quarta-feira, agosto 15, 2012

O que as sombras revelam

A primeira sensação que o envolveu foi daquele frio cortante. A escuridão veio logo depois. Aquela era a hora em que todas as coisas pareciam mortas; a hora em que o próprio sono se assemelhava com a morte. 

O menino meio que retornou à vida, vindo de um efêmero país de sonhos. Aos poucos foi tomando ciência de seu próprio corpo. Os sentidos ajudaram-no a mapear seu espaço. Visão e audição faltaram a seu chamado. Afinal, estava imerso em silêncio, como numa escuridão sepulcral.

O frio fazia sua respiração arder. Privado dos aromas familiares, lembrou estar em lugar estranho. Aos poucos a lembrança foi acompanhando sua própria consciência. Não estou em casa; estou na fazenda, muito longe de tudo que conheço. E agora parecia também completamente sozinho. As sombras eram suas únicas e reais companheiras.

A bexiga protestou e o menino percebeu que este era o motivo de seu despertar. Ainda sob as cobertas, tentou mapear mentalmente a casa estranha onde estava hospedado com a família. Abriu e fechou os olhos, percebendo que não fazia diferença. Hesitou ainda por alguns instantes para em seguida jogar as cobertas e saltar da cama.

As tábuas do casarão colonial rangeram sob seus dedos, quebrando o silêncio que parecia uma parede de gelo a impedir que ele se movesse. Pé ante pé, o menino vagou, lentamente, usando as mãos para evitar uma topada violenta em qualquer coisa oculta naquele breu.

Chegando ao que parecia a sala de jantar, uma terrível surpresa. Uma luz vermelha, mortiça, desafiava o menino bem longe, lá onde a escuridão parecia nascer. Era um minúsculo ponto escarlate, como um olho maligno a observá-lo; ou como a brasa do cigarro de um fumante solitário, estranho.

O pavor gelou as entranhas do menino, quase fazendo com que sua bexiga se desprendesse. Encostando a mão esquerda no batente da porta que fazia divisa entre a sala de jantar e a de estar, ele parecia vidrado por aquele olho vermelho. Conforme se lembrava, a porta do banheiro estava à frente, um pouco à esquerda, na metade do caminho até a luz vermelha.

O menino viu-se diante de três escolhas. Poderia virar as costas para a luz e voltar ao conforto da cama, apesar dos protestos da bexiga, ou poderia vagar até o banheiro e ignorar a luz vermelha.

A terceira escolha, a mais difícil, foi a que ele fez. Com passos lentos mas firmes, o menino seguiu até a fonte da luz vermelha. O ponto luminoso foi crescendo até revelar-se apenas a luz que indicava o funcionamento do freezer da cozinha.

Sentindo um misto de alívio e orgulho, o menino deu meia-volta e dirigiu-se ao banheiro. De lá, seguiu para sua cama. As sombras da madrugada ocultam muito mais do que revelam, dão formas de monstros a coisas banais. Mas para o menino, pouco daquilo importava. Na luta com seus medos ele se saíra vencedor. E se tornara o senhor daquela madrugada... e o senhor do seu próprio coração.

4 comentários:

  1. Lourdinha viana9:38 PM

    "Seus dedos rangeram sob as tábuas do casarão colonial"...ouça isso de novo, reveja..boa história. Lourdinha.

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  2. As travessias noturnas são sempre perigosas.

    Com escuridão não se brinca: elas enganam nossos sentidos, ou revelam, de fato , a monstruosidade das coisas?

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  3. Arrumado, Lourdinha! Obrigado, rs.

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  4. Oi Nerito!
    Isso me lembra o primeiro livro que li na vida. Chama-se Aventura no escuro, e também é sobre um menino enfrentando o medo do escuro ;)

    Beijos!

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