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segunda-feira, janeiro 22, 2024

O Lobo da Estepe - As existências e transformações de Harry Haller



Harry Haller é alguém dividido. Em seu interior, homem e fera combatem entre si. Os ideais civilizatórios e burgueses vivem em conflito com a imagem de um lobo, selvagem e feroz. É o Lobo da Estepe, que ao mesmo tempo que orienta a personalidade de Harry, também o assombra e aterroriza. 

Romance escrito por Hermann Hesse, esta é uma obra profunda e enigmática. Conta sobre esse indivíduo inteligente e culto, em crise consigo e com o meio em que vive, a burguesia. Harry sente angústias atrozes, a ponto de querer acabar com a própria vida. 

Por conta dessa agonia e da insistente vontade de se matar, Harry sai à rua para caminhadas longas e angustiadas. Em uma delas, o protagonista se vê diante de um letreiro onde está escrito "O Teatro Mágico" e tem contato com um livreto que misteriosamente fala de sua vida, "Tratado do Lobo da Estepe". É um texto que não apenas traça um perfil dele mesmo, mas também procura desconstruir a dicotomia em que este se encontra. 

Harry costuma falar de si mesmo como o Lobo da Estepe. E ao ler o livreto, ele vê o quanto essa divisão interna é enganosa. O texto defende que dentro de cada homem vivem vários, inúmeros. E essas existências várias vão moldando o ser na sua suposta individualidade.

Além disso, Harry deseja conhecer "O Teatro Mágico". Interessado em adentrar nesse recinto, ele tem seu acesso impedido, uma vez que a entrada é garantida "apenas para raros". Ou seja, apenas indivíduos excepcionais poderiam adentrar o misterioso recinto. Ou seriam loucos? Essa ideia chega a flertar com Harry.

E então sua vida passa por uma reviravolta quando ele conhece Hermínia. Inteligente, perspicaz, bonita e talentosa, ela se torna uma espécie de tutora de Harry e o ensinará a "viver", a partir das aulas de dança que irá ministrar-lhe. Ela o introduzirá na vida dos bailes e festas. Além disso, através de Hermínia, Harry conhecerá Maria, com quem terá um romance ardente e transformador.

Outro indivíduo importante no percurso de Harry será Pablo, um músico de jazz. A princípio, ele surge como uma pessoa superficial e inócua. Contudo, Pablo assumirá em certo momento o papel de mentor de Harry, através da experimentação de drogas psicodélicas e experiências sinestésicas, dentro do enigmático Teatro Mágico.

O Lobo da Estepe é antes de tudo uma obra densa. Um texto repleto de digressões e especulações filosóficas do narrador-protagonista, o livro conta também com um longo prefácio, o qual procura apresentar esse mesmo protagonista como alguém real, que teria sido inquilino da casa em que Hermann Hesse morava. Assim, temos dessa forma um perfil psicológico do narrador-protagonista, numa introdução que busca preparar o leitor para a longa e enigmática de autodescoberta de Harry Haller.

Com um texto profundo, repleto de referências culturais e que busca apresentar camadas filosóficas ao enredo, O Lobo da Estepe é uma obra instigante, incômoda e, sobretudo, transformadora. Um livro para ser visitado pelo leitor de tempos em tempos, com a certeza de que, a cada leitura, um novo ser humano surgirá dessa experiência.


Ficha Técnica

O Lobo da Estepe

Hermann Hesse

ISBN-13: 9788577991075

ISBN-10: 8577991075

Ano: 2009 

Páginas: 252

Idioma: português

Tradutor: Ivo Barroso

Editora: BestBolso


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-lobo-da-estepe-1338ed406172.html

segunda-feira, janeiro 15, 2024

Balada de amor ao vento - Uma vida inteira de amor



A linda Sarnau está apaixonada. Seu coração foi capturado pelo belo Mwando. Há, porém, muitas dificuldades esperando esse possível romance. Mwando está estudando para ser padre. O amor dos dois será mais forte que a suposta vocação do rapaz? Este é um dos muitos percalços que Sarnau irá enfrentar para viver este amor.

Balada de amor ao vento, romance de estreia de Paulina Chiziane, é uma narrativa poética e melancólica, repleta de saudade e tristeza. No primeiro capítulo, Sarnau já se aproxima do fim de sua vida e começa a se lembrar dos encontros e desencontros que teve com Mwando. Como narradora, ela vai desfiando essas memórias. O amor se realiza, com Mwando correspondendo aos sentimentos de Sarnau e sendo por isso expulso da escola de padres. Os dois se entregam a esse amor, mas logo Mwando é prometido a outra mulher.

Sarnau pouco tempo tem para sofrer essa desilusão amorosa, pois ela é logo escolhida para ser a primeira esposa do príncipe herdeiro de Mambone. O casamento, porém, não será dos mais perfeitos. Nguila, o herdeiro do trono, além de mulherengo é violento e isso tornará a vida de Sarnau terrível.

A narrativa então se desdobra em duas, contando para nós, leitoras e leitores, a vida tanto de Sarnau quanto de Mwando, de forma intercalada.

A narrativa de Paulina Chiziane é maravilhosamente profunda e repleta de reflexões. As descrições resultam em imagens poéticas lindas, com elementos pitorescos e naturais. Nas digressões que Sarnau faz como narradora, ela denuncia todo o machismo da sociedade em que está incluída, em especial os efeitos funestos da poligamia. O sofrimento da mulher é evidenciado nesse processo.

Mwando também tem sua cota de tristezas. Em seus encontros e desencontros com o amor, ele também sofrerá e não será pouco. Porém, diferentemente de Sarnau, Mwando será o maior responsável por seus próprios sofrimentos. Ele não deixa, porém, de ser também uma vítima do sistema em que vive, sendo assim um homem de contradições.

Com uma prosa poética e de certa forma idílica, além das denúncias que carrega e o enredo repleto de percalços, Balada de amor ao vento é um livro belo e triste. Mas daquelas tristezas que não podemos deixar de evitar. Um livro que, como a vida, é feita de encontros e despedidas.


Ficha Técnica

Balada de amor ao vento

Paulina Chiziane

ISBN-13: 9789722115575

ISBN-10: 972211557X

Ano: 2003 

Páginas: 149

Idioma: português de Portugal 

Editora: Editorial Caminho


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/balada-de-amor-ao-vento-67544ed74571.html

segunda-feira, janeiro 08, 2024

Sidarta - O longo caminho para a iluminação



Sidarta, de Hermann Hesse, é uma leitura profunda, reflexiva, interessante e repleta de sabedoria. Hesse cria um personagem que faz um percurso acidentado e sinuoso para chegar ao tão buscado Brama, ao aconchego do Om, ao Nirvana.

Sidarta é um jovem bonito e inteligente. Essa inteligência o afasta dos seres humanos comuns a ponto de desprezá-los. Seu talento permite que aprenda com espantosa rapidez e facilidade conceitos complexos e técnicas de meditação desafiadoras. Além disso, ele tem uma beleza ímpar e um físico invejável, de forma a sempre atrair a atenção de todas as pessoas ao redor.

"Infelizmente", esse mesmo talento o lança em uma longa e tortuosa jornada em busca da santidade, da iluminação. O caminho não é fácil, é cheio de percalços e o jovem, inicialmente acompanhado por um fiel amigo de infância, logo descobre que deverá trilhar sozinho essa senda.

Ele irá buscar até mesmo junto ao comércio e à vida material essa tão desejada iluminação. Será iniciado nas artes do amor e aprenderá o valor do corpo físico, além da vida espiritual. E seu caminho não se encerrará nisso. É de fato uma senda muito tortuosa, uma jornada solitária e muitas vezes inglória. 

Hermann Hesse cria com Sidarta uma primorosa obra que funciona como alegoria para nossa própria busca espiritual. Sidarta é um e vários ao mesmo tempo. Afastando-se do caminho religioso e se lançando no mundo, o protagonista é cada um de nós. Assim, Hesse nos convida a vestir a pele de Sidarta e degustar as delícias e dores que ele atravessa.

Muito se poderia dizer desse romance relativamente. Porém, quanto mais eu escrevo, sinto que mais me afasto do enredo em si. Portanto, cabe a você, leitora ou leitor, vocês leitores, trilhar o caminho e tomar Sidarta pela mão.


Ficha Técnica

Sidarta

Hermann Hesse

ISBN-13: 9788501118295

ISBN-10: 850111829X

Ano: 2019 

Páginas: 176

Idioma: português

Editora: Editora Record

Tradutor: Herbert Caro

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/sidarta-1814ed1008204.html

quarta-feira, dezembro 27, 2023

Oficina estimula as crianças a encararem seus medos e refletirem sobre empatia



No dia 11 de novembro compareci à Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH para oferecer a oficina "O medo que a gente tem". Na atividade, eu li o livro Lolô, de Gregoire Solotareff. A partir da leitura, eu discorria com as crianças sobre as palavras "medo" e "empatia". Os sentidos dessas palavras eram explorados. Perguntei para as crianças de que elas tinham medo. Algumas disseram ter medo de aranhas. Outras, de baratas. Em seguida, falei sobre se colocar no lugar do outro, sentir o que o outro sente. Convidei as crianças então a desenhar suas imagens de medo, como forma a enfrentá-lo. Um aspecto dessa oficina em especial foi que as crianças foram chegando e eu voltava a ler com elas o livro e as convidava para produzir desenhos.

 











No dia 23 de novembro, foi a vez de ir à Biblioteca do Centro de Referência da Cultura Popular e Tradicional Lagoa do Nado. Atendi a cerca de 75 crianças. Resolvi mexer um pouco na metodologia. Perguntei primeiramente sobre o que os lobos gostam de fazer. A resposta foi "caçar". Dei início então a uma leitura reflexiva e dialógica, apresentando os personagens Tom e Lolô, contando a história desses dois.

Após a leitura, comecei a explorar alguns aspectos do livro, falando sobre a diferença entre MEDO-DE-LOBO e MEDO-DE-COELHO. Falei do trauma que Tom sentiu ao ser profundamente assustado por Lolô. Além disso, discorri sobre as questões como o significado da palavra "empatia" como contraponto à "antipatia", que todos conhecem e cujo conceito compreendem intuitivamente.

Sendo assim, explorei um pouco a questão da desigualdade desencadear processos nem um pouco empáticos, gerando profundos traumas nas pessoas. Contei do meu medo de aranhas e a brincadeira durante a infância em que meu irmão, Arthur, junto com os amigos Áquila e Samuel, procuraram me assustar com uma enorme aranha fosforescente. E como o resultado foi desastroso, pois estávamos todos de hóspedes na casa desses amigos e os vizinhos comunicaram aos pais deles essa confusão gerada com meus gritos de susto. 

As crianças disseram ter se divertido muito. Aproveitei para contar a história "O caso do bolinho", seguida da Que bicho será que fez a coisa?

Também discorremos um pouco mais sobre medos e a importância de a gente se colocar no lugar do outro. Estava com meus cartões. Aproveitei para separar um cartão e deixei com uma das professoras. 

Por fim, fizemos algumas fotos para marcar a iniciativa.  





O último encontro da oficina "O medo que a gente tem" aconteceu no Centro Cultural Usina de Cultura. As crianças eram bem pequenas e estavam bastante inquietas. Elas faziam parte de uma creche parceira da PBH. Apesar da inquietação, pude observar que prestaram bastante atenção durante a leitura. Quando fui conversar sobre os aspectos "medo" e "empatia", elas começaram a ficar agitadas. 

Por conta do tempo curto e da agitação das crianças, considerei melhor encerrar a atividade. Também deixei meu cartão com uma das professoras, ficando assim a possibilidade de visitar a instituição parceira.


Por fim, considerei essa oficina muito interessante e com um potencial enorme. Uma atividade que apresenta uma obra diversa e de grande sensibilidade. 

Espero poder oferecer essa oficina nos centros culturais novamente. Ou realizá-la em outros espaços, como bibliotecas comunitárias, creches e escolas.

E você, o que achou? Já leu o livro indicado? Realizou alguma oficina de leitura literária? Deixe abaixo seu comentário, compartilhando sua experiência ou reflexão. 


segunda-feira, novembro 27, 2023

O Pequeno Nicolau - Uma homenagem à infância antiga



Imagine um menino que o que tem de inocente, tem de travesso. Pois assim é Nicolau. Agitado, ingênuo e um pouco inconsequente, o menino se envolve em diversas confusões com seus amigos, principalmente o Alceu. Esse é o enredo de O Pequeno Nicolau, de Sempé e Goscinny, com tradução de Luís Lorenzo Rivera e publicação pela Editora Martins Fontes.

O livro trata de pequenos episódios da vida do menino Nicolau. Uma criança como qualquer outra, que não se priva de chorar quando deseja e tem como maior vontade a diversão. São episódios cotidianos sem relação cronológica entre si, podendo ser lidos separadamente. Tanto que as crianças são apresentadas novamente a cada capítulo.

São muitas as confusões aprontadas por Nicolau e seus amigos. Cada um tem características bem marcadas pelo menino, que é também o narrador. Alceu come o tempo todo. Maximiliano tem as pernas compridas e é bom na corrida. Godofredo tem o pai muito rico e por isso aparece sempre com as melhores fantasias. Agnaldo é o primeiro da classe e o queridinho da professora. Por isso, todos querem bater nele, mas não podem, pois ele usa óculos. Rufino vive com um apito, pois seu pai é policial Clotário é sempre o último da classe. Eudes é grande e forte e adora distribuir socos nos narizes dos colegas.

O livro é muito gostoso de ler e também engraçado, com ótimas tiradas de humor, sempre contrapondo o mundo adulto com o mundo da infância. Trata-se de uma infância alegre e inocente, extremamente idealizada, mas que não deixa de ter o seu charme. 

Por falar em charme, essa é principal característica de Nicolau. Ele é de fato um narrador encantador. Talvez este encanto esteja justamente na sua falta de malícia, o que nos aproxima dele e nos faz apreciá-lo. Nicolau é simples, apesar das ambições de, ao crescer, ser rico, ter um carro, um avião e deixar todos impressionados.

Os desenhos são de Sempé, o mesmo criador de Marcelino Pedregulho, com traços cartunescos bem característicos, de formas angulosas marcantes e bem definidas, mostrando o cotidiano de uma época francesa em que as escolas de meninas e meninos eram separadas, fotografias eram tiradas por câmeras gigantescas e o futebol era jogado em terrenos abandonados, com sucatas de carros espalhados por todo lado.

Existe um aspecto que me desagradou no livro, que é a marcação exagerada em relação á obesidade de Alceu e sua compulsão por comer. Essa estrutura narrativa é utilizada como elemento cômico muito datado. Apesar desse estereótipo, Alceu aparece como uma criança comum e até um pouco mais travessa que as outras.

Outro personagem que merece destaque é o Agnaldo, por sua caricaturização. Trata-se de um garoto precoce tanto em livros quanto no conhecimento. Porém, ele é como uma miniatura de vilão, sempre entregando os colegas em com isso sendo constantemente chamado de "traidor sujo".

Apesar desses elementos que considerei controversos, pude me divertir bastante com o livro. Acompanhar as aventuras do pequeno Nicolau foi também um nostálgico mergulho na minha infância. Eu me senti rejuvenescido e como que revivendo os episódios pitorescos e memoráveis da época em que eu era criança.

Com desenhos de muita personalidade e narrativas muito divertidas, O pequeno Nicolau é uma leitura imperdível, uma deliciosa jornada recomendada para crianças de todas as idades.


Ficha Técnica

O Pequeno Nicolau

René Goscinny

Sempé

Tradução de Luís Lorenzo Rivera

ISBN-13: 9788533601833

ISBN-10: 8533601832

Ano: 1996 

Páginas: 120

Idioma: português

Editora: Martins Fontes

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-pequeno-nicolau-1854ed122257397.html

segunda-feira, outubro 30, 2023

Fahrenheit 451 - A vontade que vence o fogo


Guy Montag é um bombeiro que ama o que faz. Se você acha que isso significa amor por apagar incêndios, eu já adianto que não. Montag ama causá-los. Sim, ele é um bombeiro e sua função é queimar. Em uma era em que as casas não mais se incendeiam, a missão dos bombeiros agora é queimar livros.

Seu amor pelo trabalho é então posto à prova quando ele conhece Clarisse McLellan, uma jovem diferente, que ama pensar e dar longas caminhadas por sua vizinhança. Os poucos mas significativos encontros com Clarisse aceleram uma mudança que Montag já sofria, fazendo com que ele questione sua vida, seu trabalho e toda a sociedade à sua volta.

Assim, vamos conhecendo a história do protagonista de Fahrenheit 451, obra-prima de Ray Bradbury, mestre da ficção especulativa. Nesse livro, situado em um futuro não tão distante, ter livros é crime e o papel dos bombeiros é incinerá-los. Nessa sociedade, as universidades e escolas foram fechadas e as mídias assumiram proporções assustadoras, com telões interativos que ocupam paredes inteiras, além de atrizes e atores sendo chamadas de "família".

Havia lido esse livro pela primeira vez há mais de dez anos e confesso que senti certa dificuldade nessa primeira leitura. A de agora foi muito mais fluida e prazerosa. Parecia até que eu lia outro livro, completamente novo. Foi maravilhoso e ao mesmo tempo assustador ver pelos olhos de Guy Montag esse mundo distópico e perturbador em que a busca pelo conhecimento é desencorajada e até mesmo punida.

Montag de início me pareceu um homem raso e ingênuo. Porém, com o desenvolvimento da narrativa, sua ingenuidade foi ficando menos evidente. Não que ele a tenha deixado de lado. Trata-se de um homem de sua "época", com suas características e peculiaridades. Porém, ele entra em contradição com essa dita época. Seu contraponto é o capitão Beatty, sempre cheio de argumentos e com uma carga de leitura assombrosa. O capitão é um homem amargo e cínico, disposto a demover Montag de sua jornada de autodescoberta. Fato é que, quando Guy começa a acreditar nos livros, Beatty usa os próprios para rebater e ridicularizar Montag. E as atitudes do capitão acabam trazendo consequências irreversíveis.

Outra coisa que gostaria de dizer sobre o livro é sua literariedade. O trabalho com a linguagem é fenomenal e nos proporciona uma leitura deliciosa.

A edição que li trazia uma série de textos suplementares, entre eles, a introdução escrita por Neil Gaiman para a edição de 2013. Sempre é bom ler palavras tecidas por Gaiman, um feiticeiro literário. Ao final do livro, há também uma coleção de capas, desde aquela feita para a revista "Galaxy Science Fiction", a qual traz o conto "O bombeiro", narrativa que originou Fahrenheit 451, até capas de traduções do romance para outros países. São as capas mais célebres. Há outros textos como o excerto do diário de bordo de Truffaut para a adaptação cinematográfica. Há, também, um delicioso relato feito por Margaret Atwood.

Trata-se, portanto, de uma edição maravilhosa, que vale muito a pena colecionar.

É interessante como Montag começa a questionar tudo à sua volta, a ponto de sentir nascer em si um desejo de descobrir o que os livros possuem que fazem mulheres e homens morrerem por eles. Mas como Faber, outra personagem emblemática, disse, não são os livros, mas aquilo que eles guardam.

Com um apuro literário e profundas reflexões, Fahrenheit 451 é um livro incrível, um clássico imortal e uma declaração de amor aos livros mas, principalmente, às ideias, que fogo nenhum pode queimar.

Você pode conferir a primeira resenha que fiz sobre este livro aqui.


Ficha Técnica

Fahrenheit 451

Ray Bradbury

Tradução de Cid Knipel

ISBN-13: 9786558300151

ISBN-10: 655830015X

Ano: 2020 

Páginas: 272

Idioma: português

Editora: Biblioteca Azul


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/fahrenheit-451-136ed11679666.html

segunda-feira, outubro 16, 2023

Ouça a canção do vento & Pinball 1973 - Quando nasce um escritor


Ouça a canção do vento & Pinball 1973 é a publicação conjunta das duas primeiras obras de Haruki Murakami. O livro caiu em minhas mãos e eu estive com ele durante alguns dias, aventurando-me por suas páginas. Ouça a canção do vento garantiu o primeiro prêmio de Murakami como escritor, fundando sua carreira. Pinball, 1973 foi escrito em sequência e teve grande aceitação.

Ouça a canção do vento é narrado em primeira pessoa e conta as peripécias de um jovem de 21 anos, estudante de Tóquio, durante um verão que ele passa na sua cidade natal. Em sua pegada pós-moderna, o livro não se preocupa com um enredo bem desenvolvido. Não há necessariamente uma linha narrativa. A premissa, escrita logo no segundo capítulo, é que a narrativa tenha durado 18 dias de um verão de 1970. Porém, como a própria vida, os capítulos parecem relatos desconexos, sem uma sequência clara entre eles. Cabe a nós, leitoras e leitores, criarmos o sentido que falta, costurarmos seus significados ocultos.

Algumas coisas são colocadas em sequência cronológica, mas nem tudo. Alguns capítulos poderiam, simplesmente, ser trocados de lugar. Outros, nem tanto. Os capítulos da rádio têm um significado alegórico secreto, para mim. Enfim, é um livro envolvente, com uma linguagem atraente que nos seduz e prende, do início ao fim.

O narrador, cujo nome nunca é mencionado, conta um pouco do seu passado. Faz um relato melancólico e saudoso, principalmente sobre as garotas que conheceu. O livro é curtinho, tem uma narrativa dinâmica. A premissa é simples, desprovida de mistério, embora algumas coisas fiquem no interdito.

Uma personagem nomeada é Rato, um rico e amargurado amigo do narrador-protagonista. Assim como ele, Rato bebe quantidades absurdas de cerveja. A principal fonte de sua amargura é justamente sua riqueza.

Outra pessoa mencionada é Derek Hartfield, um romancista fracassado e suicida. De Hartfield o narrador retira lições sobre escrever romances, embora essas lições não sejam lá tão confiáveis, por não terem garantido seu sucesso. Além disso, o próprio narrador ignora tais lições.

Outro ponto interessante é que o narrador está sempre lendo algum livro. De preferência de autoria de pessoas já mortas. Isso porque, segundo ele, pode-se perdoar o que essa pessoa tenha feito. Não concordei tanto assim com essa afirmação.

Com uma linguagem direta e ligeira, numa abordagem de estilo moderno e levemente melancólico, Ouça a canção do vento é uma novela sobre amadurecimento e a saudade de tudo o que já foi.

Pinball, 1973 é uma suposta continuação da novela anterior. Trata-se de uma narrativa tranquila, sem grandes percalços. Nela, o narrador se divide em contar suas experiências como tradutor, seu namoro com duas gêmeas e seu fanatismo pela máquina de pinball Spaceship, além de relatar as angústias existenciais do Rato, personagem da novela anterior.

O livro tem enredo simples como seu antecessor e, como este, é meio que um anti-enredo. O mais importante de uma história é quão bem ela é contada. Assim, a novela é cheia de descrições poéticas e imagens interessantes, assim como sua predecessora.

O narrador não passa por grandes transformações. Sua obsessão pela máquina de pinball e por Kant pode ser uma alegoria à perseguição obsessiva do artista pelo objeto artístico. Ao mesmo tempo, é uma narrativa também sobre amadurecimento e transformação, por mais contraditório que isso possa parecer. Afinal, quem se transforma não é o narrador, mas seu amigo, o Rato.

É interessante e curioso que em Pinball, 1973 não há qualquer menção das pretensões de Rato em escrever romances, algo que foi destacado com certa importância em Ouça a canção do vento. Contudo, isso é sumariamente ignorado. E afinal, os narradores das duas novelas seriam de fato a mesma pessoa? O próprio Rato seria o mesmo?

Existem coisas que me incomodaram em ambas as novelas. A posição das mulheres como objetos meramente sexuais foi uma dessas coisas. E seja nas pessoas das gêmeas, ou na mulher que se relaciona com o Rato, elas carecem de profundidade. É como se elas fossem figuras genéricas e surgem apenas como elemento pitoresco da narrativa, como figuras caricaturais.

Apesar disso, foi uma novela envolvente, com elementos visuais muito belos. Com esses trechos de descrições poéticas, Pinball, 1973 é uma narrativa esteticamente bela, dotada de um certo vazio, como uma flor artificial.

Assim foi o meu percurso pelas duas novelas que compõem a origem de Haruki Murakami como escritor. 


Ficha Técnica

Ouça a Canção do Vento &Pinball, 1973

Haruki Murakami

ISBN-13: 9788556520296

ISBN-10: 8556520294

Ano: 2016 

Páginas: 272

Idioma: português

Editora: Alfaguara


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/ouca-a-cancao-do-vento--pinball-1973-620249ed620931.html

sexta-feira, agosto 05, 2022

O apocalipse dos trabalhadores - Vidas que se entrelaçam


É um grande desafio para mim falar de O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe. Esse não é um livro fácil. Ele conta as histórias de três pessoas: Maria da Graça, Quitéria e Andriy. Duas portuguesas e um ucraniano. A trama se passa em Portugal, na cidade de Bragança. Nesse emaranhado de vidas há também o Senhor Ferreira, o homem para quem a Graça trabalha e que a assedia constantemente. Por conta das constantes investidas, ela o chama de Maldito, mas admite que por ele está apaixonada. Graça é casada, um casamento sem amor. Ela detesta o marido a ponto de colocar lixívia na sopa dele, na esperança de que morra aos poucos.

Quitéria é namorada de Andriy. Ele fala pouco o Português e sofre de falta de notícias dos pais, Ekaterina e Sasha, que ainda vivem na Ucrânia. O velho Sasha é paranoico e vive com medo de ser levado pelos soldados. Isso porque há muitos anos ele matou um homem. Ou pelo menos é o que acredita. Não dá para saber o que é fato e o que é fantasia para Sasha.

A narrativa não segue um padrão linear, embora haja um enredo central que respeita certa sequência de acontecimentos. O texto é um emaranhado que vai se desenrolando enquanto lemos. A narrativa truncada pode ser incômoda, bem como a forma como as personagens interagem.

Com um enredo simples, mas emaranhado, personagens emblemáticos com atitudes controversas e uma certa dose de erotismo, O apocalipse dos trabalhadores é uma obra densa e incômoda, que nos marca como ferro em brasa.


Ficha técnica

O apocalipse dos trabalhadores

Valter Hugo Mãe

ISBN-13: 9788525063571

ISBN-10: 8525063576

Ano: 2017 

Páginas: 208

Idioma: português

Editora: Biblioteca Azul

segunda-feira, abril 11, 2022

A filha perdida - Quando não há amor que dê conta da vida


Leda sofre um acidente de carro. A todos que a visitam, ela diz que o sono a fizera sair da estrada, mas isto não é verdade. O que de fato aconteceu será narrado a nós, leitores, nos capítulos seguintes de A filha perdida, de Elena Ferrante. 

Narrado em primeira pessoa, o romance nos apresenta Leda, uma excelente professora universitária que está de férias no sul da Itália. Sofisticada e com uma exuberância natural, ela logo atrairá a atenção de uma família de napolitanos, rude e barulhenta, que também está de férias na praia. Aquela família representa tudo o que Leda mais despreza, pois foi de um lar assim que ela egressou. Porém, quem de fato atrai a atenção de Leda é a jovem Nina, devota mãe da pequena Elena.

Observar mãe e filha em seus passeios e brincadeiras na praia irá despertar sentimentos controversos em Leda, que gradativamente se envolverá com a família de formas inusitadas, o que trará a ela consequências irremediáveis.

A filha perdida é mais um exemplo do indiscutível talento de Elena Ferrante em criar tramas e personagens profundos. Leda é controversa, por vezes inconsequente, e nos perguntamos se sua narração é confiável. Perturbada pelos remorsos que sente, por causa do que fez tanto com sua mãe quanto com suas filhas, Leda parece querer resgatar em Nina a mãe que ela desejava ter sido, bem como a filha que ela não foi.

Outro elemento a ser destacado é a linguagem. A narrativa é crua e visceral, sempre contundente e melancólica. O texto é claro, envolvente, cadenciado. O discurso de Leda é fragmentado e repleto de digressões e rememorações. O tempo todo ela parece pesar e medir as pessoas ao seu redor, ao mesmo tempo que é pesada e medida por si mesma.

Com personagens memoráveis, falas emblemáticas e certa dose de reviravoltas, A filha perdida é uma leitura aguda, que nos prende e absorve até a última página. E nos faz querer voltar ao início para ler tudo de novo.


Ficha Técnica

A filha perdida

Elena Ferrante

 R$ 31,92 até R$ 37,10

ISBN-13: 9788551000328

ISBN-10: 8551000322

Ano: 2016 

Páginas: 176

Idioma: português

Editora: Intrínseca


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-filha-perdida-613339ed613826.html

segunda-feira, março 21, 2022

A alma perdida e a solidão de si


Imagine que você tem uma vida boa. Bom emprego, bons amigos, saúde e prosperidade. Porém, falta-lhe alguma coisa. Você não sabe o que é, mas por vezes o dia parece desbotado e nada, coisa nenhuma, anima você. Talvez seu problema seja a alma perdida.

Assim se desdobra o livro de Olga Tokarczuk e Joanna Concejo, com tradução de Gabriel Borowski. Na verdade, não é bem assim. O livro tem início com imagens denotando um enorme silêncio. A obra nos convida a silenciar, a estar em um lugar de total atenção e escuta. E assim somos apresentados aos belos e significativos desenhos de Joanna Concejo. Vemos pessoas em parques caminhando no inverno. Sempre agasalhadas, essas pessoas estão em um mundo em tom de sépia, quase a dizer, em sussurros, que algo falta ali.

Então as patentes palavras de Olga Tokarczuk chegam e nos arrebatam para retomar a história que começou em silêncios. Somos apresentados a um homem que perdeu sua alma e está disposto a recuperá-la. 

As palavras de Tokarczuk são precisas. O texto nos envolve nesse dilema que é viver sem alma. e como que nos lança a pergunta tácita: será que, assim como o homem da alma perdida, nós também perdemos as nossas?

Os desenhos de Joanna Concejo são um espetáculo. Com requinte e sensibilidade vão nos contando essa e muitas outras histórias, vão nos encantando e comovendo. Isto é, se não estivermos como o desafortunado protagonista da história.

A múltipla narrativa de Tokarczuk e Concejo nos introduz a várias perguntas. E a que eu mais me fiz foi esta: É possível estar sozinho de si? E caso seja possível, talvez essa se torne a maior das solidões.

No final, sozinhos viemos ao mundo e sozinhos partiremos. Não seria melhor então sermos nossos melhores amigos? Fica o convite a refletir, ler o livro e, é claro, escutar sua própria alma.


Descrição da capa: Em fundo bege, cadeira meio de costas e meio de perfil esquerdo. No encosto da cadeira, um casaco marrom escuro. Sobre a cadeira uma planta com longos e finos braços, folhas largas em formato de coração. Ao lado esquerdo da cadeira, uma mala de mão cinza. Sob a cadeira um tapete listrado de cores amarela, preta e vermelha.


Ficha Técnica

A alma perdida

Olga Tokarczuk, Joanna Concejo

Tradução de Gabriel Borowski

ISBN-13: 9786556920641

ISBN-10: 6556920649

Ano: 2020 

Páginas: 48

Editora: Todavia

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-alma-perdida-11644067ed11661629.html


sexta-feira, novembro 12, 2021

Coraline - Uma passagem para a maturidade


Coraline é uma menina diferente. Movida por uma insaciável curiosidade, ela passa o verão inteiro explorando os arredores da casa em que mora. A própria residência tem suas peculiaridades. Trata-se de um casarão dividido em 4 apartamentos. Um deles está vazio, sendo justamente ao lado daquele em que a menina mora.

A curiosidade de Coraline a impulsiona a longos passeios pelos arredores. Até que um dia chuvoso faz com que a menina perceba uma porta que dá para uma parede de tijolos. A curiosidade por saber o que haveria além daquela parede guia a menina a um outro mundo, onde a comida é mais saborosa, os pais são mais presentes e os vizinhos, muito mais interessantes.

Alguma coisa, porém, mostra a Coraline que aquele mundo ideal não é seguro. Todas as pessoas que lá habitam têm botões pretos no lugar dos olhos. Um detalhe, no mínimo, assustador. 

Coraline pode ser considerado um romance de terror voltado para jovens leitores. Narrado na perspectiva da protagonista, o livro traz muitos dos dilemas da infância, principalmente o abismo entre crianças e adultos, a incompreensão, a tirania e o isolamento a que adultos acabam por relegar as crianças.

A protagonista é intrépida e inventiva. Porém, o texto sempre nos lembra que ela é mais baixa, inclusive para a idade, e também mais fraca. Assim, ela precisa enfrentar desafios muito maiores e mais perigosos do que seria de se esperar para crianças de sua idade.

Para compensar o terror e o perigo a que o ambiente do romance nos envolve, há uma narrativa fabulosa, divertida e aconchegante. É como se estivéssemos o tempo todo segurando a mão de Coraline, para lhe dar coragem, mas também para sermos reconfortados por ela em nossos medos. É preciso mencionar também os inusitados aliados que surgem ao longo da trama.

Por fim, a primorosa ilustração de Chris Riddel nos envolve ainda mais no clima do romance. 

Com uma narrativa envolvente, num ambiente salpicado de sustos e sobressaltos, Coraline é uma elaborada fábula sobre quão assustador é crescer. Assustador, sim, mas necessário.


Ficha Técnica 

Coraline

Neil Gaiman 

Desenhos de Chris Riddel

ISBN-13: 9788551006757

ISBN-10: 8551006754

Ano: 2020 

Páginas: 224

Idioma: português

Editora: Intrínseca

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/coraline-218759ed1193129.html

sexta-feira, agosto 20, 2021

Palestra cênica "Para abrir uma janela" - uma paisagem de encantos e dores das mais belas


No último domingo, assisti a palestra cênica Para abrir uma janela, realizada dentro da programação do 4º FLI-BH. O responsável pelo espetáculo foi o ator Odilon Esteves, que por duas horas guiou nossos olhos, deixando-nos emocionalmente atados à sua presença, que tela nenhuma é capaz de diminuir.

Odilon Esteves esteve sozinho em cena, que se constituía em uma sala de apartamento, com alguns objetos que dialogavam com os textos que seriam apresentados, bem como uma pilha de livros, de onde os textos foram selecionados. Deu-se então início a uma experiência estética de voz, corpo e alguns objetos. Um exercício de escuta e deslumbramento.

Partindo da simpatia e carisma do artista, que nos envolve e fascina, até a escolha dos textos, que nos implodem. Odilon Esteves guiou com maestria sua fala, passeando pela poesia e pela prosa com graça e muita presença. Interagiu com o público nas escolhas dos textos que interpretou de forma ardente e apaixonada. foi o melhor e mais poderoso espetáculo do qual participei neste ano. Uma janela de encantos e dores das mais belas.

Faço um destaque para os textos "Porque escrevo 1", do Eduardo Galeano e "Nininha", do Guimarães Rosa, que simplesmente me destruíram!

O que mais poderia dizer do espetáculo Para abrir uma janela? Posso mais uma vez me apegar ao talento e no carisma do artista. E também falar da diversidade literária das obras abordadas, que envolveram poesia e prosa da mais fina sensibilidade. Poetas de diferentes continentes, histórias e palavras cuidadosamente trabalhadas em sua matéria e também na performance. E por fim, é importante destacar que Odilon foi como protagonista e ao mesmo tempo anfitrião, pois a maior estrela da noite foi a Palavra.


ESPETÁCULO – PARA ABRIR UMA JANELA- PALESTRA CÊNICA

com Odilon Esteves

Evento online

15 de agosto de 2021, 19h30-21h

(Descrição da imagem: Fundo azul. À esquerda, árvore de tronco grosso com livros pendurados nos galhos. Sentada no tronco, com uma perna encolhida e outra esticada está uma mulher negra de cabelos volumosos e óculos com um livro vermelho aberto. Acima, em quadro azul, a palavra "ESPETÁCULO". Fora do quadro o título "Para abrir uma janela - palestra cênica". Entre o quadro azul e a mulher está uma faixa vermelha com a data "15 de agosto, domingo", um quadro vermelho com a hora "19h30" e um retângulo cinza com a indicação "classificação livre". A imagem da acessibilidade em Libras vem em seguida. Abaixo, à direita, as logos do Instituto Periférico, a Fundação Municipal de Cultura, da Secretaria Municipal de Cultura e da Prefeitura de Belo Horizonte.)

sexta-feira, julho 09, 2021

Os 77 Melhores Contos de Grimm - Um voo pela fantasia


É inegável a contribuição que os irmãos Wilhelm e Jacob Grimm deram para o universo da literatura infantil. Com sua obra da extensão de toda uma vida, os dois pesquisadores da tradição oral recolheram diversas preciosidades da oralidade. O resultado de seu trabalho reverbera até hoje. Estando em domínio público, as narrativas contam com inúmeros recontos e adaptações, além de seleções e coleções diversas. Um desses projetos de seleção de contos é a bela obra em dois volumes Os 77 Melhores Contos de Grimm

Trata-se de uma seleção interessante e bem diversificada. São narrativas que falam de sorte, pureza e reviravoltas aventureiras. As abordagens e enredos variam, em algumas, temos a heroína injustiçada que ao final encontra o seu par no príncipe do reino. Outras mostram heróis que partem em busca do destino. Há inclusive aquelas dedicadas aos heróis simples mas bondosos, que acabam sendo agraciados pela sorte. 

Atravessar esse panorama tão diverso de narrativas foi uma jornada prazerosa. Senti falta, porém, de "A Madrinha Morte". Reconheci, contudo, diversos contos, que já havia lido. O reconhecimento é sempre bem-vindo, pois nele há um quê de pertencimento. Quando reconhecemos um conto, é como se reencontrássemos uma migo querido.

Sendo assim, a seleção de Os 77 Melhores Contos de Grimm acaba por trazer uma questão fundamental no universo da leitura e da literatura: a subjetividade. A qualidade de "melhor" para cada um desses 77 contos foi concedida por uma pessoa. Sendo assim, cada uma e cada um de nós pode também decidir e criar sua lista das "melhores histórias". Com isso, a pessoa terá consigo seus contos favoritos, aqueles que elegeu, contribuindo também para o legado dos Grimm com um olhar pessoal e muito próprio.

Esta minha reflexão, contudo, não expressa um incômodo, mas um fato. Sempre temos a liberdade de escolhermos as narrativas que mais nos tocam, que mais conversam conosco. Isso sem, contudo, deixar de aproveitar as escolhas de repertório que as outras pessoas tiveram. Conhecer Os 77 Melhores Contos de Grimm foi uma forma de entender essa maravilhosa obra dos irmãos Grimm por uma lente específica, o que me fez perceber narrativas que talvez ficariam perdidas, não fosse o trabalho dessa primorosa edição da Nova Fronteira.

Com histórias maravilhosas, narrativas humorísticas e contos de exemplo, Os 77 Melhores Contos de Grimm é um rasante maravilhoso por através do trabalho magnífico dos Grimm. É antes de tudo uma homenagem aos dois pesquisadores e um presente a nós, leitores.


Ps: um agradecimento eterno à Áurea Lana Leite, que compartilhou comigo este magnífico trabalho. 


Ficha Técnica:

Os 77 Melhores Contos de Grimm

Irmãos Grimm

Tradução de Íside M. Bonini

Ilustrações de Ramirez

Introdução e organização de Luciana Sandroni

ISBN-13: 9786556400815

ISBN-10: 6556400815

Ano: 2018 

Páginas: 640

Idioma: português

Editora: Nova Fronteira

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/os-77-melhores-contos-de-grimm-793913ed11682267.html

sexta-feira, junho 18, 2021

Ouvindo: A menina que roubava livros - Markus Zuzak


Desde Esperando Bojangles, eu fui cooptado para o universo dos audiolivros. Tem sido uma experiência mágica. Viajei pelo Oriente com As Mil e uma Noites, fui a um porão suíço em O Aquário e conheci relatos de experiências transcendentais em A Profecia Celestina e A Décima Profecia. Agora, estou retornando à Alemanha Nazista nessa jornada de infância, amizade, sacrifício e Morte. Este é o meu reencontro de mais de dez anos depois com A menina que roubava livros.


Ficha Técnica 

A Menina que Roubava Livros

Markus Zusak

 Nenhuma oferta encontrada

ISBN-13: 9788580574517

ISBN-10: 858057451X

Ano: 2013 

Páginas: 480

Idioma: português

Editora: Intrínseca

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-menina-que-roubava-livros-7ed410101.html

segunda-feira, junho 14, 2021

Lendo: O livro dos abraços - Eduardo Galeano

 


Finalmente eu me lancei na aventura que é percorrer as narrativas geralmente curtas que dão vida a este livro. Esse percurso é delicioso, divertido e também incômodo. É uma forma de me sentir um pouco mais latino. Sim  sou latino. E Galeano consegue magistralmente transmitir esse sentimento.


Ficha Técnica 

O livro dos abraços 

Eduardo Galeano 

ISBN-13: 9788525414885

ISBN-10: 8525414883

Ano: 2016 

Páginas: 272

Idioma: português

Editora: L&PM

sexta-feira, maio 07, 2021

Finalmente, o leite - A história da história num mirabolante jogo


Ninguém pode negar a inventividade do escritor britânico Neil Gaiman. Famoso pela obra em quadrinhos Sandman, que repaginou um herói esquecido, Gaiman há muito tempo já escrevia, sendo um autor premiado de diversos contos, bem como de romances aclamados, como Os Filhos de AnansiDeuses Americanos e Coraline, entre muitos outros.

Quando Finalmente, o leite caiu em minhas mãos, fiquei muito animado para ler. Afinal, sou admirador dos trabalhos de Gaiman, em especial sua obra literária. Sendo assim, quando a Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH recebeu um exemplar doado pela Letícia Pimenta, criadora do Clube do Livro BH, fiquei muito animado para ler.

Confesso que é de longe o menos interessante que eu li, de todos o de Gaiman. O pai "inventa" uma  história mirabolante e nonsense para justificar a demora em retornar do mercado para os filhos (uma menina e um menino) colocarem no cereal durante o café da manhã.

Existem duas grandes piadas no livro. A primeira é sobre o tempo, havendo paradoxos temporais e viagens no tempo que os provocam. A segunda(que deveria ter sido a primeira) é a metanarrativa. O livro tem um primeiro narrador (o filho), que escuta do pai a aventura. Sendo assim, estamos lendo a narrativa da narrativa, com o acréscimo da interlocução da irmã, que faz brevíssimos comentários ao longo do desenrolar da história.

Dessa forma, o livro é um enorme faz-de-conta, ao mesmo tempo que é um conta-e-faz, em um emaranhado de ideias mirabolantemente ridículas de um pai meio picareta que só sai para comprar o leite dos filhos porque de fato ele quer um pouco dele para o seu chá. O livro conta com piratas, dinossauros, alienígenas, além de outros perigos. Todos esses perigos sendo um prato cheio para crianças.

Com muito humor e doses cavalares de falta de noção, Finalmente, o leite é mais uma das provas da enorme - e ao que parece - inesgotável criatividade de Neil Gaiman. Além de ser uma excelente dica para crianças interessadas em tudo que uma criança pode se interessar. E um pouquinho mais.


Ficha Técnica

Felizmente, o Leite

Neil Gaiman

Desenhos de Skottie Young

ISBN-13: 9788579802591

ISBN-10: 8579802598

Ano: 2016 

Páginas: 128

Idioma: português

Editora: Rocco Jovens Leitores

Perfil do livro no Skoob: 

sexta-feira, abril 02, 2021

A Rainha da Neve - Histórias grandes e pequenas sobre amor e ternura


Uma menina que vai até o ponto mais gelado do mundo para salvar seu amigo de infância. Um casal apaixonado cuja história é recontada e revivida a partir de um sabugueiro. Uma gola que passa a se achar muito importante, só porque foi aparada por uma tesoura. Estes são alguns dos contos que fazem parte da coletânea A Rainha da Neve, o segundo volume de uma coleção da Livraria do Globo (que um dia iria se tornar Editora Globo).

A Rainha da Neve pega emprestado o título do primeiro conto deste volume. Dá para perceber o caráter fantástico dos contos, embora haja narrativas carregadas de um caráter de crítica social. Em A Rainha da Neve nós podemos perceber um tom esperançoso, luminoso nos contos que compõem este volume. Há também um tom de humor prosaico, ingênuo, em muitas das narrativas.

Neste volume, há alguns dos mais famosos contos de Andersen. Entre eles, "Os cisnes selvagens", que inspirou meu livro Patos Selvagens, "A pequena vendedora de fósforos", que nele recebe o título "A menina dos fósforos", "O soldadinho de chumbo" e finalmente "O rouxinol". É importante destacar também a primorosa ilustração desta obra. Os desenhos, lindamente feitos por Roswitha Wingen-Bitterlich acabam por conferir o tom mágico e maravilhoso ao conjunto da obra.
 

Ninguém pode negar a importância de Hans Christian Andersen para a literatura infantil mundial. Tanto que seu aniversário, dia 2 de abril, marca justamente a celebração internacional do livro infantil. Andersen, em seus contos, mostra profunda sensibilidade e imaginação. Outro ponto a se observar em muitas das obras de Andersen é o protagonismo feminino. Porém, muitas vezes estas protagonistas acabam por ser obrigadas a grandes sacrifícios e provações. Muitas delas fatais.

Aproveito para destacar que o motivo que me levou a escolher o segundo volume para começar a ler esta coleção foi puramente afetivo. Tenho uma memória antiga de um conto de minha tia Evelyn Medina, inspirado justamente no conto "A Rainha da Neve". Fui descobrir essa relação muitos anos depois. Porém, a imagem do espelho se estilhaçando e um pequeno fragmento entrando no coração de um menino foi forte o suficiente habitar minha imaginação por longos anos. Como muitas de minhas leituras, devo à Tia Beve a busca incessante de uma imagem descoberta em minha infância, finalmente encontrada por entre as páginas amarelecidas do livro A Rainha da Neve.

Feliz Dia Internacional do Livro Infantil.


Ficha Técnica

A Rainha da Neve

Hans Christian Andersen

Ilustrações de Roswitha Wingen-Bitterlich

Tradução de Pepita de Leão

Ano: 1959 

Páginas: 319

Idioma: português

Editora: Editora Globo


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-rainha-da-neve-75132ed437388.html

sexta-feira, março 05, 2021

O Aquário - O cárcere da loucura


 
Como o confinamento forçado pode afetar nossa mente? Esse impacto pode variar, de acordo com o nosso grau de conformidade? Diante de uma situação em que a nossa liberdade é suprimida, devemos nos conformar ou buscar uma saída? 

O Aquário, de Cornélia de Preux, conta a insólita experiência de uma família que acaba confinada em seu porão durante as férias. Constantin, o pai, havia declarado aos vizinhos que levaria a família para uma viagem às Ilhas Fiji. Sem dinheiro para manter a palavra, porém, ele acaba se trancando com a esposa e os três filhos no porão durante o período programado para a viagem.

Tem início então uma trama repleta de tensão. Tatiana, a mulher de Constantin, era a única que sabia do plano doentio do marido. Sem forças para enfrentá-lo, porém, ela acaba deixando que ele concretize o projeto. Os filhos, pegos de surpresa, haviam sonhado por meses com a paradisíaca viagem. Traídos, eles são transportados ao porão enquanto dormiam e acabam tendo que se resignar a uma prisão rígida, com uma programação inflexível, vítimas dos caprichos loucos de um pai que, da noite para o dia, torna-se seu carcereiro.

Não bastasse a decepção da viagem frustrada, as três crianças, Kevin, Violet e Vladmir, precisam participar de módulos em que terão que fingir estarem em Fiji, pois deverão manter a mentira após as férias. Pelo menos é isso que Constantin quer.

É interessante observar que a trama de Cornélia de Preux busca explorar o labirinto psíquico de Constantin e Tatiana, em especial desta. Durante a leitura, somos mergulhados no emaranhado de questionamentos e temores da mulher. De Constantin, experimentamos a insanidade e os sentimentos tenebrosos que cultiva contra Kevin, o filho mais velho, maior opositor ao projeto do pai.

O Aquário é uma obra-prima que acaba vindo de encontro ao tempo em que estamos. Forçados a um confinamento, vítimas de uma ameaça invisível, somos obrigados a criar estratégias de sobrevivência, buscando válvulas de escape para manter a nossa saúde emocional. Felizmente, contamos com momentos de fugidia liberdade, ao contrário das infelizes vítimas do romance de Cornélia de Preux. 


Deixo aqui meus agradecimentos ao José Vicente, coordenador do grupo de leitura coletiva Amigos Pra Valer, bem como para Maria Isabel Brant e Maurício Moura.

*Errata em 11/03/2021: Não havia agradecido à minha grande amiga, Kátia Mourão. Foi através dela que conheci esse grupo que tem me levado a outras sendas da leitura literária.


Ficha Técnica:


O Aquário

edição bilíngue

Tradução de Reto Melchior e Maurício Moura

Cornélia de Preux

ISBN-13: 9788569789062

ISBN-10: 8569789068

Ano: 2019 / Páginas: 248

Idioma: português

Editora: LF Publicações 


Perfil do Livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-aquario-11819567ed11819932.html

sexta-feira, fevereiro 05, 2021

O guia do mochileiro das galáxias - humor e criatividade na dose de uma dinamite pangalática


NÃO ENTRE EM PÂNICO. Acredito que essa frase é muito útil em inúmeras situações. Seja em momentos em que a gente descobre que perdeu as chaves de casa em uma sexta-feira depois daquela saideira do bar. Ou então ao descobrir que não viu aquele e-mail do chefe, enviado uma semana antes, mandando fazer aquela tarefa "pra ontem". Ou até mesmo em casos de inevitável demolição de um planeta para a construção de uma via expressa hiperespacial.

Essa é a frase de ordem estampada na capa do mais famoso e prestigiado guia de viagens do universo, O guia do mochileiro das galáxias. Não é por nada que ele também empresta o nome a um dos livros mais inventivos de nossos tempos. Escrito por Douglas Adams, o livro dá início a uma saga de cinco volumes narrando as desventurosas aventuras do inglês Arthur Dent, seu "parça" Ford Prefect, o mais humano dos alienígenas, dentre outras excêntricas personagens. Uma delas é Marvin, o robô maníaco-depressivo. Outra é Tricia Mcmillan, ou Trillian, a ousada astrofísica e companheira Zaphod Beeblebrox, um bon vivant totalmente caótico que, após alcançar o cargo de presidente da galáxia, orquestra um dos maiores roubos da história do universo.

Com tudo o que já foi dito, é possível ter uma leve ideia do que encontrar em O guia do mochileiro das galáxias. Antes de tudo, trata-se de uma narrativa repleta daquele humor crítico em que o mundo da ficção científica funciona como uma alegoria da contemporaneidade. Douglas Adams utiliza-se de conceitos complexos da astrofísica, da filosofia e até mesmo da literatura para tecer suas refinadas e deliciosas críticas.

Outro ponto interessante na narrativa é que Arthur Dent, improvável protagonista, surge para negar a jornada do herói. Como uma espécie de "Ulisses de araque", ele passa a maior parte do tempo sem fazer a mínima ideia do que está acontecendo. Claro, sua reação poderia ser proveniente do choque de ter o seu planeta natal transformado em vapor. Porém, muitos anos-luz serão percorridos até que o impossível herói dessa saga espacial terá o mínimo de noção do que está acontecendo e qual o seu papel no universo.

Não é preciso falar muito para atestar a maestria de Douglas Adams ao conceber sua "Odisseia Galáctica". O trabalho magnífico desse grande escritor é mundialmente conhecido. Porém, é sempre bom reafirmar a importância de um clássico como esse. Afinal, nele está contido um dos maiores mandamentos do Universo: NÃO ENTRE EM PÂNICO.


Ficha Técnica

O guia do mochileiro das galáxias

Douglas Adams

ISBN: 9788599296943

Editora: Sextante

Ano: 2010

Páginas: 156


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-guia-do-mochileiro-das-galaxias-225ed344547.html

sexta-feira, janeiro 29, 2021

Ualalapi - O estertor de um império


Por vezes, esquecemos que  não somos os únicos que falam uma língua imposta por um invasor europeu. A nossa língua materna, aquela que nós brasileiros usamos com orgulho e muito ciúme, veio do outro lado do Atlântico, junto com espada, chumbo, pólvora, chicote e muito sangue.

Como já disse, não somos os únicos detentores dessa ambígua "herança". No percurso de invasão ao que futuramente se chamaria "Américas" e "Brasil", os emissários do reino de Portugal traçaram uma rota de muita violência. E deixaram feridas que supuram até nossos dias.

Ualalapi, do moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, é um romance nada convencional. Desprovido de um protagonista, o enredo parte da perspectiva do guerreiro que empresta o nome ao livro. Ele recebe a ordem de Ngungunhane, último imperador de Gaza, para matar o príncipe Mafemane. 

A partir desse relato, uma sequência de fragmentos contam uma história impossível de ser narrada, justamente por seu caráter frágil, múltiplo e irregular. Essa história conta sobre o Império de Gaza, que ocupava a região que hoje conhecemos como Moçambique. E da ruína desse império surge uma colônia que até 1975 estava sob o domínio de Portugal. 

Ualalapi é um livro difícil, principalmente pelas sombras e abismos que revela. No livro, um mundo de espíritos ancestrais sofre uma inevitável dissolução. Seja por conflitos internos ou externos, é possível observar que o tom é de constante perda. Não apenas pelo enredo irregular, mas principalmente pelas violências perpetradas.

A oralidade é outro elemento marcante do texto de Ungulani. Os frequentes discursos, bem como os diálogos, carregam constantes marcações coloquiais. Em dado momento, é levantada a questão do uso do Português, língua imposta a uma população falante de diversas outras línguas. Em um tom de amargura, o texto questiona os valores ocidentais.

Com sua narrativa múltipla, seu tom de amargurado testemunho e sua composição fragmentária, Ualalapi é um verdadeiro épico, uma epopeia daqueles que, embora derrotados e mortos, continuam até nossos dias a bradar seus protestos por alguma justiça. 


Ficha Técnica 

Ualalapi

Ungulani Ba Ka Khosa

ISBN-13: 9788561191924

ISBN-10: 8561191929

Ano: 2013 

Páginas: 125

Idioma: português

Editora: Nandyala


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/ualalapi-59182ed65221.html