terça-feira, dezembro 28, 2021

O Imundo - Parte IV de IV

Ir para Parte III de IV


Minutos se passaram. Seridath, coberto de suor avermelhado, já estava sem escudo e o punho de algum gigante tominaro havia arrancado seu capacete, quase esfacelando seu crânio. Apesar de tudo, exceto alguns cortes leves, ele estava inteiro. Mas sentia-se estranho. Um punhado de kowas jazia aos seus pés e ele continuava disposto. Na verdade, tinha mais energia do que quando começara a batalha, uma disposição que beirava a excitação. Até estranhou quando, com um jogo de corpo, lançou um dos homens-porco a uma considerável distância. Estava também mais rápido, agia por reflexo, sem pensar, atingindo um pescoço ou uma virilha, perfurando pelas juntas da armadura de algum inimigo ao seu lado, lançando o corpo para trás enquanto desviava-se do poderoso ataque de um punho enorme.
Era o tominaro novamente, um gigante de cinco a seis metros, pele extremamente rígida, que repelia cortes e estocadas. Seridath era constantemente assaltado pelo pensamento de que deveria matar aquele gigante, mas ainda não havia conseguido uma oportunidade de bater-se com ele de maneira adequada. Aquele monstro era forte e resistente, um golpe de reflexo não iria perfurá-lo facilmente.
Mas algo dizia a ele para esquecer os "porcos" e concentrar-se no gigante. Com uma careta, fez Lorguth ser lançada para frente, como um bote de serpente, abrindo a garganta do kowa que o atacava. O oponente tentou segurar o sangramento, mas suas pernas fraquejaram e ele ajoelhou-se, obstinado. Por trás dele, Seridath viu que o gigante o espreitava para um novo ataque. O rapaz correu rumo ao titânico oponente. Escalou o kowa, que já estava morto, mas havia permanecido de joelhos. Antes que o corpanzil tombasse com o seu peso, Seridath apertou o punho da espada com as duas mãos e de um salto lançou-se sobre o peito do gigante. O tominaro olhou com surpresa ante a audácia do jovem. O potente soco errou Seridath por um triz. O rapaz continuou seu trajeto e, empregando toda a sua força em ambas as mãos, enterrou a lâmina bem no olho direito de seu inimigo.
Então aconteceu. Era como sentir seus braços sendo moídos por tanto poder. A dor passou para todo seu corpo, como se o mesmo fosse explodir, ou ser esmagado, ou ambas as coisas no mesmo segundo. Então a dor aliviou, mas permaneceu de forma tênue. Mesmo morrendo, o gigante tentou permanecer de pé, até ceder e tombar pesadamente no chão já coberto de inimigos abatidos.
Com Lorguth ainda presa ao olho do inimigo, Seridath quase não percebeu a oscilação e lenta queda. Deixou-se ficar por algum tempo deitado sobre o tronco do gigante. Estava tão atordoado que também não notou que os inimigos permaneciam ao seu redor, fustigando-o com machados e clavas. Mas sua pele estava rígida demais, os danos eram insignificantes. O rapaz se ergueu lentamente, recuando as lâminas inimigas, chegando a quebrar as hastes de alguns machados. Com um leve movimento de braços, ele atirou para o ar aqueles que o importunavam, fazendo-os voar sobre as cabeças dos outros tominaros, que atropelavam seus próprios aliados para vingar a morte de um de sua raça. "Agora, o povo exilado, o povo do poder" pensou ele. Não sabia quem eram esses, mas seu corpo moveu-se como que por instinto, atravessando o campo de batalha como se estivesse correndo livre na campina. Os inimigos sendo destruídos como se fossem incômodas moitas de mato.
Subitamente, ele deparou-se com uma daquelas criaturas vestidas com seus mantos brancos. "Ah, então esse é um do povo exilado." O ser rapidamente emitiu um "HAH", enquanto um forte feixe de luz partia rumo a Seridath, que bloqueou o ataque com Lorguth. A lâmina chorou, emitindo um forte som agudo e melancólico. Em meio ao espanto e à discreta satisfação de ver a espada sofrer, o rapaz ergueu-se e, fazendo sua tradicional finta para a esquerda, decepou os dois braços do ser antes que ele fizesse um segundo ataque. O seirane gemeu e fez uma hedionda cara de sofrimento. Sua última expressão, pois logo em seguida Seridath enterrou Lorguth na junta de suas costelas. A espada bebeu com satisfação aquela poderosa alma. A criatura explodiu em uma descarga de luz, enquanto mais dor penetrou no corpo de Seridath, desacostumado em receber tanto poder.
Agora, porém, ele sentia algo grandioso permeando seus membros. Os inimigos o rodeavam, mas somente os zumbis insensíveis ainda tentavam, sem sucesso, atingi-lo. Os vivos hesitavam, até mesmo os orgulhosos tominaros mantinham uma temerosa distância. O cavaleiro estendeu a mão esquerda. O poderoso relâmpago surgiu de seus dedos e destroçou os oponentes em seu caminho. Seridath deixou um sorriso leve brotar de seus lábios. "Agora estou pronto. Devo ir em busca daquela alma, Lorguth. Daquela alma que você tanto quer."
Aldreth observava atônito seu amo causar um enorme caos no exército de mortos. Naquela batalha, a confusão imperava. Não havia palavras de comando ou toques de trombeta. O exército de Dhar e a legião maligna engalfinhavam-se como uma só turba convulsa. Gritos de pânico e desespero eram sobrepostos pelos brados de horrendas criaturas. Muitos homens valorosos morriam naquele dia. Homens aleijados arrastavam-se para fora da luta, chorando, pedindo por suas mães, amaldiçoando os deuses. A Companhia ainda conseguia manter sua formação, uma linha cerrada com três camadas de escudos sobrepostos. O exército de Dhar, porém, havia sido reduzido quase à metade e o próprio estandarte do rei oscilava. Mesmo uma vitória seria cara demais para aquele reino. A batalha em frente às campinas de Arnoll seria uma lembrança amarga ao longo dos anos.
Enquanto isso, Seridath acabava de penetrar nos limiares do pavilhão central. Já havia bebido as almas de outros gigantes e meio-gênios. O jovem corrigiu o pensamento. Fora Lorguth quem bebera. Ele somente estava lutando por sua vida, enfrentando seus inimigos, só isso. Enquanto pensava, o jovem agia de forma contrária, estraçalhando quem estivesse à sua frente, fosse através da lâmina amaldiçoada, fosse pelos raios ou pela força bruta. Seus servos permaneciam ao seu lado, enquanto os sessenta bandidos já haviam sido destruídos. Os kowas e tominaros mortos levantaram-se, de forma que as forças de Seridath já tornavam-se uma horda que destruía as entranhas do exército maligno. A cada segundo, o cavaleiro ficava mais surpreso em como os servos eram úteis em batalha. Ágeis, fortes, obstinados, fiéis. Bem, fiéis nem tanto, assim como Lorguth. Mas para tudo há seu jeito.
Seus pensamentos pararam quando ele percebeu algo em sua mente. Olhou ao redor e viu-se em uma nuvem brilhante, de cor carmesim. Era a aura daquela alma que despertava os desejos de Lorguth. Era a própria mente do inimigo, expandida, envolvendo o jovem e sua espada. Seridath sentiu a hostilidade daquele ser. Sim, ele era considerado um incômodo, um inconveniente obstáculo. Mas o rapaz então percebeu outra coisa. Um temor, misto de surpresa e incredulidade. Então era isso. Sentiu satisfação ao saber que começava a ser temido.
De súbito, os mortos-vivos ao seu redor afastaram-se. À sua frente, kowas, tominaros e outros seres também foram recuando, abrindo espaço e formando um corredor. Através dele surgiu um outro ser. Um poder opressivo apertou o coração de Seridath, a ponto dele sentir que iria morrer. Olhou para frente, a forte luz carmesim quase o cegava. O rapaz decidiu voltar à sua visão normal e foi tomado de surpresa. Lá estava ele. Era um homem vestido com uma espécie de toga bem leve. Sua pele era enrugada, como se ele fosse incrivelmente velho, e tinha cabelos bem escassos. Mas não era somente isso. Ele se aproximava com os pés esticados, como se estivesse na ponta dos dedos, mas sem tocar o chão. Segurava uma pesada espada, de lâmina larga e espessa, à altura do peito, deixando-a pousar no ombro direito. Mas o detalhe mais marcante o fato de que aquele ser não tinha olhos, nem pálpebras. Dois redondos buracos escuros ocupavam o lugar dos globos oculares, o rosto de uma caveira ainda coberta com sua pele.
Um pensamento veio forte à mente do cavaleiro, distinto e urgente, como uma súplica infantil. "É ele! O Urd!" Mas não era somente Lorguth que o queria. Seridath desejava a glória de ter destruído o líder daquele exército. O ser olhou do alto, sua boca com uma expressão que beirava o desprezo.
– Desloquei-me do centro de meu pavilhão para dar-te as boas vindas – começou a dizer a criatura – mas então descubro que o ser poderoso a atrasar meu exercício é um simples humano. Tens sorte por carregares essa lâmina, garoto.
– Não sou um garoto, imundo. Não sabes o que eu sou de fato. Mas eu sei quem tu és, Cormorant!
– Ah, que agradável surpresa – o Urd, o Imundo, falou em tom de gracejo –, de fato tens sido por ela informado. De fato, é um privilégio usá-la. Mas saber meu nome não muda a situação, de fato. Tu és fraco para os poderes de Lorguth, larvinha. Não me dirige esse olhar espantado, garoto, pois sabes que é impossível que um ente antigo e poderoso como eu não saiba de Lorguth.
– Sabes então que chegou o dia de teu fim – bradou Seridath, ameaçador, mas em seu peito algo o alertava que havia informações omitidas por Lorguth. O ser soltou uma gargalhada altiva.
– Meu fim? Não sabes o que dizes, menino. Nós não temos fim! Já fomos erguidos para lutar outras épocas, e o seremos, sempre que necessário. Se fosse possível a ti matar-me, apenas estaria submetido a outro senhor, pois minha alma há séculos está amaldiçoada. Ora, não creio que tu sejas capaz de sequer cortar minha pele. Enfrenta o teu inexorável fim!
O ente mergulhou com uma rapidez incrível rumo a Seridath, a lâmina pesada de sua espada apontada para o peito do rapaz. Em meio à surpresa do ataque, foi impossível ao jovem esboçar reação alguma. Apenas sentiu em seu peito como era afiada aquela rústica lâmina. 
E o último pensamento do altivo guerreiro foi a certeza do definitivo desfecho daquela batalha.


Fim...? 

Nenhum comentário:

Postar um comentário