer. Por isso, acho que é quase impossível resgatar seu coração sem luta. O Rei da Cidade será nosso inimigo."

"Não importa" respondeu Kain, com secura. "Não cheguei tão longe para desistir. Se precisar medir forças com o Rei, que assim seja."

Com um sorriso enigmático, Scarlate agarrou a mão esquerda de Kain e puxou-o escadaria acima. Em um segundo, o viajante olhou para baixo e viu que seus pés estavam suspensos e os degraus pairavam alguns metros abaixo. Aterrado, ele viu que Scarlate tinha agora um par de asas de um vermelho vivo, intenso. Instantes depois eles já estavam no alto do torreão. Scarlate pousou graciosamente em uma sacada, enquanto sorria. Estavam diante de um enorme portão que dava para o gabinete particular real.

"Esta é tua última batalha, meu querido" disse ela, com um sorriso doce. "Não se esqueça, alcance seu objetivo e volte para mim."

Dizendo isso, a Cortesã beijou suavemente os lábios do viajante e, antes que o rapaz desse conta, ela já havia alçado voo, tomando distância entre as nuvens de fuligem que saíam das chaminés. Kain respirou fundo. Tudo aquilo poderia ser um embuste, mas não havia mais tempo para outras medidas. A noite findava. Lá embaixo, em algum lugar, o Vazio o aguardava. Se havia alguma chance de reaver seu coração, havia chegado a hora. Sem hesitar, Kain marchou corajosamente rumo ao portão e o abriu. Sua jornada havia chegado ao fim.

sexta-feira, novembro 18, 2011

Éden - um mundo de sentidos


Ninguém imagina o que as coisas são apenas como aparentam. Certo, algumas pessoas podem defender o materialismo com unhas e dentes, mas até mesmo estes irão concordar que as coisas que existem vão além de como as vemos, ou interpretamos.

Assim é a obra do quadrinista argentino Kioskerman (http://www.kioskerman.com.ar/). Apropriando-se de elementos comuns às fábulas e aos contos de fadas, ele reconstrói o sonho do paraíso perdido, batizando-o de Éden. Contudo, sua obra ultrapassa as barreiras de conceitos religiosos ou mitológicos. Ele apenas os utiliza como referência, para então dar asas a seus devaneios, mas de forma tão genial que cada devaneio do artista toca o devaneio de seus leitores, tornando sua obra universal.

A nostalgia, o inestimável valor do momento, a família e o amor são alguns dos temas abordados com simplicidade e lirismo. 

Passear por Éden é uma oportunidade de ver-se de outra forma, como uma criatura mágica, habitante de um mundo bucólico e paradisíaco. Éden não é perfeito, mas é um paraíso por dar forma a sonhos e ideais, além de permitir que os fatos comuns do dia-a-dia sejam vistos através de uma perspectiva mágica, transformadora. 

Tive a oportunidade de conhecer Kioskerman no 7º Festival Internacional de Quadrinhos. Apesar da barreira dos idiomas, pudemos bater um papo muito legal. E ainda por cima ganhei uma tirinha feita sob medida! 

Por fim, acredito que nada melhor para falar de Éden que o booktrailer feito pelo próprio autor, abaixo:


Como afirmado no site da editora Zarabatana, que publicou Éden no Brasil, tenho certeza que cada leitor que tiver contato com este livro terá, ao fim de sua leitura, a certeza de ter sido um afortunado viajante no paraíso.

Ficha técnica:
Título: Éden
Autor: Pablo Holmberg (Kioskerman)
Edição: 1
Editora: Zarabatana
ISBN: 9788560090280
Ano: 2010
Páginas: 120
Tradutor: Claudio Roberto Martini


Link para o livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/144905


quarta-feira, novembro 16, 2011

A Cidade Suspensa – Parte XIII


Um misterioso bilhete leva Kain a uma busca noturna e a um confronto maligno. Usando sua experiência, ele escapa, embora sabendo que por pouco não foi derrotado. Agora, o objetivo de sua jornada está para ser revelado...

Kain se esgueirou por um bom tempo pelas ruelas escuras da Cidade Suspensa. Não sabia se havia alcançado sucesso em despistar seu perseguidor, mas nem ao menos queria olhar para trás e conferir. Seu tempo era curto e ele procurava aproveitá-lo da melhor forma possível. 

Logo ele alcançou o local de encontro. Um vulto o aguardava, mas não era o mesmo sinistro inimigo. A silhueta delicada revelava um corpo de mulher. Ao perceber a chegada do viajante, o vulto saiu das sombras, revelando sua identidade. Scarlate, a Cortesã, trazia uma capa escura sobre os ombros, escondendo o corpete fino. Kain fitou-a com seus olhos frios. 

Scarlate ensaiou alguns passos indecisos na direção do forasteiro, que mantinha-se impassível. Ainda vacilante, a Cortesã começou a falar:

"Antes, não tinha certeza que você era meu Kim, mas agora não me restam dúvidas. No começo, não te reconheci, seu rosto não é mais o mesmo. Só que alguma coisa me dizia que eu já te conhecia e essa certeza foi crescendo e hoje é absoluta. Mesmo que não se lembre, você é o meu Kim."

"Moça, você está me confundindo com outro alguém" disse Kain, com frieza. "Nossos nomes podem ser até parecidos, mas eu te afirmo que não sou quem você procura."

Scarlate abaixou a cabeça por um momento, para esconder os olhos tristes. Logo em seguida, porém, ela ergueu-os, desafiadores.

"O que você veio fazer aqui, então? Não foi pra resgatar seu coração que você veio à Cidade Suspensa? Para reaver o coração que você vendeu para o Demônio de Gelo? E eu sei que você viria. Esperei todos esses séculos, aluguei tentas vezes meu coração... Não, nunca o vendi. Resgatei-o várias vezes, tantas quantas foi preciso, só pra ter o momento de te encontrar."

Confuso, Kain pôs as mãos sobre o rosto. Como aquela mulher sabia tanto sobre ele? Mas alguns dados não batiam. Ele vendera seu coração para um demônio, era verdade, mas um demônio de gelo? Estava lembrado de ter negociado com um demônio de fogo. Era certo que parte da sua alma, ou toda ela, era artificial. Ele era igual ao seu perseguidor, um Vazio, um agente a serviço daqueles que comandavam planos superiores e inferiores. Mas então um nome que antes parecia desconhecido brotou de seus lábios:

"Sofia!?"

A cortesã esboçou um sorriso triste diante do perplexo viajante.

"Há muito tempo eu não uso esse nome, mas não nos resta luxo para mais nostalgias. Temos que chegar ao Rei antes que este pesadelo em forma de cidade te expulse daqui."

domingo, novembro 13, 2011

O Retorno da Batalha

Amigos...

Só estou passando por aqui para dizer que não me esqueci de vocês... Estou vivo, sim. Muito cansado, porém. Infelizmente, terei que atrasar um pouco a publicação de A Cidade Suspensa.

O Festival acabou, mas agora temos que desmontar tudo. Ainda tenho dois dias de muita correria. Peço muitas desculpas.

Conto com a paciência de vocês! Abraços!

quarta-feira, novembro 09, 2011

FIQ! Mode On

Amigos, muitos devem estranhar que eu esteja atualizando o blog quase "de modo automático". Peço desculpas. Quase não tenho respondido comentários ou acessado os blogs de meus amigos. O motivo está no link abaixo:

http://www.fiqbh.com.br/

Isso mesmo. Durante estes dias, até o dia 14 de novembro, todos os meus esforços estarão voltados ao 7º Festival Internacional de Quadrinhos. Vou tentar não atrasar A Cidade Suspensa. Acredito, porém, que não haverá resenha de livro na sexta-feira. Afinal, trabalhar em um evento de 8h às 22h durante 5 dias é uma verdadeira maratona!

Abraços e para todos que estiverem em Belo Horizonte, espero vê-los no FIQ!

segunda-feira, novembro 07, 2011

A Cidade Suspensa – Parte XII

Embora considerasse impossível, Kain começa seu trabalho na Biblioteca. Impelido por um misterioso bilhete, o viajante parte rumo à escuridão da noite.


Kain movia-se silenciosamente por um beco escuro, já bem longe da Biblioteca. Pôs a mão direita sobre o peito, lembrando-se da súbita sensação que teve ao ler aquele estranho pedaço de papel. Que sensação fora aquela? Palpitação? Coração agitado? O viajante deu um sorriso de deboche, meio que escarnecendo de si mesmo. “Como se alguém na minha situação tivesse coração.” murmurou. As letras do bilhete marcavam como fogo sua memória, pregando peças em sua mente ao provocar aquela desagradável sensação.

A verdade era que Kain estava encurralado. No bilhete dizia que o Bibliotecário estava sendo pressionado a rejeitar o trabalho do viajante e que a Cidade iria pousar ao raiar da manhã. Kain não tinha muito tempo a perder. O autor do bilhete afirmava conhecer um atalho para o Palácio Real, para dentro da própria câmara do Rei da Cidade. Era a única chance de Kain para conseguir o que procurava.

O viajante seguiu pela estreita viela, perdido em seus pensamentos e desconfianças. E se fosse uma armadilha? E se aqueles que o queriam impedir estivessem prontos para pegá-lo? De qualquer maneira, Kain deveria arriscar e ele sabia que, desde o momento em que pusera os pés na Cidade, sua vida passara a não valer absolutamente nada. Ele já estava arriscando tudo a partir daquele momento.

A atenção de Kain foi atraída para uma figura que estava alguns passos à frente, próxima à saída do beco. Parecia ser aquele mesmo desconhecido que estivera no ponto de embarque do bonde. A excelente memória de Kain nunca esquecia um fato, por mais corriqueiro. O viajante diminuiu o passo, cauteloso. Era uma coincidência grande demais aquela mesma silhueta estar naquele lugar, aguardando. Kain estava bem próximo à saída do beco e ao seu destino, onde era esperado pelo autor do bilhete.

O desconhecido então gemeu. O som penetrou Kain como uma lança de gelo. Parecia o suspiro resignado de alguém que nunca conheceu paz ou alegria. Mas o viajante entendeu imediatamente o que era aquilo. Era um feitiço. Erguendo suas defesas, Kain resistiu ao melancólico e doloroso ataque da criatura que o havia emboscado. Era difícil, pois seu inimigo parecia ser conhecedor de profundas maldições, usando-as de maneiras que ele nunca imaginara. Suas mentes não se chocaram em nenhum momento, mas Kain sentia-se dilacerado pelos gemidos do outro.

A batalha pode ter durado segundos ou séculos, ninguém irá saber, a não ser aqueles dois, que descobriram conhecer muito mais um do outro. O agressor era um Vazio, alguém que fazia o mesmo serviço que Kain fizera durante longos anos. Aquele, porém, era tão ou mais experiente que o viajante, que estava tendo dificuldades em manter o equilíbrio da luta. Lentamente, suas forças eram drenadas, as maldições iam penetrando pouco a pouco suas defesas, petrificando suas juntas, apertando sua garganta, como algo invisível que quisesse sufocá-lo.

Com resignação, Kain deixou o seu sobretudo cair ao chão. Seu corpo então mudou rapidamente de forma, assumindo a estranha consistência de piche, como um ser pseudópode. O oponente fez o mesmo e, por segundos, duas massas disformes lutaram entre si, medindo forças em movimentos espalhafatosos, um tentando esmagar o outro.

Enquanto isso, Kain tomava distância, ofegante. Esperava que seu caçador ficasse distraído com aquela ilusão por tempo suficiente para o viajante escapar. Não podia ficar perdendo tempo enfrentando Vazios. Tinha que chegar ao Palácio Real o mais rápido possível. Enfraquecido pela última batalha, Kain cambaleou até o local onde o autor da carta aguardava, escondido nas sombras de um muro, com o rosto coberto por uma capa. Kain apoiou-se no mesmo muro e olhou, inquiridor, para aquela pessoa, sem reconhecê-la. O desconhecido então lentamente retirou o capuz que lhe cobria a cabeça, revelando sua identidade. O viajante deixou escapar apenas uma palavra:

“Você!...”

sexta-feira, novembro 04, 2011

Sombras de Reis Barbudos - um labirinto de palavras

Neste mundo de mídias de massa, muitas obras acabam assumindo uma roupagem mais "homogênea", visando alcançar o cidadão comum. E dessa forma, os conflitos abordados acabam sendo também os mais banais, de forma a "poupar" o leitor, já tão estressado pela insegurança das notícias econômicas, das catástrofes, da política. Ficamos então, em muitos casos, com um material meio morno, que serve mais para entretenimento. Principalmente quando o livro é dirigido a todas as idades.

Mas de vez em quando somos surpreendidos com trabalhos que, embora despretenciosos, carregam uma mensagem contundente em uma linguagem simples e extremamente acessível. Este é o caso de Sombras de Reis Barbudos, de José J. Veiga. Narrado por uma criança, mas recomendável a pessoas de qualquer idade, o livro conta sobre Lucas, um garoto morador de uma pequena cidade interiorana. Já no início da narrativa, a vida do garoto muda com a chagada do tio Baltazar, o abastado parente que há tempos não aparecia. O fato marcante decorrente da chegada de tio Baltazar é a criação da Companhia, uma fábrica que promete mudar a vida de todos os moradores da pequena cidade.

A princípio, todos estão felizes e satisfeitos com a onda de prosperidade. Mas tio Baltazar é obrigado a afastar-se da Companhia e então o terror começa. Os ameaçadores fiscais são recrutados e enviados para impedir que qualquer pessoa descumpra as regras da Companhia. À medida que o tempo passa, mais regras são criadas, muitas delas tão absurdas como os muros que são gradativamente erguidos, transformando a cidade em um labirinto claustrofóbico. 

A narrativa se desenvolve repleta de lacunas e sugestões, nos moldes de um pesadelo, de forma a deixar sempre um mistério no ar: O que a Companhia realmente faz? O que ela quer de verdade? Mas Lucas, enquanto conta sua história, mostra que já sabe a resposta, e também deixa a entender que ela não pode ser pronunciada.

Embora opressivo e labiríntico, Sombras de Reis Barbudos é uma obra excepcional, com uma escrita leve e muito gostosa, que pode ser lida por qualquer pessoa. É um trabalho genial de alguém que, em plena ditadura, deixou um forte apelo contra os desmandos do Poder.

Confira abaixo um trecho que dita o tom do texto:
Eu estive enganado o tempo todo. Tio Baltazar passava muito bem. A reunião era uma festa para comemorar a torre que ele acabava de construir, obra nunca vista e muito importante encomendada por uma comissão de reis barbudos. Como prêmio tio Baltazar ia ser nomeado rei também, aquela gente toda estava ali para ajudá-lo a experimentar a roupa, a coroa e a barba postiça que ele ia usar enquanto não crescesse a verdadeira.

Tia Dulce passou por mim vestida de rainha e pintando as unhas com esmalte, o cabelo comprido voando para trás e largando um perfume de rainha. Corri atrás dela para falar dos presentes que eu tinha levado, ela desapareceu entre as colunas do corredor comprido e largo, cansei de procurá-la, por onde eu olhava só via chão de mármore e colunas a perder de vista, e lá muito longe a claridade bonita do luar.

Tio Baltazar estava me esperando na torre, queria a minha opinião antes da festa, mas com aquele saco de presentes inúteis nunca que eu chegava a tempo, e ele na certa ia ficar com raiva de mim, cortar relações, me demitir de sobrinho, agora como rei ele tinha poderes. Também que idéia de mamãe me obrigar a carregar aquele saco tão cheio de coisas da horta, batata, quiabo, jiló, mangarito, jacutupé, eu já estava quase achatado debaixo do saco. E que idéia a minha também de sair à rua em dia de festa vestido só com uma camisa curta, e num frio daquele.

Quando tudo parecia perdido alguém me carregou nos braços, me deitou num jirau macio e estendeu um cobertor por cima de mim.


Ficha técnica:

Título: Sombras de Reis Barbudos
Autor: José J. Veiga
Edição: 27

Editora: Bertrand Brasil
ISBN: 9788528603200
Ano: 2008
Páginas: 142




Confira a página do livro no skoob: http://www.skoob.com.br/livro/798

quarta-feira, novembro 02, 2011

Reticências


Nem o futuro nem o presente existem. Nem se pode dizer que os tempos são três: passado, presente e futuro. Talvez fosse melhor dizer que os tempos são: o presente do passado; o presente do presente; o presente do futuro. E estes estão na alma; não os vejo alhures. O presente do passado é a memória, o presente do presente é a percepção, o presente do futuro é a expectativa. Santo Agostinho 


Um dia todos nós vamos nos encontrar. E isso se dará em uma dessas esquinas esquecidas e cinzentas, onde funciona um café que parece que parou no tempo há cinqüenta ou sessenta anos atrás. Iremos entrar, alguns juntos, rindo, tirando os casacos por causa do calor aconchegante de dentro em contraste com o frio intenso do inve(te)rno lá fora. Outros chegarão depois, quando já estiver nevando, mas sobretudo antes de escurecer.

Será inevitável, contudo, que falte alguém. Um que nunca irá aparecer, ainda que o aguardemos. E deixaremos seu lugar vago, na vaga esperança de que a porta se abra, trazendo uma lufada de vento frio e a imagem de uma espera enregelada. Estaremos todos a conversar, como que ignorando a falta tão presente desse amigo. Nossos sorrisos escondendo os olhos tristes, consolando-se por ainda termos uns aos outros. Até mesmo o fantasma, o ausente.

E não faltará literatura. E tabaco. Sim, o capuccino correrá solto junto com a cerveja escura e o vinho quente. Logo todos nós estaremos a cantar as proezas dos poetas já mortos; aventureiros sem ter mais o que desbravar. Nossas gargantas ficarão apertadas, a comoção fará com que as lágrimas se misturem ao conhaque. Mas ainda estaremos vivos. E sóbrios. Não essa sobriedade disfarçada, social, moralizada. Olharemos a vida com a verdadeira consciência, ébrios no físico, mas sãos em natureza. Mesmo aqueles que não beberem serão tomados por essa embriaguez, uma embriaguez literária, onde as palavras enlouquecem junto com o fogo e a noite. Muitos de nós, sem nos conhecermos de fato, iremos nos amar como irmãos; ou como amantes; o que pedir a ocasião. Não haverá misérias que não sejam choradas e memórias que não sejam lembradas. Mesmo as inexistentes serão evocadas e criadas por aqueles que nunca as tiveram. Seremos um só, uma só noite, a perpetuar nossas escuridões nas palavras e nos silêncios de nós mesmos...

Texto dedicado a todos os ausentes, num dia que tanto sentido faz para minha própria existência.

terça-feira, novembro 01, 2011

A Cidade Suspensa - Notícias

Desta vez, resolvi sair um pouco do usual e escrever algo diferente no blog. Como já disse anteriormente, em As muitas razões de ser, eu expliquei um pouco do objetivo destes meus escritos. Ah, não podemos nos esquecer também da descrição no cabeçalho acima, que expressa a alma deste blog.

Bem, aproveitando esse clima dialógico que temos estabelecido aqui, com tantos comentários e respostas, bem como a aceitação de A Cidade Suspensa, pensei então em registrar aqui um pouco do processo criativo e aproveitar para contar algumas novidades.

A primeira é que A Cidade Suspensa está terminando. Sim, faltam 4 postagens para o fim. E isso significa que o episódio anterior marcou a chegada à reta final. 

Outra coisa é que há algum tempo tenho pensado sobre a possibilidade de uma ilustração para A Cidade Suspensa. Assim, pedi ao meu amigo Daniel Werneck que me ajudasse em um desenho que expressasse de certa forma o conceito que esta narrativa encerra. Particularmente, gostei muito do resultado:



É um primeiro teaser. Mas por enquanto, sempre que sair um novo episódio, esta imagem será utilizada como ilustração. 

Aproveitando um comentário presente no episódio atual, como é possível perceber, inseri nessa narrativa uma série de referências, ou homenagens, às histórias que mais me envolveram. Como homenageada principal está a Literatura em sua essência.

A última coisa que gostaria de falar é sobre o resultado da enquete. Um resultado interessante que expressa a visão dos leitores em relação a um dos personagens mais enigmáticos da trama. E sinto tristeza em não aproveitar melhor o Ambulante Chinês.

Bem, minha intenção era registrar algumas ideias sobre A Cidade Suspensa. Espero que vocês me acompanhem mais um pouco nesta travessia, testemunhando a jornada do proscrito Kain rumo ao seu objetivo.

domingo, outubro 30, 2011

A Cidade Suspensa – Parte XI


Embora acreditasse impossível, Kain consegue um trabalho na Biblioteca da Cidade Suspensa. Ele sabe, porém, que o cargo é provisório e que ainda há muito a conquistar...

O tempo era confuso na Cidade Suspensa, mas pelas observações de Kain, fazia dois ou três dias desde que ele fora abrigado na biblioteca. Apesar disso, sua situação ainda era incerta. Sua admissão como intendente não era formal, de modo que logo que a Cidade Suspensa pousasse novamente, ele seria expulso da cidade. Bem, talvez expulso não fosse a palavra mais adequada e sim expelido. O viajante procurava não pensar nisso, lançando-se com afinco ao novo trabalho, procurando aprender e aplicar os conhecimentos que já possuía.

A Biblioteca era fascinante. Uma torre cilíndrica, gigantesca e cada andar era incrivelmente extenso. As escadas que levavam aos andares superiores eram retas e não acompanhavam o formato circular do edifício. Cada andar era composto de um salão de livros, uma sala de leitura e dormitórios, que poderiam ser coletivos ou individuais, como o de Kain. 

Os volumes eram ainda mais fascinantes que o prédio. Um visitante inadvertido, ao abrir um livro, não encontraria palavra que fizesse sentido. Logo no primeiro dia, o Bibliotecário havia explicado que o acervo era protegido com uma magia poderosa. O conhecimento neles encerrado era destinado aos iniciados.

O salão de livros era composto por estantes de madeira escura, baús e prateleiras, onde as escrituras eram armazenadas. Os iniciados que residiam na Biblioteca, aprendizes do Bibliotecário, vagavam entre as estantes, buscando os escritos que mais lhes interessavam, para poderem desfrutá-los na sala de leitura. Alguns não aguentavam a ansiedade e já se entregavam ao vício da leitura logo que punham as mãos no livro. Por vezes, estudiosos se esbarravam por não olharem o caminho à frente.

Quando um estudioso procura um livro e não sabe como encontrá-lo, a solução sempre estará no grande catálogo em posse do intendente. Kain era consultado o tempo todo. Havia muito trabalho a fazer. Auxiliar o bibliotecário a catalogar os livros novos, conferir cada códex, cuidar para que os pergaminhos não fossem arruinados pelo clima. Quase não havia tempo para bisbilhotar o que estava escrito em cada livro que eles manuseavam. 

Kain também raramente encontrava Marília. A jovem permanecia quase o tempo todo no alto da torre, no andar privado do Bibliotecário. Muitas histórias rondavam a figura da moça. Diziam que ela e o pai viveram nos campos, criando gado, quando ela era uma adolescente. Naquela época, o Bibliotecário havia decidido aposentar-se para cuidar melhor da filha. O ambiente era repleto de campos verdejantes e ar puro, bem diferente dos sufocantes edifícios, cobertos de fuligem, da Cidade Suspensa. Mas não era somente o ambiente campestre que fazia a garota feliz. Naqueles dias, Marília tinha um amor.

Era um jovem pastor que compartilhava os mesmos sonhos e aspirações que a garota. Viviam pelos campos, juntos, como irmãos. Diziam que ele era excelente músico e encantava a garota com suas melodias. Mas um dia, quando Marília estava em casa e seu amado pastoreando nos campos, um trágico acontecimento fez com que o rapaz fosse perdido para sempre. Desse desastre, Marília nunca se recuperou. Buscando afastar sua filha das lembranças amargas, o Bibliotecário revogou a aposentadoria e retomou imediatamente o trabalho na Biblioteca. Marília nunca se recuperou do choque.

Kain pensava no trágico destino da moça, enquanto dirigia-se para seu quarto. Estava muito cansado, e a história de Marília não saía de sua cabeça. Mas o que Kain queria mesmo era uma boa soneca. Ainda estava pelo meio da tarde, mas ele e o Bibliotecário haviam passado a noite e a manhã trabalhando em indexar novos itens para o acervo. Os ombros de Kain doíam e seus olhos estavam pesados. Ele teria desabado na cama se não tivesse percebido um pequeno e estranho pedaço de papel depositado sobre o colchão.

Sem demora, Kain pegou o papel e desdobrou-o, lendo com avidez o conteúdo. O viajante oscilou à beira da cama. Seus sentimentos se misturaram, revolvendo seu peito. Depois de tudo, aquele era o momento. Deveria partir sem demora.

sexta-feira, outubro 28, 2011

Fahrenheit 451 - Porque guardar é preciso

Quando comecei a ler Fahrenheit 451, senti uma profunda estranheza. As imagens presentes no texto, embora um tento poéticas, eram confusas em diversos trechos. Eu não me sentia parte daquele texto. Era como se eu fosse uma espécie de clandestino naquelas linhas.

Um dos motivos para que eu me sentisse dessa forma talvez tenha sido a maneira com que o protagonista, Guy Montag, é apresentado logo no início do romance. Ele é um bombeiro que vive em um mundo em que os bombeiros não têm mais a obrigação de apagar incêndios. Agora, as casas dificilmente pegam fogo e, por isso, outra função é dada aos profissionais que antes combatiam as chamas.

Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451, dá forma a uma obra densa e opressiva, cujo enredo está situado em um suposto futuro. No romance, com o desenvolvimento dos meios de comunicação, a sociedade desenvolve um forte imediatismo, de forma que as fontes de conhecimento mais tradicionais, como os livros, passam a ser descartados e, por fim, temidos. Afinal, o governo começa a considerar o acesso aos livros uma perigosa forma de autonomia.

Com isso, os bombeiros são arregimentados para dar fim ao legado de Gutemberg. Atendendo a denúncias anônimas, eles seguem o mesmo tradicional protocolo de vestirem macacões, descer pelo corrimão ao andar de baixo, subir no caminhão e partir rumo ao chamado. Só que as mangueiras que eles carregam não cospem água e sim querosene.

Guy Montag, protagonista da história, é um bombeiro com dez anos de serviço. Fiel ao seu serviço, sente orgulho por fazer parte da corporação. Logo que ele entra em ação, é com prazer que observa os livros sendo transformados em cinzas. Tudo muda quando ele tem um fortuito contato com uma vizinha, uma menina de 17 anos que provoca nele um incômodo tão grande que Montag passa a ver tudo ao seu redor de uma forma diferente.

O mundo descrito por Ray Bradbury carece de detalhes, de forma que, ainda que narrado em um universo futurístico, os conflitos são profundamente psicológicos. Este fato se torna cada vez mais forte nas duas últimas partes do romance, quando os diálogos se tornam cada vez mais profundos e significativos.

É importante destacar que a mudança em Montag é gradual e, como é de se esperar, acaba por trazer sérias consequências tanto para sua saúde física quanto para sua própria sanidade mental. Da mesma maneira que no mito da Caverna de Platão, quando ele tem seus olhos abertos, passa a considerar inconcebível que as pessoas ao seu redor continuem alheias, acreditando nas transmissões de seus televisores e nas propagandas insaciáveis. Montag passa a ter outros anseios, mais urgentes e também mais profundos.

Desafiador, profundo e poético, Fahrenheit 451 é uma obra inesquecível. Um chamado a todos aqueles que querem viver além da superfície.

Segue abaixo um pequeno trecho do livro e que particularmente me inspirou, pois traduz um pouco do espírito deste blog:

Um deles tinha de parar de queimar. Por certo o Sol não pararia. Dessa forma, era como se tivesse de ser Montag e as pessoas com quem ele havia trabalhado até algumas horas antes. Em algum lugar, o ato de salvar e guardar teria de começar novamente, e alguém tinha de se encarregar de salvar e guardar, de um modo ou de outro, nos livros, nos discos, na cabeça das pessoas, do jeito que fosse, desde que fosse seguro, livre de mariposas, traças, ferrugem e mofo, e de homens com fósforos.

Ficha técnica

Título: Fahrenheit 451
Autor: Ray Bradbury
Editora: Globo de Bolso
ISBN: 9788525046444
Ano: 2009
Páginas: 256
Tradutor: Cid Knipel

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/136

quarta-feira, outubro 26, 2011

Sobre amores desiguais

Há alguns dias terminei a leitura do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Em breve deixarei aqui uma resenha sobre esse livro. Gostaria, contudo, de comentar um trecho que me fez refletir por um bom tempo.

O livro fala de Ema Bovary e sua busca incessante por um significado para além do cotidiano, uma perseguição do ideal de paixão e felicidade. Nessa busca, Ema se envolve com amantes, estabelecendo um clima de tensão que vai ficando cada vez mais forte ao longo da narrativa. O trecho que me fez refletir fala sobre a relação entre Ema e seu amante Léon:

"Não discutia as ideias dela e aceitava-lhe todos os gostos; ele era mais amante dela do que ela o era sua."

Cheguei ao final dessa frase com a indagação sobre tantos casais que vivem uma situação semelhante, ou pelo menos têm impressão dessa desigualdade de sentimentos.

A verdade é que não há justa medida para o amor. Não há sentimento que possa ser medido, ou mesmo definido. Amamos, simples assim. Tentamos mensurar esse sentimento pelas angústias que nascem de nossas expectativas. É impossível aceitar que o amor do outro seja insondável, imensurável. E isso nos incomoda na proporção inversa de nossa segurança.

Numa sociedade regida pela imagem, desde os ícones pop até os gráficos estatísticos, o ato de comparar é quase natural. As consequências ficam a cargo das pessoas comuns, incapazes de manter o ritmo dessa força inexorável e retroalimentada que atua como modelo social.

A insegurança é um problema, pois provoca comparações que geram ainda mais insegurança. É importante, porém, assumir que quanto mais envolvidos estivermos em um relacionamento, maior peso daremos a nossas comparações.

Mas esse mesmo excesso de envolvimento pode também provocar um enganoso excesso de confiança. Carlos Bovary, marido de Ema, era tão devoto à esposa que sequer imaginava ser possível qualquer traição. Não fosse a convenção social ela já o teria abandonado. Carlos vai ao cúmulo da ignorância, ao encontrar um antigo bilhete de um outro amante. Ao ler as palavras comprometedoras, ele declara: "Amavam-se platonicamente."

Talvez seja inevitável – até necessário – comparar. Ou de repente o melhor é jogar tudo para o alto, esquecer ou ignorar qualquer diferença (ou semelhança), deixar-se levar. Quem sabe um pouco dos dois. Não deixando, porém, que a segurança descambe para a insensibilidade. Ou que comparações, sempre subjetivas, estraguem algo que transcende qualquer comparação.

segunda-feira, outubro 24, 2011

A Cidade Suspensa – Parte X


Após perceber o erro de uma atitude temerária, Kain deposita toda as suas esperanças em um possível apoio do Bibliotecário...

O Bibliotecário causou forte impressão logo que Kain o viu. Era um homem alto e magro, de nariz adunco e o cabelo cinzento que denunciava o loiro dos anos verdes. Para o homem mais poderoso do lugar, tinha um olhar bem franco, quase bondoso. Mas o que surpreendia Kain era o ar de familiaridade que aquele senhor lhe lançava. O Bibliotecário assentiu levemente e saudou o viajante. 

“Bem-vindo, senhor forasteiro. Ainda que o senhor ignore, alguns dos Príncipes desta cidade estão devidamente informados de sua chegada. Está de posse da insígnia?”

Apesar de Kain ter ficado levemente surpreso, aquilo era de se esperar dos chamados “grandes” da Cidade. Lembrando-se da recomendação de Marília, o viajante logo pôs-se de joelhos. 

“Distinto senhor,” começou a dizer, enquanto estendia o medalhão, “apresento-me em busca de um trabalho. Não desejo me vangloriar, mas disponho de talentos que seriam no mínimo interessantes ao senhor e à Biblioteca.”

Em sua pose distinta, porém simpática, o Bibliotecário caminhou pausadamente até tocar o medalhão. O objeto começou a brilhar, como se aquecido e, num instante, desfez-se em fagulhas luminosas. O austero senhor fez um muxoxo e soltou um discreto murmúrio de satisfação.

"Creio que no caminho até este recinto o senhor tenha visto o número de trabalhadores à minha disposição. Não preciso de mais um, por mais talentoso que seja."

Era curioso, mas Kain já imaginava resposta como aquela. Fez menção de ficar de pé, mas o Bibliotecário tocou seu ombro, indicando que o viajante deveria continuar naquela posição incômoda. Pelo visto, o líder da Biblioteca ainda não havia acabado. 

“No entanto, o cargo de intendente está vago e não acredito que um daqueles idiotas lá de baixo estejam aptos a assumi-lo. A insígnia que o senhor viajante trouxe revela uma procedência de qualidade incontestável. Acredito, portanto, ser interessante recebê-lo como aprendiz, até que seu prazo na cidade acabe. Se eu aprovar o trabalho, o cargo será seu."

Não deixava de ser uma surpresa, mas Kain manteve-se impassível. O Bibliotecário deu rápidas instruções para que o guia levasse o viajante para os aposentos que ele ocuparia temporariamente. O grave funcionário da Biblioteca foi silenciosamente seguido até uma pequena saída de serviço, escondida em uma extremidade do recinto, onde se via a entrada para uma escada em espiral. Kain ainda olhou para trás uma vez, para observar o ar melancólico da filha do Bibliotecário. Marília era como um dos títulos guardados naquele edifício. Um daqueles tomos com capa bordada e repleto de iluminuras. Inalcançável. Balançando a cabeça para afastar esses pensamentos, Kain tratou se seguir seu guia até o recinto a ele destinado.

Era uma cela minúscula, contendo uma cama rústica com o colchão e cobertor grosseiros, uma pequena mesa de canto e um castiçal para uma só vela. Não havia janelas. Era tudo bem simples, mas bastava para Kain. O viajante foi deixado sozinho após um grave cumprimento do guia. Sobre a pequena mesa, havia uma tigela de caldo, um copo de leite e pão fresco. Era estranho, parecia que ele já era aguardado. 

Sempre desconfiado, chegou a ponderar se haveria veneno nos alimentos. Testou-os com magia e não encontrou alteração. Deu de ombros. Afinal das contas, havia dois dias que não tinha uma refeição decente e desde a sua chegada à Cidade Suspensa não comera nada. Seu corpo doía pela noite mal dormida, cochilando sentado no bonde noturno. Cansado demais para mais desconfianças, Kain comeu com voracidade para, em seguida, desabar na cama e entregar-se a um sono sem sonhos.

sexta-feira, outubro 21, 2011

Uma menina em busca de vingança


"Ninguém põe fé que uma menina de catorze anos possa sair de casa e viajar em pleno inverno para vingar a morte do pai, mas na época não pareceu tão estranho, embora eu deva reconhecer que isso não acontece todo dia. Eu tinha só catorze anos quando um covarde que atende pelo nome de Tom Chaney meteu uma bala em meu pai lá em Fort Smith, Arkansas, e roubou sua vida, seu cavalo e 150 dólares em dinheiro, mais duas moedas de ouro da Califórnia que ele levava em uma faixa na cintura."


Resolvi iniciar a resenha de Bravura Indômita com as primeiras palavras do romance, deixando que a própria Mattie Ross fale por si, pois a corajosa menina de 14 anos dita o tom do enredo, sendo ela a Guardiã desta história.

Charles Portis deu forma a este romance em 1968, ambientando sua história ocorrida por volta de 1870 no autêntico faroeste. Mattie, em busca de vingança pela morte de seu pai, contrata o destemperado e implacável agente federal Rooster Cogburn e parte com ele em uma incansável caçada contra o assassino, Tom Chaney. LaBoeuf, um texas ranger, acompanha o agente federal e a menina, interessado em uma outra recompensa por Chaney.

O maior mérito de Portis ao escrever o romance foi deixar claro que Mattie é uma mulher inteligente, porém não uma literata. Já adulta quando conta essa história, Mattie lida bem com as palavras, mas sem se prender em criar belas imagens ou construir metáforas de efeito. Coisa muito comum na literatura norte-americana.

Não que Bravura Indômita não tenha belas imagens. Elas apenas estão entrelaçadas pela narrativa precisa e pragmática de Mattie e se revelam muitas vezes clandestinamente, como paisagens capturadas pelos olhos da menina e revividas através da memória da mulher.

Rooster Cogburn é um anti-herói, com seu charme próprio e postura incorrigível, no tradicional estilo "mocinho cafageste", embora sua história seja bem mais humana e menos glamourosa. Sua decadência é marcante, principalmente na descrição que Mattie faz de sua vida e no destaque que ela dá ao tapa-olho do velho agente federal. LaBeouf se contrasta com Rooster por suas roupas cuidadas e atitude engomada.

Assim como seria de se esperar em um ambiente hostil como os Estados Unidos costurado recentemente pela guerra civil, os personagens são todos homens com moral deturpada e a boca maior que os atos. Chega a ser cômico em certo momento Rooster, bêbado, disputar com LaBoeuf atirando em broas de fubá, tentando provar sua bela pontaria.

E justamente cenas como esta deixam o desfecho do romance ainda mais saboroso. Vale comentar que o livro teve duas adaptações para o cinema. A primeira, de 1969, foi estralada por John Wayne e dirigida por Henry Hathaway. Em 2010 foi lançada a segunda adaptação, estralada por Jeff Bridges e dirigida pelos irmãos Coen. Não sei da primeira, mas a segunda adaptação segue fielmente o roteiro do romance.

A escolha do desfecho de Charles Portis pode ser estranho para alguns, mas considero perfeito para a proposta do romance. Principalmente porque, ao final da leitura, você pode ficar com um pouco de vontade de embarcar naquele trem rumo ao Arkansas, em busca de sua própria aventura.

Ficha Técnica


Título: Bravura Indômita
Autor: Charles Portis
Edição: 1
Editora: Alfaguara
ISBN: 9788579620430
Ano: 2011
Páginas: 187
Tradutor: Cassio de Arantes Leite

Link para a página no skoob: http://www.skoob.com.br/livro/146195/

quarta-feira, outubro 19, 2011

As muitas razões de ser

Enquanto meus dedos deslizam nas teclas, a janela do apartamento à frente ressoa músicas ininteligíveis, num coro de vozes bêbadas entoando suas canções. Algo que lembra um pouco do sertanejo brega que fez tanto sucesso na década de 1990. É domingo, 19h43 da noite. 

Como sempre posto um relato ou uma reflexão toda quarta-feira, pretendia levantar outras questões neste post ao invés de elogiar meus vizinhos tão educados. Por exemplo, queria falar sobre os comentários do blog. Agradecer, em primeiro lugar, a todos que comentam. E também dizer que leio todos os comentários. O fato de não respondê-los não diminui sua importância. Afinal, escrevo e publico especificamente porque espero que as pessoas leiam. Por isso minhas ideias, por piores ou melhores que sejam, não ficam guardadas na gaveta ou na página da agenda.

Embora não necessariamente, este blog é seriamente novo. Digo, ele existe desde 2005, mas com uma proposta diferente. Nasceu na tentativa de contar uma história de fantasia onde um gnomo perdido em um mundo quase morto conta suas memórias e analisa sua vida. Tanto a ideia inicial quanto sua sustentação morreram. Tudo por falta de comentários. 

Decidi, em seguida, criar uma outra história, onde um cavaleiro maligno resgata uma espada igualmente maligna para aos poucos ter sua vida transformada enquanto encontrava inúmeros personagens. A história se manteve sem comentários até o sétimo capítulo. Fiquei desmotivado e praticamente abandonei o blog.

As músicas continuam. Acredito que os vizinhos querem me convencer a cantar também. Se não fosse isso, não estariam gritando tão alto. Talvez seja a deixa para desligar este computador, bater na porta e pedir um prato de salgadinhos e uma bebida...

Ah, sim, estava falando do meu blog abandonado. Quase um ano depois, voltei e encontrei um comentário no último post. Ávido acessei o link e fiquei maravilhado com as palavras de uma pessoa que nunca vi. Essa pessoa dizia que lamentava que a história tivesse parado sem uma conclusão. Esse comentário me deu força a continuar uma história que durou mais de 2 anos, sendo dividida em duas partes: a primeira com 29 capítulos e a segunda com 35.

Depois de um tempo, pensei que essa leitora nunca mais voltaria. O blog foi reformulado, passei a postar resenhas, de forma a qualificar minha leitura. Acreditei que não mais postaria textos literários no blog. Hoje publico A Cidade Suspensa e cada comentário é como um impulso incandescente a inflamar minhas veias e me fazer pular de alegria. Sério. Às vezes saio do trabalho pulando, louco pra voltar a digitar aqui, continuar a relatar as dificuldades de Kain.

Agora o pessoal lá de fora está uivando. Fico imaginando se eles estão ensaiando algum rito ancestral pra chamar a chuva. Tenho que avisá-los que não é preciso. Já choveu ontem e hoje. Provavelmente choverá amanhã...

Não vou me estender demais. Aliás, acho até difícil. Para acompanhar os uivos, aumentaram o som. Creio que fizeram isso porque estavam gritando tanto que já não conseguiam escutar a música. Enfim, isso acontece.

Para encerrar, gostaria novamente de agradecer a todos que se aventuram por estas páginas. Mesmo aqueles que não registram sua passagem através de um comentário. Estas histórias estarão sempre aqui, guardadas para vocês.

E um agradecimento especial para Tyr Quentalë. A primeira leitora do blog e a grande responsável por salvar a alma de um escritor, aprisionada no peito de um ser humano.