Blog do escritor e contador de histórias Samuel Medina. Aqui você encontrará resenhas de livros, contos, crônicas, relatos de experiência e poemas. Além de informações sobre meus livros.
segunda-feira, novembro 29, 2021
O Embate - Parte IV de V
sexta-feira, novembro 26, 2021
Água de Barrela - Sangue e dor na luta por um futuro
Quem foram nossos ancestrais? O que fizeram? Como viveram? Se fosse possível traçar nossas árvores genealógicas e resgatar a história de cada pessoa nelas, o que descobriríamos? Encontraríamos atos heroicos ou crimes hediondos? Será que nos arrependeríamos de buscar as histórias dessas pessoas?
O romance Água de barrela talvez tenha surgido de alguma das perguntas acima. Escrito por Eliana Alves Cruz, este romance histórico é um primoroso trabalho de pesquisa histórica e criação literária. De início, não sabia o que era barrela. Posteriormente, soube que é uma mistura feita para alvejar as roupas, usado pelas mulheres escravizadas para lavar as roupas de seus senhores. Após a declaração da abolição, essas mesmas mulheres continuaram nesse trabalho, como se esse fosse o destino inevitável para elas.
O livro me encantou já de início, quando vi árvore genealógica que vai de Ewá (Helena), passando por Anolina, Martha, Damiana, Celina, até chegar à Eliana, a autora desse romance histórico que mostra o Brasil a partir da Bahia e das vidas de uma família marcada pela escravização.
Enquanto lia, meus olhos da mente criavam imagens de um país que se transformou de um império colonial a uma república de fachada, como se os tais valores republicanos nada mais fossem do que a tinta que caia um sepulcro. Afinal, essa democracia tão defendida pelos maiores intelectuais brasileiros não alcançou a grande maioria da população, que continuou vítima da exploração, da violência e do preconceito.
Com o objetivo de ultrapassar as barreiras sociais e alcançar ainda que o mínimo de liberdade e dignidade, uma família recorreu à educação. Apesar disso, foi a duras penas e muita roupa lavada que as matriarcas Martha e Damiana foram mudando os destinos dessa família.
Foi através desse livro que conheci Juliano Moreira, médico, um dos maiores do seu tempo. E negro. também conheci Matheus Cruz, grande mecânico, que até os 83 anos lecionava no Liceu Artes e Ofícios.
Mas esse livro é principalmente sobre mulheres. Sobre Martha e Damiana, que vendendo quitutes e lavando roupas foram buscando um futuro melhor para as filhas. Sobre Dodó, explorada até a morte pelo mesmo clã que no passado escravizou, torturou e estuprou suas ancestrais. É sobre Celina, corajosa professora, capaz de enfrentar o risco do cangaceiro Lampião, sem no entanto esmorecer.
Ao terminar o romance, senti culpa por minha branquitude, pelos privilégios estruturais que carrego na minha pele. Senti tristeza por saber que o país continua matando jovens negros. Senti também uma profunda comoção ao ver a justiça de Xangô, que nos descendentes de Ewá, Anolina, Martha, Damiana e Celina elevou essas heroínas, imortalizando-as nesse livro potente e profundo.
Ficha Técnica
Água de barrela
Eliana Alves Cruz
ISBN-13: 9788592736408
ISBN-10: 8592736404
Ano: 2018
Páginas: 322
Idioma: português
Editora: Malê
Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/agua-de-barrela-743875ed834219.html
quinta-feira, novembro 25, 2021
Obituário
Ontem aqui
Morreu um homem.
Sem referência.
Sem juventude.
Na borda do Centro e
No silêncio das horas
Ele morreu.
Seu corpo
Isolado e sem luto
Como que revelava seu estado
De abandonada humanidade.
Ontem tombou outro
A regurgitar do destino o
Cálice.
BH, 03 de abril de 2018
quarta-feira, novembro 24, 2021
Lágrimas de luz
Imagem de WikimediaImages por Pixabay |
Afinal, a Amazônia tem sido atacada continuamente, queimada, invadida, explorada, rechaçada. O Pantanal, também. Quem sabe as deusas antigas não estariam lançando suas lágrimas incandescentes ao prantear a natureza impiedosamente destruída?
Em uma das tradições indígenas, o raio é manifestação de Tupã. Seriam dos guaranis. Não me lembro. O que me lembro é que os 500 anos de invasões continuam, com os povos originários sendo assassinados, perseguidos e caluniados. Era de se esperar que Tupã revidasse.
terça-feira, novembro 23, 2021
Boa noite
Para S.T.
eu que pensava
que havia laços inquebráveis
negava qualquer
muro ou
precipício
intransponível
Eu que achava
impossível
estar sozinho
de repente
me vi
no pântano
de uma angústia imerecida.
Pois agora
sinto que há
amizades de um só lado.
Revirei minhas memórias
em busca
de uma imagem
que pudesse
ser salva.
Mandarei sempre lembranças
mas de longe.
Também
posso fazer
meu papel
de morto.
Pois assim
mais uma vez
eu me apago.
Sentirei falta
e muita.
O rombo em meu peito
é insondável.
segunda-feira, novembro 22, 2021
O Embate - Parte III de V
Continua...
domingo, novembro 21, 2021
Conluio
O Capetão
andava por uma estrada
e numa encruzilhada
encontrou um
Gonoral
Com ele disse que seria
Presidoente
Declarou
Quem não militar
Agente alicia
ou então
Milícia
sábado, novembro 20, 2021
Concordância
Subindo a rua
Uma multidão
Várias mulheres
E um homem
Não tenho
Problema nenhum
Em dizer
Que eram Elas.
sexta-feira, novembro 19, 2021
Torto arado - Um talho profundo na alma
Assim tem início Torto arado, romance de Itamar Vieira Júnior. Trata-se de um livro forte, pungente, com uma narrativa em primeira pessoa que aproxima o leitor a um nível íntimo com a trama que se desenrola. O livro está dividido em 3 partes, sendo cada uma conduzida por uma narradora diferente. Pelas palavras delas nós vamos conhecendo a dura realidade da família, moradora do da fazenda Água Negra. Nela, várias pessoas vivem em regime análogo à escravidão, trocando trabalho por moradia e um pedaço de terra para cultivar.
Talvez o arranjo pareça razoável. Porém, não é o que acontece. As pessoas são obrigadas a trabalhar de graça nas colheitas dos donos das fazendas, de domingo a domingo, não tendo tempo para cuidar de seus roçados. Para garantir sua subsistência, as esposas e filhos dos lavradores precisam se dedicar ao roçado da família. As casas dos trabalhadores não podem ser construídas com material de alvenaria. A proibição existe para que as construções não durem. Sendo assim, as famílias precisam de tempos em tempos construir casas novas, usando o mesmo barro que cobre o chão. Além desses abusos, de tempos em tempos as famílias são extorquidas pelo gerente da fazenda, que rouba suas produções.
É nesse ambiente que crescem Bibiana e Belonísia. Ambas dividem sua vida através do fio prateado da faca de Donana. O pai delas, Zeca Chapéu Grande, é um grande curador e líder espiritual, que conduz as cerimônias espirituais do Jarê, onde os encantados como Iansã e o Velho Nagô se manifestam. Sua história é dura, árdua, desde o nascimento em pleno canavial até a loucura que o acometeu em sua juventude. Assim vão se desdobrando os dramas, as lutas e as potências dessa família.
No fio da faca de Donana a história é traçada. Esse fio deixa um sulco por onde escorre a água e o sangue. A faca de prata é como um arado a talhar fundo em nós. A agudeza da faca é como a dureza da vida dessas pessoas cujo romance nos faz testemunhas. E não apenas isso. Somos feitos testemunhas e também vítimas. Sendo assim, ninguém sai incólume da leitura desse romance. Ninguém sai ingênuo. Ao fim do romance é impossível ficar alheio a esse Brasil subterrâneo, silenciado e, muitas vezes, amputado.
Vencedor dos prêmios Leya, Jabuti e Oceanos, com sua narrativa poderosa e profunda, Torto arado é um romance desafiador que marca o leitor, deixando sua alma ferida, talhada. Um romance que nos atravessa de ponta a ponta.
Torto arado
Itamar Vieira Junior
ISBN-13: 9786580309313
ISBN-10: 6580309318
Ano: 2019
Páginas: 264
Idioma: português
Editora: Todavia
Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/torto-arado-915037ed921450.html
quinta-feira, novembro 18, 2021
O sumiço
Dez filhos
E um marido desaparecido.
No fogão, panelas vazias
como bocas abertas
da fome.
Sabe que o marido
não fugiu.
Andou falando no trabalho
Sobre direitos
Justiça
Protestos
E só
com essas palavras proibidas
Como mágica
Desapareceu.
quarta-feira, novembro 17, 2021
Qual a minha cara
Certo dia, estava encerrando uma visita escolar lá na Biblioteca. Um menino perguntou qual era mesmo o meu nome. Eu isse bem alto:
- Eu sou Samuel, cara de papel!
No que uma menina retrucou:
- Não é nada! Você é Samuel, cara de barba!
Em outro dia, também numa visita escolar, fiz a mesma brincadeira. Mais tarde, depois da leitura compartilhada, foi o momento das crianças explorarem os livros. Um menino se aproxima e diz: Cara de pau, posso pegar aquele livro ali?
terça-feira, novembro 16, 2021
Lançamento da antologia "Novo Decameron"
Olá a todas e a todos. Hoje trago para vocês uma excelente novidade. O selo Editorial Starling lançará, no próximo dia 18, uma antologia da qual faço parte. A antologia poética Novo Decameron conta com a participação de diversas autorias. São textos literários que buscam refletir sobre o nosso tempo, tão convulso e complexo.
O lançamento será celebrado através de uma transmissão ao vivo pelo canal JARS Consultores no YouTube.
Conto com sua participação!
segunda-feira, novembro 15, 2021
O Embate - Parte II de V
domingo, novembro 14, 2021
Arhur Medina, 40 anos
Quando mais precisei
de um pai,
você foi
minha figura paterna.
Como podia?
Um menino
quase da minha idade
tamanha
responsabilidade?
Mesmo assim,
com muito amor,
você me carregou.
E quando a noite
era mais escura
e o medo
mais profundo,
segurou minha mão
para que eu pudesse
dormir.
29 de junho de 2020
sábado, novembro 13, 2021
Ela
Para Pâmela Bastos Machado
Aquela que
me leva a escutar
que toca meu peito
Mesmo nos momentos mais
Cinzentos
Seu rosto é âncora
Os olhos farol
Sem ao menos perceber
Os gestos dela
As palavras
Ou a simples presença
Devolve ao mundo
Sua cor.
30 de outubro de 2020
sexta-feira, novembro 12, 2021
Coraline - Uma passagem para a maturidade
A curiosidade de Coraline a impulsiona a longos passeios pelos arredores. Até que um dia chuvoso faz com que a menina perceba uma porta que dá para uma parede de tijolos. A curiosidade por saber o que haveria além daquela parede guia a menina a um outro mundo, onde a comida é mais saborosa, os pais são mais presentes e os vizinhos, muito mais interessantes.
Alguma coisa, porém, mostra a Coraline que aquele mundo ideal não é seguro. Todas as pessoas que lá habitam têm botões pretos no lugar dos olhos. Um detalhe, no mínimo, assustador.
Coraline pode ser considerado um romance de terror voltado para jovens leitores. Narrado na perspectiva da protagonista, o livro traz muitos dos dilemas da infância, principalmente o abismo entre crianças e adultos, a incompreensão, a tirania e o isolamento a que adultos acabam por relegar as crianças.
A protagonista é intrépida e inventiva. Porém, o texto sempre nos lembra que ela é mais baixa, inclusive para a idade, e também mais fraca. Assim, ela precisa enfrentar desafios muito maiores e mais perigosos do que seria de se esperar para crianças de sua idade.
Para compensar o terror e o perigo a que o ambiente do romance nos envolve, há uma narrativa fabulosa, divertida e aconchegante. É como se estivéssemos o tempo todo segurando a mão de Coraline, para lhe dar coragem, mas também para sermos reconfortados por ela em nossos medos. É preciso mencionar também os inusitados aliados que surgem ao longo da trama.
Por fim, a primorosa ilustração de Chris Riddel nos envolve ainda mais no clima do romance.
Com uma narrativa envolvente, num ambiente salpicado de sustos e sobressaltos, Coraline é uma elaborada fábula sobre quão assustador é crescer. Assustador, sim, mas necessário.
Ficha Técnica
Coraline
Neil Gaiman
Desenhos de Chris Riddel
ISBN-13: 9788551006757
ISBN-10: 8551006754
Ano: 2020
Páginas: 224
Idioma: português
Editora: Intrínseca
Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/coraline-218759ed1193129.html
quinta-feira, novembro 11, 2021
Para marcar a mudança
Faz tempo que vivia angustiado com o blog. Eu sempre fico angustiado com a escrita e o blog é o principal ponto de escoamento do que escrevo. É minha vitrine para o mundo. Porém, eu sentia - e ainda sinto - que as pessoas não interagem aqui. Apesar de relatórios de acessos e visualizações, a escassez de comentários faz com que este espaço pareça pouco visitado.
Ou às vezes pode acontecer o seguinte: a pessoa novata encontra este espaço mas, por senti-lo pouco amigável, acaba saindo antes de ler qualquer coisa. Ou seja, antes do tão almejado engajamento.
Com isso, tratei de tentar olhar o blog como se fosse um leitor visitante. E percebi alguns problemas. Concluí que o visual era muito carregado. A descrição era comprida e ocupava quase toda a tela. Enfim, percebi que as pessoas precisam gostar muito mesmo do que escrevo para realmente permanecerem por aqui, lendo e comentando.
Assim, decidi dar uma mudada no visual do blog. Isso aconteceu na segunda-feira. Conferi alguns modelos do Blogger e escolhi o que parecia mais intuitivamente amigável pra mim. E eis que chegamos nesta cara nova que ele tem, atualmente. Porém, percebi que mudei o visual e não falei nada, não apresentei essa mudança para as pessoas que leem o blog. Assim, educadamente, peço desculpas. Eis diante de vocês, leitoras e leitores, a nova cara de O Guardião de Histórias.
Agora, chegou a parte mais difícil. O que vocês acharam? Gostaria muito de saber a opinião de cada uma e cada um de vocês. E se por acaso os comentários foram mais saudosistas e lamentosos, farei questão de restaurar o modelo original, ok? E para quem chegou até aqui neste texto deixo a minha gratidão! ^_^
quarta-feira, novembro 10, 2021
Mitologias familiares
Levei da vó Conceição uma colherada na testa, por ter passado correndo na cozinha, enquanto ela fazia o almoço. Doeu um bocado. E na lembrança da dor veio também da sensação do pé descalço nos ladrilhos brancos e frios.
Vó Conceição não era braveza pura. Num dia, sentou-se ao meu lado e cantou de um ribeirão que secou e do alecrim, flor do campo. No sabiá que fugiu da gaiola ela tirou lágrimas de meus olhos.
Não eram apenas as canções que enchiam meus sonhos, mas muitas histórias. Falava da casa mal-assombrada onde pedaços de gente caíam do alto e se juntavam, até formar uma pessoa inteira. Ou da história do Galo Pelado, que assombrava tropeiros nas trilhas de Minas.
- Vó, por que o Tio Vando é careca? - perguntei sobre a calvície do seu filho mais velho.
- Foi quando ele carregou o melado quente no alto da cabeça, vindo da feira. Balançou o pote de melado que caiu na cabeça dele. Mandei ele raspar o melado pra frente, mas ele raspou pra trás.
Nessas e noutras histórias, Vó Conceição me embalava. E assim dava lastro à minha imaginação. Vó Conceição fundou meu mundo de fantasias.
terça-feira, novembro 09, 2021
Capital
Pelos corpos sem vida
nenhum lamento. Apenas
covardia.
Todos
vão morrer
um dia
setencia.
Não é coveiro, mas
carrasco.
Cai sua máscara.
Já defendeu extermínio.
Exaltou tortura.
Com seu histórico de atleta,
bate em quem
pede explicação.
Fazer nada
também mata.
É melhor mesmo
Jair
morrendo.
segunda-feira, novembro 08, 2021
O Embate - Parte I de V
Continua...
domingo, novembro 07, 2021
Uma leitura entre lágrimas
Plena manhã na Biblioteca, duas oficinas realizadas e de repente eu decido me debruçar sobre este livro. Eu estava no balcão de atendimento, mas o trânsito de leitores nesse sábado ameno havia diminuído, depois de um fluxo intenso mais cedo. Tanto que deu pra ler tudo sem interrupções. Ao final da leitura, pensei em tantas crianças deslocadas, refugiadas, traficadas, despejadas, escravizadas, afogadas... E o Mediterrâneo escapou de meus olhos em plena manhã. Foi um choro desamparado, órfão, assim como muitas dessas crianças. Tive que abaixar a cabeça e me esconder atrás do balcão para que ninguém testemunhasse meu pranto. Para que ninguém me pegasse de peito aberto.
Livro: Um outro país para Azzi
Autora: Sarah Garland
Tradução: Érico Assis
Editora: Pulo do Gato
Descrição: Desenho de uma menina com vestido azul e casaco vermelho. Ela olha para trás enquanto corre e segura um urso de pelúcia. Ao fundo, ruínas de prédios.
14 de abril de 2018
Pena de morte
sábado, novembro 06, 2021
Responsáveis
Vocês votaram nele
mesmo depois de ouvirem
que ele pregava o extermínio
e defendia a tortura.
Mesmo quando defendeu
uma ditadura
Ele disse "e daí?"
quando as pessoas começaram a morrer.
E vocês não deixaram de apoiá-lo.
Não se esqueçam:
esse monstro assassino genocida é culpa de
Vocês.
Aperto
A alvorada me pegou desprevenido
Em meio a culpas e medos
Senti o arrepio na espinha
O peso no peito
O aperto na
Garganta.
E o tempo pareceu piche
A envolver meu corpo e
Puxar-me para o fundo.
Madrugada e manhã
Disputaram meu corpo inerte
Mas quem ganhou o direito de devorá-lo
Foi mesmo a
Tristeza.
sexta-feira, novembro 05, 2021
Figura pétrea
Ele era um gigante. Enorme, de pele marrom e pouco cabelo na cabeça. Sempre muito sério, adorava falar em inglês. Conhecia outros idiomas, mas esse era o seu predileto. Diziam que aprendera sozinho, memorizando um dicionário. Achava essa história fabulosa e titânica. Sim, ele era um titã para mim.
Sua voz era grave, meio rouca. Uma voz que lembrava risada de Papai Noel. Além disso, sua voz também era forte, estrondosa. Ao chegar em casa, gritava: "Open the gate!" e nós corríamos para abrir o portão e recebê-lo.
Ele também gostava de gritar com os âncoras do jornal. Sempre que algum deles falava algo que o contrariava, gritava: "Mentira!" Geralmente, tinha razão. Sua revolta era gerada pela hipocrisia que conseguia perceber nas falas de repórteres e entrevistados.
Meu avô nunca chorava e sorria pouco. Era um homem sisudo, sempre sério. Enérgico no que acreditava, muitas vezes chamou minha atenção dizendo que eu deveria aprender a falar inglês e outros idiomas. Sinto demais não tê-lo escutado.
Certo dia, cheguei à casa de meus avós e soube que a irmã do meu avô, chamada Rosa, tinha falecido. Fui até a sala onde meu avô estava. Ele se mantinha sentado em sua poltrona favorita, imóvel, como se fosse feito de pedra. Olhava fixamente para frente, sem dizer uma palavra. Respeitoso, perguntei como ele estava. Meu avô nada disse e eu não insisti.
Foi então que vi escorrer de seu olho esquerdo uma única lágrima. Ele não fez menção de enxugá-la. Deixou-a escorrer livre, até o queixo, onde se perdeu ao pingar na camisa.
Essa única lágrima foi a primeira que vi no rosto de meu avô.