Uma das coisas que mais aprecio nos livros e na leitura é a possibilidade de trocarmos impressões, compartilharmos nossa vivência literária. Ler é um ato filosófico e transformador: nunca mais somos os mesmos ao final de uma leitura. A intensidade dessa mudança depende do quanto a leitura foi relevante para nós, do quanto essas palavras tiveram peso em nossas almas.
Ouso afirmar inclusive que o livro também não é o mesmo quando chegamos ao seu fim. Antes o que era um objeto se torna algo que vai além de seus limites físicos. Uma obra espiritual. E por isso mesmo, o livro passa a não pertencer mais apenas ao seu autor. Nós, como leitores fiéis, nos apropriamos da narrativa, dessas vidas secretas, e as tornamos parte de nós. O livro e todo o universo que ele encerra passa a nos pertencer.
E assim como o livro nos transformou (e transformamos o livro), queremos que outros passem também por esse processo. Queremos que essa transformação secreta e íntima passe a tocar outros universos, outras pessoas. Por isso, quando sentimos empatia com algum leitor, compartilhamos leituras, compartilhamos vida.
A leitura é um fenômeno que transcende o espaço e o tempo. É um ato íntimo, uma jornada em que o caminho percorrido é composto de memórias alheias mescladas às próprias memórias do leitor, pois ele precisa reconhecer os signos, as figuras de linguagem, as referências espaciais.
Não é preciso ter tudo isso em mente, mesmo sabendo que, de certa forma, é isso que acontece em Terra sonâmbula. Eu pensava nisso tudo depois de passear pelo blog da Fefa (Apaixonada por papel). Ela citou um autor que ainda não havia lido. Depois de algumas conversas, perguntou se eu teria algum livro dele pra indicar. Por isso decidi apresentar aqui o livro que me fez amar cada linha traçada por esse moçambicano de quase 60 anos, registrado como António Emílio Leite Couto, mas conhecido como Mia Couto, por causa de sua paixão por gatos.
Ainda jovem, Mia escrevia e publicava poemas. Depois passou para os contos e o romance foi seu gênero literário tardio, de certa forma refletindo sua maturidade. Em Terra sonâmbula, seu primeiro romance, publicado em 1992, Mia Couto narra o encontro de dois mundos, ambos órfãos. O menino Muidinga, fugitivo de um campo de concentração em plena guerra civil, encontra em um ônibus queimado uma mala contendo cadernos escritos por um tal de Kindzu. Nesses cadernos um pouco do passado de Moçambique se revela, enquanto o autor do relato desenrola seu périplo em busca de respostas para seu destino, para o amor e para a vida.
Kindzu e Muidinga não se conhecem de fato, mas através dos cadernos, escritos numa linguagem quase mitológica, o menino passa pelo processo que descrevi anteriormente, essa transformação e apropriação que acontece quando um texto literário nos invade com toda a força e vitalidade que carrega. Assim, os dois, que antes eram estranhos, se tornam quase irmãos.
Muidinga também é auxiliado pelo velho Tuahir. Ainda que não sejam parentes, Tuahir cuida do menino como um pai. O velho não sabe ler, mas conta com a habilidade de Muidinga para também participar da história, ouvir a leitura em voz alta e fazer parte desse mundo mágico que é reconstruído através dos olhos e da voz do menino.
Nessa jornada, a própria estrada onde o ônibus queimado repousa começa a se transformar, contaminada pela magia das palavras que, antes mortas no papel, são ressuscitadas pela voz de Muidinga. Muitos são os desafios e aventuras. Muitas são as perguntas. As respostas ficam a cargo do leitor.
Terra sonâmbula é mais do que um romance. É um tratado a favor da vida e da esperança, um mágico guia de viagem que fala do poder criador das palavras.
Deixo por fim um pequenino trecho que considero carregar um pouco da alma do romance, pois traduz o próprio sentido do título. É uma fala de Kindzu:
"Talvez, quem sabe, cumprisse o que sempre fora: sonhador de lembranças, inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera."
Ficha técnica
Título: Terra sonâmbula
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 9788535910445
Ano da edição: 2007
Páginas: 208
Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/2940
Sabe que meu filho diz que gosta muito mais quando leio um livro para ele, do que ele mesmo lendo o livro? Ele diz que dou vida as palavras e as personagens, mesmo que eu não tenha mais conseguido fazer diferenciação nas vozes. Com certeza esse livro é bastante cativante. Mais um para ficar na minha enorme lista de compras.
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