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quinta-feira, outubro 03, 2024

Lançamentos do livro "Achei que você fosse o outro"



Faz tempo que tentava publicar um livro com o Rodrigo Teixeira. Escritor nato, talentoso e genial, Rodrigo mantinha um blog chamado "Bom Dia, Mudo Cruel!" que eu frequentava assiduamente. Esse blog, porém, foi descontinuado, embora permaneça online, com os textos do Rodrigo na nuvem. Recomendo muito o acesso. 

Enfim, desde que eu publiquei a primeira vez, há onze anos, sentia que era uma injustiça não ver os textos do Rodrigo impressos em papel, organizados em livro. Desde que nos conhecemos e nos aproximamos, surgiu a ideia da publicação conjunta. À época, havia uma terceira pessoa nesse projeto, mas a tríade não se sustentou. Ficamos apenas nós dois. E assim, entrava ano, saía ano e nada da gente publicar. 

Os textos foram organizados e reorganizados, revisitados várias vezes. Exigente, Rodrigo confessava que, a cada revisão, retirava um texto. Exasperado, instei que a gente publicasse logo, com medo de no final sobrarem somente os meus textos. Assim, fechamos uma versão final do livro conjunto.

Havia agora um outro desafio: Qual título dar para a obra híbrida? Deveria ser algo que representasse nossa amizade e parceria. Como sempre, Rodrigo teve uma sacada genial, retirando sua ideia de um incidente pitoresco. 

O ano era 2019. O local, o Centro Cultural Usina de Cultura, no bairro Ipiranga, em Belo Horizonte. Eu havia comparecido ao evento pela manhã, cumprimentado todos, curtido a programação. Rodrigo estava escalado para uma roda de conversa às 16h e chegou já no período da tarde. O problema é que ninguém o cumprimentava. As pessoas passavam por ele e o ignoravam. 

Ele começou a ficar preocupado. Já se perguntava o que estaria acontecendo quando o poeta e multiartista Dione Machado passou por ele, parou, voltou e disse: "Ué, achei que você fosse o outro!" Rodrigo então entendeu. As pessoas já haviam me cumprimentado pela manhã e, como é costume nos confundirem, achavam que eu e ele fôssemos a mesma pessoa. 

Isso é mais comum do que as pessoas que não nos conhecem podem pensar. Trabalhamos juntos no mesmo lugar, a Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte. Em diversos momentos tem gente trocando nossos nomes ou perguntando se somos irmãos. 

Ao se lembrar do incidente, Rodrigo chegou ao nome do livro: Achei que você fosse o outro. Contratamos o serviço do Selo Editorial Starling para a produção e impressão. Como podem constatar, resultado ficou lindo. 

Fizemos dois lançamentos. O primeiro foi conjunto, na Biblioteca onde trabalhamos. Foi em um sábado, dia 6 de julho de 2024. O segundo foi no Sarau do Coletivoz, numa quarta-feira, dia 10 de julho no The Wall Pub, em Contagem. Tivemos a presença do Coletivo Simples e também de representantes do Movimento Arte Contra a Barbárie. Já  terceiro e "oficial" foi no bar O Boêmio. Um momento de muita alegria e pertencimento. Além de muita cerveja! Pudemos nos três eventos encontrar amigos que nos apoiaram de forma tão presente. 

E por fim, fizemos parte de um lançamento conjunto na Sétima Candeia - Mostra Internacional de Narração Artística. Foi lindo, também!

Agradeço imensamente a todo mundo que participou de algum dos lançamentos. Sou grato também a quem não pode ir mas comprou um exemplar com a gente!

Seguem agora algumas fotos para ilustrar esses momentos marcantes em nossa trajetória literária.















quarta-feira, janeiro 17, 2024

Todas as histórias que já contei


Faz algum tempo que eu desejava fazer aqui no blog um registro de todas as histórias que já contei. Algumas delas eu esqueci, confesso. Outras, estão tão vívidas como sempre estiveram, de tanto que eu continuo a contá-las.

O exercício de contar histórias, para mim, é também um movimento de guarda e preservação das mesmas. Ao contar histórias, eu as estou "guardando" pois, como diz Antonio Cicero, "Em cofre não se guarda coisa alguma / Em cofre perde-se a coisa à vista". Sendo assim, ao transmitir essas narrativas e também ao registrá-las aqui, eu contribuo para que elas permaneçam.

Esta será uma lista dinâmica. Ela irá crescer à medida que eu for expandindo meu repertório. Além disso, quero produzir versões em escrito das histórias de tradição oral. A partir desses registros, contando com minhas palavras, pretendo fazer o link do título de cada história com a postagem do registro. 

Conto com as contribuições e comentários de todas as pessoas, para que esta postagem esteja cada vez mais rica, e que este tesouro possa enriquecer também seus repertórios e pesquisas.

1. A mulher sábia;

2. O jovem rei;

3. Uma questão de interpretação;

4. O mordomo fiel;

5. O conto do vigário;

6. Os 3 soldados e a princesa nariguda;

7. Anansi e a busca impossível;

8. As penas do dragão;

9. Chapeuzinho Amarelo;

10. Que bicho será que fez a coisa?

11. O caso do bolinho;

12. Um herói bem diferente;

13. Uma visita inesperada;

14. O carvalho;

15. A Fada Feia e a Bruxa Bela;

16. A viúva piedosa e o ateu impiedoso;

17. O filho mudo do fazendeiro;

18. A quase morte de Zé Malandro;

19. Nasrudin e a Morte;

20. O pássaro, o rato e a linguiça;

21. Nasrudin e o viajante;

22. Nasrudin no poste;

23. Nasrudin e o cavalo;

24. O cavalo de madeira;

25. Uma ideia toda azul;

26. A língua (quem te matou, caveira?);

27. Carne de língua; 

28. O homem sem sorte;

29. O nabo gigante (Grimm);

30. A flauta de osso? (Grimm);

31. Os 3 jacarezinhos;

32. O causo do caçador;

33. O causo da garrucha;

34. O causo da dentadura;

35. O Quibungo;

36. Miserinha;

37. O cheiro do pão;

38. O Bichão;

39. O cameleiro de Bagdá;

40. A última folha verde;

41. A Bruxa Salomé;

42. Lucum a la pistache;

43. Os 3 desejos e a linguiça;

44. O único desejo;

45. Lolô;

46. O pássaro da verdade;

47. A história da coca;

48. A procissão das almas;

49. O lobisomem;

50. O peixe luminoso;

51. Raposa;

52. A promessa do girino;

53. As trapalhadas de Zé Bocoió.

quarta-feira, dezembro 13, 2023

O pássaro da verdade

https://pixabay.com/pt/users/kriemer-932379/

Esta história é contada entre o povo San, que vive no deserto do Kalahari, ao sul da África. Quem a contou para mim foi a Emilie Andrade, na abertura da Sexta Candeia - Mostra Internacional de Narração Artística. Ela por sua vez teve contato com essa narrativa por intermédio de um pesquisador estadunidense chamado Michael Meade.

Dizem que certa vez um caçador, cansado de suas caçadas, sedento e esbaforido, parou às margens de um lago para beber àgua. Enquanto saciava sua sede, viu nos reflexos das águas a figura de um enorme pássaro branco. Ao levantar a cabeça, porém, não viu sinal do pássaro. Apenas o céu azul.

O caçador permaneceu no mesmo lugar o dia inteiro, esquecido de retomar a caçada, olhando para cima, na esperança de novamente ver o pássaro branco. Ao fim do dia, retornou para sua casa.

Uma mudança, porém, se operou no caçador. Ele parecia triste e desanimado. Vivia com os olhos no céu. Não saía mais para caçar. As pessoas perguntavam o que ele teria, ao que nada respondia. Até o dia em que um amigo o interpelou. Ele compartilhou que desde que vira de relance o pássaro branco, nada mais queria a não ser vê-lo novamente. O amigo retrucou que ele provavelmente não havia visto pássaro algum, que tudo não havia passado de um lampejo de raio de sol refletido na superfície do lago. Mas caçador tinha certeza do que havia visto.

Depois de alguns dias, o caçador então tomou uma decisão. Largou definitivamente seu ofício, abandonou o local que nasceu e decidiu partir em busca do pássaro. Por onde ele passava, perguntava se as pessoas tinham avistado a ave. A maioria dizia que nunca a tinha visto. Uns poucos dizia ter ouvido falar.

O tempo passou caçador agora estava velho. Até que chegou em um pequeno vilarejo situado no fundo de um vale. Lá ele ouviu pela primeira vez que sim, esse pássaro existia. Era o grande Pássaro da Verdade e vivia na montanha mais alta, do outro lado do vale. 

Imbuído de uma nova energia, o caçador se dirigiu à montanha e começou a escalá-la. Usou toda a sua força para transpor esse obstáculo. Até que sentiu uma emoção nunca antes sentida. Seu corpo todo se comovia. Era um cansaço impossível. O caçador teve então a certeza de que iria morrer.

E num relance ele sentiu o lufar de asas sobre a sua cabeça. Olhou para cima e nada viu além do céu azul, tão azul quanto naquele dia em que ele vira de relance o vulto do Pássaro da Verdade na superfície das águas do lago, tantos anos atrás. Fraco e cansado, o caçador estendeu a mão. 

Então, lá do alto, planando, cálida e pequena, uma pena branca veio descendo lentamente, uma leve pluma, que pousou na mão estendida do caçador. Ele segurou a pena junto de si e, com um sorriso nos lábios, morreu.

Hoje, após transcrever essa história, eu me sinto um pouco como esse caçador. Sinto-me como alguém que encontrou um dia a Beleza e foi por ela transformado de tal maneira que deseja investir a vida inteira em sua busca. E sem se importar se a busca terá sucesso, estando feliz e realizado apenas com o mínimo sinal de que ela, a Beleza, a Verdade, o Sonho, o Ideal, existe.

domingo, setembro 10, 2023

O Carvalho



Pense em um lugar mágico. Um lugar Encantado. Uma Floresta, cheia de animais, repleta de vida. Dentro dessa Floresta existe uma colina e no alto dela um Carvalho. Nas noites de luar, seres mágicos se reúnem ao pé do Carvalho e dançam, cantam. É possível dizer que o Carvalho parece balançar com o vento no ritmo das cantigas.

Mas o que poucos sabem é que há muitos e muitos séculos essa Floresta foi um deserto. Um lugar inóspito, que separava alguns reinos. Um desses reinos era ocupado por magos, sábios, que criaram uma poção mágica. Com apenas uma gota, essa poção era capaz de fazer brotar uma plantação, um pomar ou mesmo um lindo jardim.

Essa poção despertou a ganância de um impiedoso rei, que reuniu um enorme exército. Este rei atravessou o deserto, invadiu o reino dos magos, destruindo tudo o que tocava e roubando a poção. Afinal, quem a tivesse seria declarado o dono do mundo. 

O rei então retornou pelo mesmo caminho que viera. Quando seu exército estava cruzando o deserto, ele descobriu uma conspiração de seus generais, que queriam roubar a poção e matá-lo. Com apenas um cavalo e poucas provisões, o rei decidiu fugir, para salvar sua vida.

Dias depois, ele se viu sem saída. Seu cavalo estava morto e ele, faminto e andrajoso, estava sobre uma colina, ponderando sobre seus atos. Observou o deserto e ponderou de que havia adiantado tanta ganância se agora ele morreria sem alcançar suas ambições?

Ele então olhou para o frasco em suas mãos onde estava a poção e pensou que, ao bebê-la, conseguiria alguns dias de vida. Então destampou o frasco e bebeu toda a poção.

Sentiu uma nova energia a atravessar seu corpo. Achou que seria capaz de atravessar vários desertos. Mas ao dar o primeiro passo, não conseguiu se mexer. Estava preso ao chão. Seus pés e pernas eram raízes. Seus braços eram galhos. Seus cabelos, folhas. Não era mais um homem, era um Carvalho. 

E o Rei-Carvalho observou por todos os anos a poção fazer efeito também nos vales do deserto, onde inúmeras plantas cresceram e a vida retornou com energia. Nos primeiros anos, ele considerava tudo aquilo como uma punição pela sua loucura e ganância. Mas após séculos de vida naquela floresta encantada, após ser várias vezes surpreendido pela vida, ele passou a acreditar que na verdade havia recebido uma dádiva divina e imerecida, dada a um homem que nunca havia aprendido o que é ter os pés no chão. 

segunda-feira, outubro 03, 2022

História universal da infâmia - uma volta ao mundo pela sua sordidez



Há livros em que o texto nos guia por contos que apresentam personagens infames e pérfidos. Um exemplo é justamente História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges. Os contos são quase crônicas, quase perfis literários dessas personalidades odiosas, todas tendo feitos memoráveis nos diversos continentes da terra.

Borges é um mestre do texto e nos envolve com seu discurso pretensamente neutro. Nessa neutralidade ele apresenta os feitos pavorosos de uma escória que sofre e faz sofrer. Na edição que eu li há um longo ensaio, assinado por regina L Zilberman e Ana Mariza R. Filipouski, e que aborda a questão da origem da infâmia ocorrer por conta da opressão de classes. Ao mesmo tempo, aborda a fascinação que Borges tem pelo romance policial e assim ele aproveitaria o mote do gênero para escrever esses contos. Esse mote seria justamente da origem dos males ser condicionada à opressão das classes mais pobres. Ou seja, haveria um falso engajamento político nessa obra de Borges.

O livro tem ainda dois prefácios redigidos pelo autor, onde ele apresenta seus contos e alega que o motivo de tê-los escrito ser a simples e pura diversão.

Os últimos textos do livro são pequenos excertos redigidos a partir de livros orientais, onde Borges relata casos de magia com reviravoltas surpreendentes. Antes dele há ainda o conto enigmático "O homem da equina rosada", que narra um caso de desafio e morte ocorridos nos pampas argentinos.

O livro é curto e dinâmico, com uma linguagem altamente imagética, visual, a qual bebe claramente no cinema. A ação e a rapidez ditam o tom.

Com uma linguagem hipnótica e cativante, o domínio da literariedade e da ação cênica, Borges nos concede uma experiência ímpar com o livro História universal da infâmia. Um livro que é aula de cinema e literatura.


Ficha técnica

História Universal da Infâmia

Jorge Luis Borges

Tradução de Flávio José Cardoso

ISBN-13: 9788525004956

ISBN-10: 8525004952

Ano: 1989 

Páginas: 77

Idioma: português

Editora: Editora Globo

quarta-feira, setembro 21, 2022

Microconto de Amor e de Morte

Um casal escolhe uma estrela para ser deles. O brilho parece cada vez mais forte. Até o dia em que é tarde demais: A estrela é na verdade um meteoro que destrói a Terra.

18 de agosto de 2018

segunda-feira, janeiro 10, 2022

Ticli, o cosmonauta

https://pixabay.com/pt/users/pencilparker-7519217/



Ticli era uma criaturinha interessante. Habitante do complexo Z, da galáxia de Policleto, Ticli sempre sonhara sair de seu planetinha natal, Golonebe. Felizmente, sua sociedade já era suficientemente avançada para ter propulsores de tempoespaço, de forma que, quando a primeira viagem astral foi anunciada, Ticli foi um dos primeiros a se inscrever como voluntário da primeira missão espacial para fora do sistema interplanetário de Golonebe.

Como todo bom zirguiano, Ticli era extremamente otimista e decidido. Passou em todos os testes, cumpriu todas as exigências, fez todos os cursos necessários. Ao fim do processo seletivo, Ticli estava em primeiro lugar.

Apesar da tecnologia avançada e do uso de propulsores subatômcos, a tecnlologia espaçotemporal era ainda recente e os riscos, vários. Ticli seria o primeiro a fazer uma viagem tão audaciosa. A nave era minúscula e comportava apenas um tripulante.

A jornada foi inesquecível. Em seu diário de bordo, o pequeno zirguiano registrou as coisas maravilhosas que viu. Seus enormes, redondos e saltados olhos absorviam tudo com um misto de curiosidade e surpresa.

A nave era simples, quase não cabia o próprio Ticli. Em padrões humanos, ela parecia um cogumelo. No topo, a cabine do piloto.

Em Golonebe, há uma majestosa estátua de Ticli com sua nave. Ele é considerado um herói póstumo, pois jamais retornou. Como se adivinhassem os sentimentos do pequeno viajante espacial, os artistas que esculpiram sua estátua imprimiram em seu rosto de pedra o mesmo olhar de maravilhado assombro do aventureiro cósmico.

terça-feira, dezembro 07, 2021

Preparado

"Quando estiver pronto, pode abrir os olhos" - instruiu a voz na meditação guiada.

Foi assim que nunca mais sentiu-se capaz de abrir os olhos.

domingo, dezembro 05, 2021

Os príncipes sapos

Um exército de guerreiros sapos que lutam por um beijo para se tornarem novamente humanos. Infiltram-se em casas de bruxas, enfrentam feras mágicas e dragões, cavalgam lagartos que correm graciosos sobre as águas. O líder é Rabert, o mais galante, garboso e destemido sapo que qualquer brejo já viu!


quinta-feira, outubro 28, 2021

Acerto de Contas

Sérgio recebeu uma inusitada visita em seu consultório. Um sujeito de meia-idade chegou anunciando ser deus. Se bem que ele disse ser aquele com "D" maiúsculo. Porém, por razões políticas, decidi grifá-lo com o "d" minúsculo.

Era um dia quente, daqueles que clamam por chuva. Sérgio praguejava por causa do ar-condicionado quebrado. Foi aí que entrou o homem que se anunciou "deus". Disse que estava lá para acertar uma pendência.

Irritado e incrédulo, Sérgio disse que estava trabalhando e que se não fosse um paciente, que se retirasse. Diante da recusa de seu interlocutor, o dentista correu até a sala externa ao consultório para brigar com a secretária. Como ela deixou um doido daqueles entrar?

Com a negativa da moça, que alegou não ter visto ninguém entrar, Sérgio pensou que estaria enlouquecendo.

Na verdade, "deus" realmente só era visível pra ele. O divino disse que estava lá para punir o dentista. Não por seu ateísmo corrente, sua atual incredulidade obstinada. Não pelo afastamento surgido no fim da juventude, nem pela postura niilista e zombeteira diante da vida. O homem, quando criança, havia caído na risada durante a aula de Ensino Religioso, após um colega fazer piada com o Espírito Santo.

Sérgio bem se lembrava. Tendo crescido em uma família terrivelmente evangélica, passara noites em claro, chorando, com a certeza de que havia sido condenado ao inferno, já que, ao rir de uma blasfêmia contra o "espírito de deus", teria sido cúmplice e não teria perdão.

O dentista abandonou o consultório, sendo seguido por "deus". Tentou evitar o confronto. Afinal, era "deus". O problema foi que o todo-poderoso não saiu de perto de Sérgio, não deixava o pobre homem em paz. E mais ninguém via o cujo. Como um amigo invisível inconveniente, ficava falando e falando, garantindo que só o deixaria em paz se ele o enfrentasse. 

Para dar um fim à tétrica situação, resolveu enfrentar "deus" no braço. A cidade subitamente se esvaziou  Em uma ponte, "deus" o aguardava. O tempo já não clamava, profetizava tempestade. Os dois se embateram no centro da ponte. Brigaram na chuva, durante um temporal que escureceu o mundo.

Sem acreditar, Sérgio conseguiu acertar um bom soco em "deus". Espancou o altíssimo. Arrancou-lhe os dentes na base do soco e viu um arco-íris surgir no céu, enquanto "deus" desaparecia em uma nuvem de contradição.

terça-feira, outubro 12, 2021

O menino trincado

Aquele menino tinha uma rachadura. Não era grande. Quem olhasse de longe, nem notaria. Essa rachadura só poderia ser vista bem de perto.

O menino também não se incomodava. A rachadura estava lá desde que o menino se lembrava. Não sabia qual acidente a teria causado. Foi no futebol? Na aula de educação física? Ou será que foi no recreio, quando brincava de queimada? A verdade era que o menino simplesmente não sabia. Um certo dia, simplesmente notou a tal rachadura.

Quando deu por si, lá estava ela. Uma linha irregular que começava no umbigo e subia pelo peito até o pescoço. Não doía. Nem parecia estar lá. Mas ao tocá-la, era possível senti-la na ponta do dedo, percebendo o desnível na pele.

Acontece que depois que percebeu a rachadura, o menino não conseguiu mais parar de pensar nela. Será que traria algum problema? As outras crianças também seriam trincadas? Teriam rachaduras ao longo do corpo? E se fosse a única criança assim? Seria levada para longe, para ser estudada igual os alienígenas da televisão?

Resolveu esconder essa rachadura. Evitava de todo o jeito tirar a camisa na frente de alguém. Os pais achavam que era simplesmente timidez.

Um menino trincado que cresceu evitando choques e encontrões. Cercado pelo medo de um leve toque pudesse transformar a rachadura em seu peito num monte de estilhaços.

quarta-feira, setembro 01, 2021

Camadas



Meditou tão profundamente que visitou suas memórias com total vivacidade.  Era como se estivesse mesmo lá, revivendo seu passado, sentindo com precisão tudo que antes havia sentido. Ao retornar da meditação, passou a desconfiar. O que experimentava agora era de fato a realidade ou mais uma memória?


sexta-feira, agosto 27, 2021

A ponto de explodir - Um livro em contagem regressiva


Quando li  A ponto de explodir, de Sérgio Fantini, pela primeira vez, foi com um exemplar emprestado pelo autor. Ao terminar, senti uma urgência absurda de ter o meu próprio livro. Perguntei ao Fantini se ele tinha algum para me vender e fiquei desapontado com a negativa.

Anos depois, ele veio me contar da reedição do livro. Imediatamente, implorei para que reservasse o meu. Fui tomado pelo mesmo senso de urgência que me acometeu quando de minha primeira leitura.

Da urgência, fui ao deleite ao ter em mãos o meu exemplar autografado. A capa traduzia o que eu sentira ao ler os contos do livro: a solidão, o desespero, o tédio, a ironia e - por que não - o humor.

Há um tom de galhofa permeando a maioria dos contos. É como se o narrador tirasse uma com a cara de quem está lendo. E ainda esperasse um "obrigado" como resposta. Os contos são agudos como uma faca muito bem amolada e que, ao cortar, dá prazer logo antes da dor e de todo o sangue.

As histórias desveladas em A ponto de explodir são corriqueiras. Narrativas que muito bem podem ter acontecido logo ali - na rua de baixo do bairro. Ou no centro, na parte suja e esquecida da cidade - qualquer grande cidade.

Em A ponto de explodir somos levados a passear pelos olhos e peles de pessoas comuns. E que, de tão comuns, deixam à flor da pele o que há de grotesco e feio nelas, junto com o que há de belo e inocente. Assim é formada a armadilha. Nessas imagens a princípio tão triviais emerge uma escrita que nos atinge na boca do estômago.

Não posso deixar de tachar o livro como uma "bad trip". E daquele tipo que fissura e vicia. Uma deliciosa agonia, um texto forte como um conhaque. E cujo sabor melhora ainda mais com o tempo.

(Descrição da capa: Em fundo amarelado e tons em laranja na parte superior, homem está agachado de perfil esquerdo no alto de um prédio e segura uma maleta. Ao longe estão outros prédios)

Ficha técnica

A ponto de explodir

Sérgio Fantini

ISBN-13: 9788566505290

ISBN-10: 8566505298

Ano: 2013 

Páginas: 138

Idioma: português

Editora: Jovens Escribas

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/a-ponto-de-explodir-86811ed839330.html

segunda-feira, julho 19, 2021

A moça na janela

Imagem de Frank Winkler por Pixabay 

Ele morava sozinho. Uma das janelas do seu apartamento dava para uma casa abandonada.

Uma noite, ele acordou e não conseguiu mais dormir. Foi beber uma água. Enquanto virava o copo na boca, olhava distraidamente pela janela.

Havia uma luz na casa abandonada. Era uma luz fraca, de lamparina, candeeiro. Ele não deu muita importância. Até que a imagem de uma bela moça surgiu na janela. A moça era jovem e tinha uma beleza melancólica. 

No dia seguinte, ao ir para o trabalho, passou em frente à casa. Ela tinha a mesma imagem de decrépito abandono. Achou que havia sonhado.

A insônia continuou. Era sempre no mesmo horário que ele despertava e perdia o sono. Da cozinha, via a moça melancólica. Uma noite, ele percebeu que a moça se despia sob luz da lamparina. Excitado, ele não conseguia tirar os olhos dela.

Quando então a moça virou-se para a janela e fitou o rapaz. Ele estremeceu, enquanto ouviu alguém sussurrar em seu ouvido esquerdo:

- Tá olhando o quê?

sexta-feira, julho 16, 2021

Nós: Uma antologia de literatura indígena - As vozes de todos no silêncio de cada um


Para quem acredita no na ilusão de "povo brasileiro", como se fôssemos uma só nação, certamente sua ideia acolhe um grande equívoco. No início da invasão europeia, a terra que no futuro se tornaria Brasil era formada por várias etnias diferentes, cada uma com sua língua, cultura e valores. Mais de quinhentos anos de massacres não conseguiram, felizmente, calar muitos desses povos, que continuam firmes em sua luta de resistência. E eles continuam a contar suas histórias. E algumas delas estão reunidas no livro Nós.

Nós é uma antologia de contos indígenas. Organizado por Maurício Negro, o livro traz contos que abordam a vida na comunidade, bem como recontos de mitos de origem, sempre primando pelo tratamento literário. Ao final de cada conto, há uma nota sobre o povo representado na narrativa, bem como uma nota da autoria. São 12 pessoas que assinam os contos, que são 10.

As narrativas abordam o amor, a amizade, a morte e a origem Algumas estão situadas em um relativo presente; já outras remontam o tempo mítico, em que humanos, animais e plantas falavam a mesma língua.

Foi bom conhecer tantas diferentes visões de mundo. Até a forma de falar apresenta um tom coloquial que não deixa de ter certa cerimônia, certo tom solene, como se assumisse um ar sagrado para a palavra.

Maurício Negro assina também as ilustrações. Seu traço busca homenagear as feições dos povos originários, sem cair no figurativo, muito menos no caricatural. São desenhos que mostram o propósito do ilustrador de homenagear os povos originários.

Com o texto de quarta capa assinado por Daniel Munduruku, Nós é um mergulho no meio de muitas vozes. E tal mergulho deve ser feito com respeito, com oferta de escuta. Como se na voz de todos estivesse guardado o silêncio de cada um.


Nós: Uma antologia de literatura indígena

Vários autores.

Organização de Maurício Negro

ISBN-13: 9788574068640

ISBN-10: 8574068640

Ano: 2019 

Páginas: 128

Idioma: português

Editora: Companhia das Letrinhas


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/nos-918784ed925269.html

quarta-feira, julho 14, 2021

O que é felicidade

Imagem de Free-Photos por Pixabay

O menino tinha um amigão. Era um amigo do peito. Especial. Eles estudavam na mesma escola, na mesma sala. Um dia, a professora deu um dever para a sala. Era para responder: O que é felicidade? O menino ficou aflito. Espremeu a cabeça um montão de vezes, mas a folha continuava em branco. Uma menina já de primeira falou, alegre: "Felicidade é quando minha mãe chega em casa". O menino gostou daquela resposta. Que pena que ele não tinha pensado naquilo.

O amigão chamou o menino para dormir na casa dele. Foi muito legal. Comeram sanduíches, tomaram sorvete, jogaram videogame até tarde. Seria aquilo a felicidade? O menino ficou pensando, antes de dormir.

No dia seguinte, foram tomar café com a família do amigo. O pai do amigo não estava, mas chegou ainda no meio do café da manhã. Ele passou a mão na cabeça do amigo, fazendo um cafuné nos cabelos bagunçados dele. Chamou o amigo de "filhão".

O menino sentiu uma coisa estranha no peito. Um tipo de buraco. Não conseguia se lembrar do seu pai. Nem sabia se tinha pai. Ficou na dúvida, perguntando para si mesmo se ele tinha ou não tinha pai. E se ele não tivesse pai? O que ele teria feito de errado para não merecer um pai?

E foi nessa hora que o menino entendeu. Foi nessa hora que ele descobriu que felicidade era ter um carinho como aquele. Felicidade era ter um pai pra chamar a gente de "filhão".

sexta-feira, julho 02, 2021

O Conto da ilha desconhecida - Sobre um lugar chamado "aqui"


Saramago é um mestre em contar histórias. É muito difícil ficar insensível a essa habilidade do escritor português. Quem já leu um de seus livros sempre fala de como teve sua vida marcada pela leitura. Não seria diferente em O conto da ilha desconhecida.

Nesta narrativa, ele conta de um homem que deseja encontrar uma ilha que ninguém ainda descobriu. Para isso, ele vai ao rei, pedir um barco. Batendo com insistência à porta das petições, ele é atendido por uma mulher, que deve levar sua solicitação, sendo que esta passará por longa cadeia de comando até chegar ao soberano.

Começa assim uma divertida aventura sobre buscas e descobertas. De forma dialógica e perspicaz, a dupla vai se entendendo e também amadurecendo suas ideias sobre tão desafiadora expedição. Nessa narrativa, portanto, tendemos a concluir que a tão desejada ilha desconhecida nada mais é que o próprio coração humano.

Seguido pela mulher que o atendeu à porta, após ter seu pedido garantido pelo rei, o homem parte para o trabalhoso processo de se preparar para tão arriscada empreitada. E vai descobrindo que ir em busca de um sonho não é nada fácil, a ponto de ser um sonho o próprio ato de "buscar o sonho".

Como uma bela e divertida alegoria, cheia de humor e graciosidade, O conto da ilha desconhecida é uma deliciosa narrativa que, ao seu final nos faz de cara sentir saudade da história e pedir por mais.


Ficha Técnica

O conto da ilha desconhecida

José Saramago

ISBN-13: 9789723704242

ISBN-10: 9723704242

Ano: 1997 

Páginas: 64

Idioma: português de Portugal 

Editora: Companhia das Letras


Página do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/livro/1438ED1943

segunda-feira, junho 14, 2021

Lendo: O livro dos abraços - Eduardo Galeano

 


Finalmente eu me lancei na aventura que é percorrer as narrativas geralmente curtas que dão vida a este livro. Esse percurso é delicioso, divertido e também incômodo. É uma forma de me sentir um pouco mais latino. Sim  sou latino. E Galeano consegue magistralmente transmitir esse sentimento.


Ficha Técnica 

O livro dos abraços 

Eduardo Galeano 

ISBN-13: 9788525414885

ISBN-10: 8525414883

Ano: 2016 

Páginas: 272

Idioma: português

Editora: L&PM

segunda-feira, maio 10, 2021

Duas de Nasrudin que o amigo Mário Alves me contou

Imagem de LoggaWiggler por Pixabay 


O Mário Alves é um contador de histórias incrível. Tem uma fala ponderada, equilibrada e carinhosa. Quando ouvimos o Mário, é como se ele nos desse um presente enquanto nos lança um olhar de gratidão.

Há alguns dias, dividi a tela com Pâmela Bastos Machado, minha companheira, e também com o Mário . Fizemos uma oficina dentro da programação do III ECONTHI - Terceiro Encontro de Contadores de Histórias, da Universidade Federal de Lavras.

Enquanto a gente estava nos encontros preparatórios, começamos a trocar histórias sobre o mulá Nasrudin. Mário então contou a seguinte história:

Nasrudin carregava a fama de ter prodigiosa memória. Querendo pregar uma peça no mulá, um certo conhecido, ao encontrá-lo, perguntou:

- Nasrudin, você gosta de ovo?

- Sim - respondeu o mulá.

O conhecido assentiu e seguiu seu caminho. Um ano depois, o sujeito foi à casa de Nasrudin e bateu à porta. Quando o mulá abriu, o homem lançou de chofre a pergunta:

- Como?

- Cozido - respondeu Nasrudin.

Outra história foi contada alguns dias depois da oficina, ao telefone. 

Nasrudin procurou um médico, reclamando que estava sofrendo de um sério problema de memória.

- E quando foi que você começou a perceber esse problema? - perguntou o médico.

- Que problema, doutor?

Adorei ouvir essas deliciosas anedotas. 

quinta-feira, maio 06, 2021

Manhã Encantada e a celebração dos 30 anos da BPIJ


A Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH está com 30 anos. Três décadas de histórias, fantasia, livros, atividades, oficinas. Celebrando esse momento tão marcante, uma série de eventos online vão ocorrer. E eu estarei no próximo sábado, dia 8 de maio, em um desses eventos: Manhã Encantada. Estaremos no mesmo quadrado o Wander Ferreira e o Rodrigo Teixeira. Quem vai abrir a transmissão ao vivo será a Ana Paula Cantagalli, gerente da BPIJ.

Assim, fica o convite para quem quiser celebrar com a gente esse momento. Será às 10h, no canal do YouTube da Fundação Municipal de Cultura.