quarta-feira, agosto 22, 2018

Contando histórias de sabedoria e fé

Não me considero um homem religioso. Na verdade, costumo até ser um pouco ranzinza com demonstrações de fé, principalmente por causa do histórico da religião, principalmente a cristã. Além disso, tive meus percalços pessoais nos bancos de igrejas evangélicas. Por isso, costumo sempre ter uma visão bastante crítica em relação à influência das religiões na sociedade. 
É impossível negar, porém, que as religiões sempre tiveram sua contribuição para a sociedade, ainda que tal contribuição seja de qualidade questionável. E quando vamos falar de Tradição Popular, esta tem suas matizes de fervor religioso. E por vezes, as histórias que nos tomam ao começarmos a narrar para um público, podem muito bem mostrar facetas de fervor religioso. Sim, as histórias podem tomar a Palavra, deixando o narrador à sua mercê. Acredito que foi isso que aconteceu comigo.
No dia 9 de agosto deste ano, compareci à Escola Municipal Josefina Souza Lima para narrar histórias. Fui convidado pela amiga e colega de trabalho, Kátia Mourão, para participar das comemorações do dia dos Pais e também do Dia do Estudante.
Estava um pouco preocupado, pois não tinha conseguido tempo para me preparar. Eram por volta de 40 pessoas, entre estudantes da EJA e educadores. Sentia uma enorme responsabilidade, pois fazia tempo que não me apresentava sozinho. Estar diante do público amparado pelas amigas e amigos do Coletivo é sempre maravilhoso. Por isso, abandonar esse lugar de conforto era algo um pouco assustador.
Agora, porém, eu estava sozinho. Bem, apenas fisicamente, pois as vozes de tantas pessoas queridas andam comigo, como sempre andarão. E assim, contando com as presenças dessas vozes, eu estava mais firme para começar a apresentação.
Evocando o amigo Joca Monteiro, eu pedi "licença pra contar". Falei do que aprendi com ele, da importância do respeito, da gratidão pelas pessoas que estão diante de nós para nos ouvir. Reforcei o privilégio que temos ao poder falar em um país em que tantos são silenciados.
Comecei então com “As trapalhadas de Zé Bocoió”, que aprendi em um dos livros do grande Ricardo Azevedo. Em seguida, contei “Uma questão de interpretação”. Essa história eu aprendi com a Maria Célia Nunes, narradora de história de longa carreira em Belo Horizonte. Contei então uma história que escutei de minha mãe, quando ainda era adolescente, sobre um rei ateu e seu mordomo piedoso.
O público parecia apreciar, principalmente os mais velhos. Fiquei mais confiante. Continuei então com outra história de sabedoria. Desta vez era sobre um rei insatisfeito comprometido em arruinar o homem mais feliz de seu reino. Fui apresentado a essa história pelo amigo Rodrigo Teixeira, que por sua vez a conheceu por intermédio da Mestra Gislayne Matos.
Com essa história, terminei a apresentação. Agradeci, mais uma vez. Antes de ir pra casa, tive uma agradável surpresa: recebi um cartão e uma caixa de bombons. Fiquei profundamente agradecido.
A noite de 9 de agosto de 2018 foi especial. Nela, pude abrir meu coração. E minhas palavras foram acolhidas com carinho. Diante de tão caloroso público, foi como contar para preciosos amigos. E não deixou de ser isso. Afinal, minha amiga Kátia Mourão, que me convidou para ir à escola, estava entre as pessoas que me escutavam. Para ela e toda a equipe da Escola Municipal Josefina Souza Lima, bem como seus alunos, deixo meu muito obrigado!



domingo, agosto 19, 2018

Vídeo: Causo de caçador

Boa noite! Segue hoje um vídeo que fiz para um concurso de causos. Evidentemente, não fui selecionado, pois sequer tive resposta da minha classificação. Contudo, tenho esse causo bem guardado no coração, pois foi através do amigo Evando Pessoa, grande narrador, que o ouvi. Espero que apreciem!


quarta-feira, agosto 15, 2018

Fortalecendo Vínculos pela Palavra


No dia 18 de julho fomos ao Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de Lagoa Santa para contar histórias. A oportunidade havia surgido quando a instituição fez uma visita ao Centro de Referência da Juventude e eu me ofereci para ir a Lagoa Santa contar histórias para as crianças e adolescentes. Deixei meu contato com a Ângela e posteriormente combinamos a visita.
No dia marcado, portanto, eu e Pâmela Machado, minha esposa, chegamos ao local e descobrimos um espaço muito bacana, repleto de verde, onde as crianças e adolescentes aprendem a mexer na terra, têm acesso à leitura, a outras formas de Cultura e ao esporte.
Enquanto esperávamos pela chegada de nossos ouvintes, fomos guiados pelo espaço. Conhecemos uma antiga fornalha de produção de cal, quase uma gruta mágica, perto de uma árvore centenária. Fomos também à biblioteca, que foi reformada. Por último conhecemos a sala de informática com vários computadores para uso dos jovens.
E porfalar em jovens, eles estavam chega do. Estivemos em roda, no refeitório, junto ao público. Perguntei quem gostava de ouvir histórias. Acho que umas três pessoas levantaram a mão. Disse então que estava naquele dia com eles para mostrar o gosto de ouvir e contar histórias.
Comecei a narrar "Anansi e a busca impossível". A atenção era total. Pâmela contou logo depois a história "O leão e o caçador". Fechei então com "As almas penadas". 
Foi prazeroso quando uma das crianças disse que na verdade eu era o Anansi.
Depois das apresentações, perguntei quem tinha gostado e todos levantaram as mãos. Fiquei deliciado. Fomos então convidados para um lanche e um gostoso bate papo com a equipe. Em seguida, fizemos um segundo passeio pelo lugar, conhecendo a horta e seus encantos.
Tínhamos que partir, por conta de outros compromissos, mas estávamos encantados com o lugar, a equipe e os jovens. Fomos totalmente cativados. Por isso, gostaria de deixar aqui meu mais sincero agradecimento à equipe do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de Lagoa Santa:
Lavina Rodrigues - coordenadora
Angela Costa - Prof. De arte
Thaís - Assistente Social
Tamires Gomes - Psicóloga
Jaedenis Rodrigues - Prof. De Esporte
Thiago Matheus - Oficineiro de informática
Silvana - Voluntária
Que possamos nos encontrar mais vezes, com muitas outras histórias para contar!

quarta-feira, agosto 08, 2018

Lançamento do CD do Coletivo Narradores

Por vezes, a sensação do dia-a-dia não nos deixa perceber que estamos em constante mudança. Para nossos sentidos e nossa parca noção de tempo, estamos em fluxo contínuo, como que em uma eterna viagem. Pela janela do nosso corpo (nossa consciência e não nossos olhos) vamos como que observando tudo o que nos acontece ao redor, algumas vezes com mais atenção que outras. Assim, é como se o tempo fosse algo imutável. Contamos com a memória para nos dizer que o tempo passou e com o sonho para nos garantir que o futuro virá. Essas são nossas principais garantias. Por isso, se não formos atentos, achamos que, assim como o tempo, somos e sempre seremos os mesmos.
Mas então acontecimentos marcantes de repente nos lançam em outro patamar. Como ritos de passagem, esses eventos nos mostram o quanto amadurecemos, como estamos prontos para desafios que a princípio acreditávamos serem impossíveis para nós.
O lançamento do primeiro CD do Coletivo Narradores foi um desses acontecimentos, um poderoso rito de passagem para mim, inaugurando um novo contador de histórias, chamado Samuel Medina. Porém, não foi apenas o lançamento em si, mas todo o processo que culminou nesse maravilhoso espetáculo. Acontecido no contexto da Segunda Candeia - Encontro Internacional de Narração Artística, o lançamento foi um divisor de águas em minha vida, pois teve diversas etapas que foram gradativamente vencidas, cada uma nos impulsionando a um outro degrau e nos fazendo enxergar mais longe.
Tudo começou com um sonho. Com a proposta da amiga Aline Cântia e o entusiasmo do grupo, começamos a pensar em uma forma de concretizá-lo. Pensamos então em fazer um financiamento coletivo. Os amigos da Companhia Pé de Moleque, Juliana Daher e Isaac Luiz, que também fazem parte do Coletivo, ofereceram sua experiência com a campanha para a publicação e lançamento de seu livro-CD O mundo de dentro e o mundo de fora. Por conta da experiência de sucesso, eles sugeriram usarmos a plataforma Benfeitoria.
Construímos um projeto, enviamos para o site e aguardamos. Fomos aprovados e contamos com todo o apoio da excelente equipe da Plataforma.
Seguiram-se os dias do prazo para captação. Foi uma correria, um sufoco, mas a cada nova pessoa contatada, pudemos ver o prestígio do Coletivo, o apoio da comunidade de narradores de histórias e também de frequentadores dos eventos culturais da Grande BH. No Primeiro Encontrão de Contadores de Histórias de BH, organizado por  Beatriz Myhrra e Pierre André, pudemos ver quantas pessoas embarcaram conosco neste sonho.
O passo seguinte foi gravar as histórias. Contamos com a direção de Aline Cântia e o apoio técnico do Chicó do Céu, que magistralmente nos acompanharam, enquanto repetíamos nossas histórias infindáveis vezes para que justamente a melhor expressão fosse captada pelo microfone.
Enquanto isso, a campanha prosseguia. A cada nova contribuição, vibrávamos como se fosse a primeira e única. Foram tantas e tantos que abraçaram nossa causa. Seus nomes estão no mural da página do Coletivo Narradores no Facebook. E o apoio foi tamanho, que alcançamos a meta mínima e a ultrapassamos. 
Prosseguimos então para a etapa seguinte: preparar o espetáculo de lançamento. O Coletivo convidou a artista Liz Schrickte. Com seu olhar, sua sensibilidade e seu profissionalismo, ela foi construindo conosco uma apresentação que carregasse nossa alma. Foram dias desafiadores de ensaios no Espaço Pigmalião. O cronograma estava apertado, com a Candeia próxima. Nosso compromisso, porém, era de oferecer uma apresentação de qualidade, que fosse inesquecível não apenas para o público, mas para nós, também. E apenas estar no Espaço Pigmalião já era uma experiência estética ímpar, ensaiando em meio aos fascinantes bonecos que lá habitam.
Assim, chegamos à Segunda Candeia artisticamente mais robustos, confiantes. Estávamos prontos. E a própria Candeia nos encheu de potência.
Tivemos então o privilégio e a responsabilidade de encerrarmos as apresentações da Segunda Candeia. Estávamos cansados por conta do longo percurso, mas alegres, de uma alegria tamanha. Éramos como o rio da narrativa do amigo Carlos Barbosa, que abre o espetáculo. Viramos vapor. Sentimos medo, vimos coisas inesquecíveis. Mas por fim, diante de tão bela platéia, era como se estivéssemos por fim chegando ao mar. Com a plena certeza de quem somos.

terça-feira, agosto 07, 2018

Vídeo: O Cravo e a Rosa

Bom dia! Mais uma experiência musical. Hoje, compartilho com vocês uma das músicas mais românticas de nossa Tradição Popular. 

Até a próxima!

sexta-feira, agosto 03, 2018

Memória de um sonho de pásaros

Esta foi a noite dos sonhos vívidos... Sonhei que morava novamente com meu irmão João Emílio Medina, que ele tinha voltado a ter quatro anos. Morávamos em uma casa ainda em obras, embora não seja aquela de nosso passado real, que construímos ao longo dos anos. João me chamava para irmos ao andar de cima, ainda incompleto. Lá, ficávamos olhando o horizonte e tudo tinha um significado maravilhoso e quase secreto. Foi então que ele puxou a manga de minha camisa e apontou para um passarinho que pousava em uma árvore. Sacudi os braços e um bando deles surgiu dentre as folhagens. Até no sonho fiquei sem fôlego com o espetáculo da debandada dos passarinhos. Era como se as folhas secas dessa árvore, inconformadas, buscassem no azul um outro jeito de ser.

Belo Horizonte, 3 de agosto de 2013.

quarta-feira, agosto 01, 2018

Segunda Candeia: A chama brilha mais forte

Já falei neste blog sobre a Primeira Candeia - Mostra Internacional de Narração Artística. Tendo acontecido em maio de 2017, ela foi um divisor de águas nas vidas de muitas pessoas - inclusive na minha. Fui instigado, movido, iluminado nesse magnífico evento.
Não seria estranho, portanto, que eu aguardasse a próxima edição com tanta ansiedade. Estava sedento por aprender mais, conhecer e ouvir mais. E posso dizer com tranquilidade que minhas expectativas foram superadas.
A Segunda Candeia teve sua abertura oficial no dia 13 de junho deste ano. Novamente, o Sesc Palladium acolheu esse evento tão incrível, realizado pelo Instituto Cultural Abrapalavra, nas pessoas de Aline Cântia, Chicó do Céu e toda a equipe.
Tivemos um momento lindo quando duas grandes pilastras da narração de histórias foram chamadas ao palco - Gislayne Matos e Regina Machado - para receberem as devidas homenagens. Foi uma grande surpresa para as duas. Em seguida, teve início o grande espetáculo de abertura.
A poderosa voz do Sérgio Pererê me impactou e preparou para o fenômeno que seria o espetáculo "Era uma vez África", com o camaronês Boniface Ofogo. Minha atenção foi totalmente sequestrada pela presença forte e serena desse mago da memória.
No segundo dia, estive sorvendo os preciosos momentos de fala com Gislayne e Regina, que contaram com a mediação de Júlia Grillo. O tema da mesa era a narração de histórias como linguagem artística. Jamais esquecerei quando Gislayne disse que a arte, em sua origem, significa "fazer bem feito".
Na mesma noite, Regina Machado nos presentearia com o espetáculo "Contos da Lua Nova".
Alcançamos o terceiro dia. Nele, tivemos um encontro muito especial na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte, entre os convidados da Candeia e as pessoas que participam do Encontro Semanal de Contadoras de Histórias. Contando com a abertura e mediação da narradora baiana Luciene Souza, esse bate papo esquadrinhou passados e memórias. Escutamos relatos de nascimentos de narradores e sobre o que os impulsiona.
Quando anoiteceu, Júlia Grillo apresentou a aula-espetáculo "A polpa e a semente e o desenho das histórias". Foi o momento de saborear o conhecimento e a sabedoria dessa narradora que, mesmo jovem, tem uma trajetória já extensa nos caminhos da narração oral.
Para encerrar a noite de forma sublime, tivemos o espetáculo "Foi Coisa de Saci". Nele, Josiane Geroldi levou um autêntico saci ao palco e mostrou que aprendeu muitos truques com esse diabinho perneta.
Quando chegou o dia 16 de junho, sábado, o sentimento de nostalgia já me dominava. Não queria que essa maravilhosa festa acabasse. Tínhamos apenas mais uma noite de espetáculo. E por isso, a nostalgia era invadida pela expectativa. Afinal, eu estava entre as pessoas que se apresentariam.
Um dos pontos mais altos do sábado foi o do escritor Ricardo Azevedo com os Contadores da Vila, um grupo de narradores ainda jovens, mas já dispostos a domar o bicho bravo que é a Palavra Oral. Foi maravilhoso ver a surpresa naqueles rostos jovens, ao verem seu grande ídolo se levantar e andar até o palco, para conversar com eles.
Vale destacar aqui a mediação matreira do amigo e companheiro de coletivo, Rodrigo Teixeira. Com seu estilo fanfarrão, ele deixou as crianças muito tranquilas no palco. Preciso destacar também o papel da Bárbara Amaral, amiga e colega no Coletivo Narradores. Apesar de não estar no palco, ela foi mencionada com respeito e admiração pelas crianças. É incontestável que, ao fundar e orientar o grupo Contadores da Vila, Bárbara é uma das grandes responsáveis pelo sucesso que esses jovens contadores de histórias já são.
Após esse encontro tão bom, Josiane Geroldi recebeu Boniface Ofogo e Giuliano Tierno para falarem sobre o tema: "Contador de histórias Contemporâneo, que profissional é esse?". Foi uma conversa séria, sobre ética e responsabilidade. Fiquei movido pela fala do Boniface Ofogo sobre a importância de conhecermos a linguagem, a poesia, a filosofia, para sermos narradores ainda melhores.
Ainda havia muito para acontecer. Fomos embalados pela voz serena e envolvente da Emile Andrade, com seu espetáculo "Histórias de muitos mundos".
No espetáculo seguinte, não pude estar presente, embora desejasse com toda a força, pois a Mestra Rosana Mont’Alverne e seu filho Eduardo Flores apresentariam "O buscador da verdade". Porém, eu precisava me aprontar, pois logo chegaria o momento do Coletivo Narradores. Fiquei escutando e pescando o que podia, com o coração dando pinotes de expectativa.
Assim, às 21h, começou o último espetáculo da Segunda Candeia: o lançamento do CD do Coletivo Narradores. Tive o privilégio de dividir o palco com minha esposa, Pâmela Machado, mais as amigas e amigos Alessandra Nogueira, Bárbara Amaral, Carlos Roberto Barbosa, Fernando Chagas, Gislayne Matos, Isaac Luiz, Juliana Daher, Nadja Calábria e Rodrigo Teixeira. Para além do palco, a direção sensível e competente de Aline Cântia e Liz Schrickte me deixou seguro e confiante.
Aquele momento estará marcado para sempre na memória. Não foi a primeira vez que eu subi num palco. Mas era como se fosse. Aconteceu um nascimento ali. O Samuel Medina, aquele narrador de histórias, pode dizer sem dúvida alguma que nasceu de novo.
Eu nasci de novo.
Ainda que a Candeia no Sesc Palladium estivesse encerrada, havia mais um momento especial para marcar esse lindo festival. No domingo, pela manhã, o Rancho da Cultura, no povoado de Pompéu, em Sabará, abria as portas para celebrar a Palavra e as Histórias.
Infelizmente, pude curtir apenas um pequenino pedaço dessa despedida. Por causa de um problema no transporte, chegamos em tempo de ver apenas a última apresentação, feita pelo gigante Boniface Ofogo.
A Candeia para mim foi mais que um Encontro. Mais que uma Mostra. É na verdade um acontecimento que ultrapassa o espaço e o tempo. Não foi possível cobrir toda a programação, apesar de meus esforços. Ainda assim, posso dizer que onde eu não estava fisicamente, meus pensamentos lá se encontravam. Da mesma forma que, apesar de o festival já estar encerrado oficialmente, em minha alma ele perdura.
Para mim, a Candeia fica brilhando, eternamente. Cada voz é uma luz dessa chama que me banhou e me queimou também. Estou incendiado, para sempre. Sou também parte dessa chama, parte dessa luz.





terça-feira, julho 31, 2018

Relutante

Insone
Minha angústia me chama
Somente ela tenho
Por confidente.
A noite me rasga ao meio
O silêncio é curvo como um anzol.
Ardem os olhos
Mortiços
Vagos
Somente o peito parece vivo
Mas por enquanto
A cidade além das janelas
Apodrece.
Aquelas mesmas vozes
Continuam a chamar meu nome
Exigem testemunha
Para costurar
Nelas
Outros lamentos.

sábado, julho 28, 2018

segunda-feira, julho 23, 2018

Vídeo: poema Viavasta, de Iacyr Anderson de Freitas

Olás! Trago para vocês um vídeo que está no YouTube há alguns dias. Nesse vídeo, recito o poema "Viavasta", do livro Viavária. Quem não viu ainda terá a oportunidade de assisti-lo por aqui!

Boa poesia! 

sexta-feira, maio 04, 2018

Te vendo um cachorro - Ingenuidade, malícia e o fazer artístico

Teo tem um grave problema. Ele foi praticamente acusado de estar escrevendo um romance. Sua vizinha de andar, maliciosamente batizada de Francesca, é a autora e disseminadora de tal delírio. Por conta disso, Teo é continuamente incomodado pelos demais moradores do prédio: um conjunto de fanáticos literatos, membros de um clube de leitura hardcore liderado pela própria Francesca.
O pior de tudo é que Teo nunca teve qualquer pretensão de escrever um romance. Ele é apenas um vendedor aposentado de tacos e agora deseja passar o fim de seus dias em suave embriaguez, lançando cantadas às senhoras solteironas que o cercam.
Assim, a partir desse enredo tragicômico, o leitor é convidado a se aventurar pelas páginas do romance Te vendo um cachorro, último volume da trilogia de Juan Pablo Villa-Lobos sobre o México.
Ambientado na Cidade do México, a narrativa assume um foco bem diferente dos seus antecessores. Se no primeiro o narrador é uma criança que habita uma isolada fortaleza do narcotráfico, e no segundo é um jovem morador de uma pequena cidade do interior mexicano, agora temos um narrador vivido e experiente, com toda a manha e canastrice de um cachorro velho que viveu em um ambiente mais complexo, tanto pelo lugar populoso, quanto pelo ofício cheio de artimanhas. Em dado momento, Teo começa um diálogo insólito com a frase que dá nome ao romance, criando uma situação absurdamente cômica.
É interessante observar que, embora não tenha interesse algum em escrever o tal romance, Teo tem um passado ligado ao fazer artístico. Seus devaneios, apontamentos e memórias perpassam angústias e ciladas que surgem na travessia de qualquer artista. E nosso anti-herói ainda declara com muito orgulho que seu ofício como taqueiro não deixa de ser um fazer artístico.
Assim, temos durante a leitura cenas que apresentam o impulso do artista como algo ingênuo e ao mesmo tempo malicioso. A ingenuidade estaria nas memórias de Teo, em sua juventude, quando ele desejava ser artista plástico e esboçava em seu caderno sua visão inexperiente de mundo através de desenhos. Já a malícia cerca o velho taqueiro alcoólatra, devasso, sempre pronto para comprar uma pílula azul e por isso passa a maior parte do tempo sendo enxotado pelas mulheres que ele canta. 
É assim que jovem e velho se aproximam, através da alegoria da mulher como musa inalcançável, embora sempre próxima. E a única forma de tocar a musa é através da arte. Seja por desenhos, palavras, ou por um delicioso taco, feito da carne do melhor vira-lata que foi possível encontrar.

Ficha Técnica 
Te vendo um cachorro
Juan Pablo Villa-Lobos 
Companhia das Letras 

sexta-feira, abril 20, 2018

Festa no Covil - sobre uma torre de palavras e sangue

Tóchtli é um garoto diferente. Confinado na fortaleza de seu pai, Yocault, o menino cresce em um ambiente adulto demais para ele. Seu pai é líder de um poderoso cartel mexicano e construiu sua fortaleza no meio do deserto. Tóchtli não conhece outras crianças, apenas pessoas ligadas às atividades ilícitas do pai, com excessão do tutor. Ele cresce sem referências infantis, apenas adultas. Inteligente e observador, o menino vai narrando as insólitas experiências ligadas ao brutal universo das drogas.
Assim tem início o enredo de Festa no Covil, de Juan Pablo Villa-Lobos. O romance é o primeiro da trilogia sobre o México e apresenta com um humor que oscila entre a inocência e a malícia infantis um dos aspectos mais violentos da realidade mexicana.
É interessante observar como Tóchtli se apresenta como um menino precoce e bem resolvido, a despeito das constantes dores de barriga, provavelmente de origem psicológica. Como uma espécie de "Rapunzel moderna, o menino vive isolado em sua fortaleza, tendo como principal passatempo colecionar chapéus e palavras difíceis. 
Outra observação que faço é a curiosa escolha do autor em dar apenas nomes astecas para suas personagens. Talvez seja um código estabelecido pelo próprio Yocault, para o caso de serem alvo de alguma investigação policial. Ou algo ainda mais complexo, como se esta fosse, de alguma maneira, uma faceta distorcida de resistência do povo mexicano. 
Considero genial a relação que o menino tem com as palavras. Cercado de "eufemismos", Tóchtli constrói sua rede de significados a partir do que observa e também através dos ensinos que recebe de um professor particular.
O romance de Villa-Lobos é envolvente, tanto pela escrita quanto pela empatia que o leitor vai estabelecendo com aquele menino solitário. Por vezes, a descrição de uma realidade cruel arranca risadas por sua fina ironia, pois Tóchtli ainda não tem condições de entender de fato o que se passa. Como exemplo, temos a cena em que o menino narra o momento em que um homem é levado à presença do chefão Yocault  espancado e depois retirado da sala, para ser executado. Tudo isso é narrado pela criança, que brinca com as palavras e fala como se de fato entendesse o que está se passando. 
Por vezes, esse olhar desprovido de experiências funciona como uma espécie de filtro, que desconstrói e expõe a crua realidade do meio em que o menino vive.
Elaborado e Inteligente, o texto de Villa-Lobos exerce um magnetismo sobre o leitor, provocando, instigando e incomodando a cada nova página. Assim, Festa no Covil é uma rica experiência de leitura sobre o exercício da força em seu estado bruto. E como essa mesma força, como um castelo de cartas, é frágil e precisa de um movimento para desabar.


Ficha Técnica 
Título: Festa no Covil
Autor: Juan Pablo Villa-Lobos 
Editora: Companhia das Letras 

quarta-feira, abril 18, 2018

Monteiro Lobato e o Dia Nacional do Livro Infantil


Quando se fala de Literatura Infantil, muitos costumam reduzi-la a um segmento menor, como se fosse uma literatura mais "fácil". Por muito tempo, os livros para crianças e jovens eram imbuídos de uma forte carga utilitária. Era necessário que os textos fossem instrutivos e edificantes.
Há 136 anos nasceu o homem que transformaria para sempre a literatura infantil. José Bento Renato Monteiro Lobato, patrono do livro infantil em nosso país, não foi apenas o percursor da literatura infantil brasileira da atualidade, mas também fundou uma nova forma de pensar e fazer livros para jovens leitores. Em sua homenagem, o dia 18 de abril passou a ser conhecido como o Dia Nacional do Livro Infantil.
Com Reinações de Narizinho, Lobato nos apresenta uma menina que surge pra aprontar mesmo. Afinal, o sentido da palavra "reinação" era travessura, brincadeira, bagunça. E Lúcia, ou Narizinho, a protagonista desse primeiro livro de Lobato, é uma menina esperta, contestadora, inventiva. Emília, sua boneca, era apenas uma muda coadjuvante. Quando ganha voz, a boneca vai lentamente adquirindo força e peso, até se tornar o principal ícone de Lobato. 
As aventuras de Narizinho, Emília e muitas outras personagens acontecem no Sítio do Picapau Amarelo. Inicialmente, o sítio surge como um lugar comum, pacato, típico cenário do interior paulista. Porém, assim como a boneca Emília, o próprio Sítio vai ganhando contornos cada vez mais fantásticos, quase míticos, a ponto de comportar dentro de si as maravilhosas terras do mundo das Fábulas e até mesmo a Terra do Nunca.
O aspecto revolucionário de Lobato não está apenas em sua literatura infantil, mas também em sua visão empreendedora como formador de leitores. Ele decidiu levar seus livros para perto de seus leitores, aonde os livros antes nunca tinham chegado. Suas edições eram ambiciosas em números de exemplares. Assim, o que poderia ser visto como uma aposta mal feita mostrou-se uma jogada que mudou os rumos de nosso mercado editorial.
Não dá para negar as polêmicas em torno de Monteiro Lobato. Sim, há passagens ofensivas e racistas em alguns de seus livros. Não há desculpa ou justificativa. É preciso marcar, contudo, que Lobato era um homem ciente de muitas de suas contradições e não deixava de evidenciá-las. Como exemplo, temos o desabafo de Emília no final de suas memórias, quando ela admite seu preconceito em relação à Tia Nastácia, fazendo um "mea culpa". 
Sei que isso não é suficiente, nem redime Lobato. Apesar disso, é importante observar que ele, apesar de ser contundente em suas ideias, não sabia ser intransigente e sempre esteve disposto a mudá-las.
Que o Dia Nacional do Livro Infantil seja sempre um marco. Não como celebração, mas como memória. Para que as pessoas não se esqueçam dos erros e acertos de Lobato e que sigam seu exemplo na ousadia, na coragem e na inventividade.

domingo, abril 15, 2018

Vídeo: Calendário, de Norma de Souza Lopes

Poema da Mestra Norma de Souza Lopes e declamado em uma tarde quente, na Praça da Estação, Belo Horizonte, Minas Gerais.


Para saber mais sobre a Norma:
http://normadaeducacao.blogspot.com.br/http://www.editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=300em

sexta-feira, abril 06, 2018

Terras Secas - Um árido conflito


Arthur Boaventura está decidido a nunca mais escrever. Isso, às vésperas de receber uma premiação por sua obra poética.
Solteiro, na casa dos trinta, ele é um conceituado professor universitário.  Construiu uma sólida carreira acadêmica em literatura. Ainda assim, ele detesta tudo o que escreve.
Assim começa Terras Secas, romance de estreia da escritora mineira Paula Peregrina. Ela situa seu protagonista em Belo Horizonte, capital mineira, mas bem poderia estar em qualquer metrópole do mundo. Arthur é o retrato do homem contemporâneo: fragmentado, solitário, paranoico, e eternamente insatisfeito. Ele tem uma vasta bagagem cultural, mas isso apenas contribui para torná-lo mais vazio e confuso.
Ao retornar da premiação, Boaventura fica preso dentro do elevador do prédio em que mora. Acaba adormecendo. Ao acordar, descobre-se em um cenário inusitado: um céu violeta sem nuvens sustenta duas esferas opacas. Uma é de cor laranja; já a outra, prateada. O chão que se estende a perder de vista é amarelado e seco, de uma secura rachada e agreste. Ao longe, uma árvore torta cujos contornos do tronco são distorcido e as folhagens, difusas.
A partir daí, começa a extraordinária jornada de Arthur Boaventura. Ele não sabe mais quem é. Pior: não tem mais emoções. Tenta, contudo, entender onde está e a lógica desse mundo onírico. Trata-se de um ambiente hostil e enigmático que irá desafiar o protagonista e intrigar o leitor.
O texto de Paula Peregrina é agradável, acessível, a despeito da trama profunda e fantástica. Repleta de referências literárias, com destaque em Arthur Rimbaud, a obra dialoga com temas caros para as pessoas que desejam se aventurar na arte da escrita. É possível escrever em um mundo sem memória, sem tempo? As perguntas vão se desenrolando, desdobrando, desvelando. Apesar disso, às dúvidas permanecem.
Escrito de forma envolvente e bem elaborada, Terras Secas se apresenta como um romance que tanto agrada pela beleza do texto quanto pela profundidade do tema. Sem dúvida uma jornada épica para qualquer amante de boa literatura.

Ficha Técnica 
Terras Secas
Paula Peregrina
Editora do Pandorgas

quarta-feira, abril 04, 2018

Vídeo: A MENTIRA DA VERDADE - Joaquim Almeida


Uma narrativa da criação do mundo. Os opostos não precisam ser inimigos. Porém o que aconteceria se a Mentira declarasse guerra contra a Verdade? Narrativa belíssima que compartilho agora com vocês. O texto e os desenhos são de Joaquim de Almeida. Editora: Fundação SM.

domingo, abril 01, 2018

Pantera Negra: Wakanda para além das telas

Ao final do filme "Pantera Negra" meu rosto estava coberto de lágrimas. Voltei-me para minha esposa e brinquei: "só eu pra chorar em final de filme de super-herói".
Mas meu pranto, embora forte e patético, não era melodramático, não tinha as lágrimas emotivas de um alívio catártico. Eu chorava por Wakanda, por esse sonho maravilhoso, esse mundo em que a potência dos povos africanos não é tolhida, massacrada ou usada. Chorei por achar que Wakanda seria apenas sonho.
Foi então que, depois de ler um pouco mais sobre o filme e, principalmente, depois do artigo O filme Pantera Negra e a questão da ancestralidade africana, constatei que Wakanda é sim viva e real. Ela se realiza no talento do diretor e roteirista, do elenco de talentosas pessoas, da cultura ancestral retratada na tela. Wakanda é também a diáspora do povo afrodescendente, sua resistência cultural, seus valores religiosos, tudo num substrato que sobrevive e cresce, como uma erva do coração.
Então eu chorei novamente, mas agora era um choro diferente, uma comoção e uma alegria, ao saber que Wakanda não é utopia. É ideal, mas também é real. Wakanda está em guerra. Um dia, espero, ela se erguerá, soberana, para contar uma outra história. Aquela que os colonizadores tentaram - e ainda tentam - apagar. 

terça-feira, março 20, 2018

Semana do Contador de Histórias

A Arte de Narrar Histórias é uma das mais antigas no mundo. Talvez antes mesmo do teatro, as pessoas já se reuniam ao redor de fogueiras, para falar sobre deusas e deuses, criaturas encantadas e maravilhas.

Desde que me entendo por gente, identifico-me com essa tradição. Eu contava histórias para irmãos e primos mais novos. Antes mesmo de chegar à adolescência, narrava episódios da bíblia para outras crianças, todo domingo. Fiz isso por quase dois anos. 

Sentia um desejo premente de compartilhar com as pessoas os filmes e desenhos animados que me encantavam. Por vezes, a empolgação era tanta que o objeto narrado ficava ofuscado. As pessoas acabavam se impacientando diante de tantos detalhes.

Ainda assim, a afinidade não se perdeu. Nasceu em mim o sonho de ser escritor, estimulado pelo desejo de contar histórias, fossem estas um pouco de mim, fossem um pouco das pessoas que encontrei em meu caminho.

Este relato tem duas intenções. A primeira foi homenagear todas e todos as(os) Contadoras(es) de histórias. Através de suas vozes sou ensinado, pouco a pouco, a ser mais gente. A segunda foi anunciar que hoje, Dia Internacional do Contador de Histórias, abre a Semana do Contador de Histórias, que acontecerá na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte e tem como objetivo a celebração da Palavra Narrada e sua potência. Fica o convite para todo mundo de BH para que venha celebrar com a gente!




SEMANA DO CONTADOR DE HISTÓRIAS :: DE 20 A 24 DE MARÇO
Seminário, apresentações, oficinas e rodas de leitura.

VISITAS GUIADAS COM NARRAÇÃO DE HISTÓRIAS
Dia 20 de março, terça-feira, às 9h30 e às 14h30
Dia 23 de março, sexta-feira, às 14h30

Oficina CONTA PRA GENTE
Leitura compartilhada do livro O alvo, de Ilan Brenman e Renato Moriconi, seguida de conversas e reconto de histórias pelos participantes.
Mediação: Wander Ferreira
Público: livre
Dia 20 de março, terça-feira, às 14h30

RODA DE LEITURA ESPECIAL
Leitura de textos sobre a narração de histórias.
Mediação: Wander Ferreira e Samuel Medina
Dia 21 de março, quarta-feira, às 10h

ERA UMA VEZ... JOVEM
Apresentação do espetáculo "Mulheres de outrora, mulheres de agora".
Mediação: Grupo Prosa Mineira
Público: jovens e adultos
Dia 22 de março, quinta-feira, às 19h

ERA UMA VEZ...
Leitura e narração de histórias da literatura e da tradição oral.
Mediação: Narradoras de histórias voluntárias da BPIJ.
Público: livre
Dia 23 de março, sexta-feira, às 9h30

SEMINÁRIO: OS LUGARES DOS NARRADORES DE HISTÓRIAS
Com Juliana Anselmo e Carlos Roberto Barbosa
Dia 24 de março, sábado, às 9h30

Oficina ASPECTOS CÊNICOS DA NARRAÇÃO ARTÍSTICA DE HISTÓRIAS
A oficina chama a atenção para os aspectos cênicos do ato do narrador de histórias, seus recursos, técnicas e possibilidades, abordando, dentre outros temas, a presença física, voz, entonação, domínio de certas habilidades e jogo com a plateia.
Mediação: Érica Lima
Público: contadores de histórias, mediadores de leitura, bibliotecários, educadores, professores e demais interessados.
Vagas: 20
Dia 24 de março, sábado, às 13h às 14h30

Oficina (DES)CONSTRUINDO HISTÓRIAS
A partir da explicação dos elementos e símbolos comuns aos contos tradicionais, os participantes serão convidados a experimentar dois exercícios narrativos de improviso: no primeiro, inserir num conto símbolos oriundos de outro e verificar como esses elementos alteram o enredo; no segundo, deverão criar, espontânea e coletivamente, um conto com início, meio e fim, que possua os símbolos dos contos orais.
Mediação: Rodrigo Teixeira e Samuel Medina
Público: contadores de histórias, mediadores de leitura, bibliotecários, educadores, professores e demais interessados.
Vagas: 20
Dia 24 de março, sábado, às 14h30 às 16h

Local: Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte
Centro de Referência da Juventude
Praça da Estação, sem número – Centro
3277-8658 / bpij.fmc@pbh.gov.br

www.bhfazcultura.pbh.gov.br

segunda-feira, março 19, 2018

Lançamento da Campanha de Gravação do CD do Coletivo Narradores

 A vida é cheia de encontros. Alguns são efêmeros. Outros, consistentes e duradouros. Desde meados de 2017 comecei a caminhar junto de uma moçada bem bacana. Uma galera que conta histórias e ama o que faz. A maioria eu já conhecia pelos caminhos da Palavra Oral e cultivava uma grande admiração. Teve gente nova, é claro, tão admirável quanto as pessoas que eu já conhecia. 
Os encontros foram gerando afetos e deram assim início a um trabalho em conjunto, uma caminhada partilhada. Um grupo que gosta de sonhar junto e muito bem acordado. Dessa sinergia eu vi nascer o Coletivo Narradores. 
Tenho um enorme orgulho por fazer parte desse grupo. Somos doze pessoas, que sentem uma grande afinidade e transmitem energia umas para as outras. Durante o ano de 2017 realizamos apresentações maravilhosas. Uma delas eu relatei aqui no post Noite para renascer. Essa foi uma de outras noites mágicas que tivemos no espaço Santo Chá.
A partir de 2018 decidimos alçar voos maiores. E assim demos início ao projeto de gravação de nosso primeiro CD. Estamos na fase de captação de recursos e a campanha entrou no ar no dia 14 de março, na plataforma de croudfunding benfeitoria.com. O CD consistirá em faixas com algumas de nossas vozes. Assim, quem quiser acompanhar, conhecer um pouco mais e apoiar esse projeto, pode dar uma passadinha lá no endereço http://benfeitoria.com/coletivonarradores. O valor mínimo para apoio é de R$ 20,00, mas existem outras modalidades, com prêmios para contribuições mais generosas.
Estamos muito animados com o sucesso dessa campanha e por isso contamos com a participação de todo mundo. Convido os leitores deste blog a conhecerem um pouco mais nosso Coletivo através de nossa Página no Facebook.
Para ajudar um pouco mais vocês a conhecerem o Coletivo e entenderem o projeto, eis o vídeo que gravamos para o lançamento da Campanha:

Esperamos você lá no perfil do site da Benfeitoria! Seja nosso apoiador e faça parte da nossa história!

quinta-feira, março 08, 2018

Sobre o Dia Internacional da Mulher

Temor

[Pâmela Bastos Machado]


Desce a ladeira

a mulher
que nada teria a temer
não fosse a sombra
na escuridão
perto da árvore.

Desce a ladeira
a mulher
a tremer
tamanho o frio
que lhe causa o temor.

fixa seu olhar na sombra
como quem se impõe
(a despeito do temor)

reconhece-o
e desce a ladeira
em passos mais apressados
a mulher
a temer
um homem.

http://cadernodapam.blogspot.com.br/2016/10/temor.html?m=1



projetéis

[norma de souza lopes]

dirão
não, às pedras na mão
mais doçura mulher

violência
só as dos rituais de beleza
ou uma pistola apontada
para a própria testa



eu e minhas irmãs
carregamos entre os dedos
palavras napalm
poemas pedra
em honra às tantas
abatidas


http://normadaeducacao.blogspot.com.br/2018/02/projeteis.html?m=1



Queda

[Val Armanelli]


Ícaro, orgulhoso

Afunda sozinho
No mar

Nem pense,
Não tente me levar junto
Se suas asas são de cera,
Azar
Por que eu,
Eu não me apoio em próteses.

Voo sozinha
Livre
Com asas que nasceram das minhas costas
Nos buracos
Que você abriu
A facada

https://valarmanelli.wordpress.com/2018/02/08/queda/




quinta-feira, março 01, 2018

A parte que falta - Uma ode ao que não está lá

Falta uma parte. Ele percebe essa falta. Mais que percebe: ele a vive. Uma ausência que tolhe seus movimentos, que define sua existência, que impulsiona seus atos, que influencia seus planos. Por causa dessa falta, ele empreende uma longa e incerta busca, sem ao menos ter certeza se alcançará êxito e encontrará aquilo que preencherá esse grande vazio, essa falta que molda sua identidade. Mas ele não está triste. Sente uma esperança inabalável, uma fé profunda de que a parte que lhe falta está lá, em algum lugar, a sua espera.

Assim começa o maravilhoso livro A parte que falta, do escritor norteamericano Shel Silverstein. Um personagem sem nome, redondo, que rola quase sem parar, pois precisa alcançar o seu objetivo. O protagonista dessa narrativa, quase como um Pac-Man, prossegue em uma incansável e ávida busca. Precisa estar completo, precisa preencher justamente aquela parte que falta, para que ele se torne um círculo e possa rodar livremente. 

Sua esperança move dentro dele uma canção, que ele entoa enquanto atravessa os mais diversos obstáculos e enfrenta inúmeros desafios.

Um dos elementos mais fortes no traço de Silverstein é a simplicidade e, ao mesmo tempo, a incrível fluidez de seus desenhos. Não é preciso um cenário complexo ou um personagem rebuscado. A roda incompleta que é o herói dessa história pode ser qualquer um, eu ou você, o que torna a identificação do leitor com o protagonista algo quase certo. Além disso, o texto é carregado de um humor leve e descompromissado, apesar da profundidade com que Shel Silverstein aborda esse tema. Dessa forma, o autor cria uma obra singela, única, em que imagem e texto produzem um ambiente que nos arranca risos e, ao mesmo tempo, pode nos fazer chorar a qualquer momento.

É impressionante como Silverstein consegue, com o mínimo de palavras e imagens, criar uma narrativa tão densa e, em contrapartida, leve como o voo de uma borboleta. Tal fato vem apenas comprovar a genialidade do mesmo autor de A árvore generosa.

Com uma poética simples e poderosa, traços mínimos e ao mesmo tempo incrivelmente expressivos, A parte que falta é um livro que se abre para dentro, convidando o leitor a experimentar a ambígua beleza que pode haver na incompletude.

Ficha Técnica:
A parte que falta
Shel Silverstein
Tradução de Alípio Correia de Franca Neto
Editora Companhia das Letrinhas

quarta-feira, fevereiro 28, 2018

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

Reminiscências - Parte IV de IV

Ir para Reminiscências - Parte III de IV

 – Si-sim.
O jovem arqueiro desceu habilmente pelos galhos. Um vulto cruzou com ele numa velocidade surpreendente. Assustado, olhou para cima a tempo de ver Thin dar saltos enquanto subia pelos galhos, como se fosse um esquilo. Aldreth alcançou o chão e desceu a encosta aos tropeções. Correu rumo à pequena caverna. Enquanto aproximava-se, notas claras de uma suave canção alcançaram seus ouvidos.
Chegando à fenda, deparou-se com Uri sentado em frente a Lucan que, já desperto, tocava uma flauta de madeira. Ou melhor, quase fazia o pequeno instrumento chorar. A melodia era tão bela e aconchegante, que Aldreth entrou e sentou-se. Sentia-se confortável, uma felicidade crescente tomando conta do seu peito. Não sabia quanto tempo ficara a ouvir Lucan tocar seu instrumento, embora nem se importasse com isso. A flauta o fazia lembrar de ribeiros cristalinos, o sol incidindo em verdes folhas, o cheiro do pão fresco da sua mãe...
– Mas o que é isso!? – bradou alguém atrás de Aldreth, na entrada da fenda.
O rapaz deu um sobressalto, enquanto sentia com tristeza a música desaparecer. Lucan tinha um olhar assustado. Seridath estava parado na entrada da caverna, com seu olhar implacável. Thin estava um pouco atrás, meio que se divertindo ao prever o que iria acontecer.
– Mandei que os chamasse, garoto! – vociferou o guerreiro. – Não foi para ficar escutando música! E você, arauto, se pode tocar uma flauta, também poderá empunhar uma espada! De pé!
– A culpa foi minha, senhor Seridath – replicou Lucan. – Uri comentou que estava com fome e, como essa música faz esquecer muitos males, pensei que o agradaria se escutasse um pouco.
– Música não enche barriga, seu pedaço de bosta! – replicou Seridath, ainda furioso. – Essa tolice no mínimo irá denunciar nosso esconderijo aos inimigos. Quero todos fora!
Os três levantaram-se. Aldreth ainda estava atordoado pelas palavras duras. Aqueles olhos azuis, de gélida impiedade, sempre o perturbavam, mas ele não estava conformado com a injustiça sofrida pelo arauto. Aldreth queria que o bravo Uri falasse algo, já que o anão parecera tão satisfeito enquanto ouvia a música. Lucan mostrava dificuldades para se pôr de pé. Uri bateu levemente nas costas do arauto, enquanto o ajudava a se levantar.
– Foi uma bela música, meu rapaz – resmungou o anão. – Até esqueci a fome.
Seridath ouviu o comentário, mas manteve silêncio. Ele também ficara um tempo ouvindo a melodia da flauta de Lucan antes de interrompê-lo. E a música despertou nele imagens e sentimentos há muito adormecidos. Olhos verdes, bondosos, o fitavam, adornados por um rosto queimado de sol e cabelos castanhos, mas claros como o mel. Uma mão quente o afagando. Sorrisos, verdadeiros diamantes de alegria. Poesia de algum tempo perdido. E aquele caldo grosso que matava sua fome, perto da lareira, enquanto a neve batia de leve na janela.

O jovem balançou forte a cabeça, afastando aquelas lembranças, enquanto subia a colina com os outros. Detestara aquela música.

Continua...

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Se vivêssemos num lugar normal: quando as palavras não bastam

O que fazer quando as palavras são a sua única arma, mas esta se mostra totalmente inócua em um mundo em que a miséria e a loucura dominam? De que adianta o conhecimento, a retórica, a argumentação, se a força bruta, sempre surda, ignora todas as razões a ela apresentadas? Estas perguntas e muitas outras assombram o leitor de Se vivêssemos num lugar normal, segundo livro da trilogia sobre o México, escrita por Juan Pablo Villalobos.
Este é um livro totalmente irônico. O narrador é Orestes, apelidado Oreo, um rapaz no fim da infância e início da adolescência. Filho de um professor helenista, ele e os irmãos compartilham os insólitos nomes de figuras gregas. Aristóteles é o mais velho. O segundo, o narrador. Logo abaixo estão Arquíloco, Calímaco, Electra e, por último, Castor e Pólux, os chamados "gêmeos de mentira". 
A narrativa é repleta de um humor corrosivo. Logo de início Orestes vai desfiando os absurdos e as incoerências de uma família com um certo grau cultura, mas dominada pela pobreza.
Villalobos cria um narrador que passeia entre a inocência pueril e a maligna ironia adulta. Orestes, a todo o momento, trata de ideal e realidade, sendo esta última de uma crueldade óbvia. Um exemplo é quando o garoto fala de sua relação com o irmão mais velho e as disputas entre ambos. Oreo revela que é um excelente orador, usando de suas palavras para tentar vencer o outro, maior e mais forte. Aristóteles, por sua vez, pouca importância dá para os rebuscados argumentos do irmão mais novo. Resolve tudo na porrada mesmo.
O universo concebido por Villalobos é surreal. Mundo de fome, injustiça, corrupção e loucura. Um dos episódios mais insólitos acontece com o desaparecimento das duas crianças mais jovens, Castor e Pólux, ocorrido logo no início do livro. Tanto a polícia quanto a mídia tratam a situação de uma maneira que beira o ridículo, através da exploração do sofrimento da família. O policial responsável pelo caso se cerca de palavras de complacência, enquanto um canal de televisão procura explorar o caso através de sua espetacularização. E posso afirmar que qualquer semelhança com um certo país não pode ser mera coincidência.
Ainda assim, Se vivêssemos num lugar normal é um romance sobre o México, suas mazelas e desgraças. Uma obra contundente, mas que sustenta um bom humor, o que permite que o leitor siga pelo enredo sem que o gosto amargo na boca seja forte demais.

Ficha técnica:

Título: Se vivêssemos num lugar normal
Autor: Juan Pablo Villalobos
Tradução: Andreia Moroni
Editora: Cia das Letras

quarta-feira, fevereiro 21, 2018

LIMERIQUES A CONTRA-GOLPE #9


ACORDA JÁ, POVO BRASILEIRO,
SE NÃO ROUBAM TODO SEU DINHEIRO.
SE A CRISE ESMAGA
É O POBRE QUEM PAGA
COM SEU SANGUE, SUOR E DIREITO!

segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Reminiscências - Parte III de IV

Ir para Reminiscências - Parte II de IV

 Então ambos viram o povo de Arnoll nas ameias dos muros, balançando os braços. O barulho da algazarra era tão grande que alcançava os ouvidos dos dois rapazes. Ao sudeste de Arnoll, despontava uma massa compacta e organizada de homens, soldados fortemente armados e equipados, sendo guiados pelo estandarte dourado de uma torre encimada por uma coroa e com cavalos de ambos os lados. Nenhum dos dois rapazes disse palavra, mas o pouco tempo passado na capital fora o suficiente para poderem reconhecer o estandarte e seu dono, um velho senhor de armadura dourada. Era o Senhor do Reino de Dhar, chegando para defender seus súditos. O exército do rei deveria contar com cinco mil lanceiros, além dos homens que formavam cavalaria, arqueiros, um esquadrão de magos, outro de clérigos. Os poderosos senhores dos feudos de Dhar marchavam ao lado de seu soberano. O exército chegava a dez mil homens. Seridath imaginou se os traidores Denor e Anfard teriam sobrevivido para encontrar o exército do rei. Mas para ele os fatos começavam a encaixar-se. Aquele campo de batalha havia sido planejado há muito tempo. Urso Pardo e seu destacamento deveriam ser somente uma distração, homens enviados para morrerem sob as lâminas dos inimigos, para atrasá-los, enquanto as forças oficiais faziam seus últimos preparativos. Mas onde estaria Serpente Flamejante com seu destacamento de apenas três mil? O cavaleiro sentiu vontade de rir ao pensar na enorme diferença entre a Companhia e o imponente exército de Dhar.
Antes que Seridath erguesse a voz e fizesse um gracejo contra seus antigos senhores, ele viu uma massa de homens proporcionalmente menor surgindo de um vale a oeste. Não era noite ainda, mas os homens da Companhia já carregavam tochas, que acentuavam a pobreza desse exército, frente aos estandartes de Dhar, iluminados por magia, quase fazendo aquele final de tarde tornar-se manhã. Do exército sombrio de mortos, notava-se apenas o som dos horríveis tambores.
Seridath por um tempo manteve sua atenção na Companhia em marcha. Três mil teria sido um número considerável na batalha em Keraz, mas diante daquele novo exército de mortos era inexpressivo. Examinando com mais cuidado, o guerreiro pôde perceber a formação da Companhia, com seus blocos e divisões, bem organizados. A infantaria estava dividida em blocos simétricos, guiados por seus respectivos capitães, com arqueiros a flanqueá-los. Guiando blocos maiores e auxiliados pelos arautos, homens vestidos de forma extravagante, com roupas de pele e chapéus de pluma, caminhavam apoiados em seus bordões. Seridath inquiria a si mesmo qual deles seria o ilustre Serpente Flamejante. Talvez fosse um dos velhos recurvados que se agrupavam, ocupando o centro do exército. "Aquele deve ser o conselho tão comentado pelo velho Urso" ponderou Seridath.
Aldreth olhava deslumbrado toda aquela movimentação. Nunca tinha visto exércitos tão grandiosos quanto aqueles. Os mortos tomando um horizonte e o exército de Dhar tomando outro. Seridath tocou-o no ombro.

– Os outros – disse o rapaz –, vá chamá-los.

Continua...

sexta-feira, fevereiro 16, 2018

Altered Carbon: o ser para além do humano

Quais são os limites para o que se pode considerar humano? Quando uma consciência tem a capacidade de mudar de corpos, ultrapassando limites de idade, gênero, etnia, a partir de quais critérios tal consciência poderá construir sua identidade e se considerar humana? 
Essas e outras questões são lançadas ao aturdido espectador enquanto este assiste a mais recente série da Netflix, Altered Carbon.
Baseada no livro homônimo de Richard Morgan, a série já de início apresenta o conceito de "capa": a partir de um chip  ou cartucho implantado na base da nuca, a consciência pode ser capturada e transferida para outro corpo. Dessa maneira, o corpo passa a ser nada mais que uma capa, ou roupagem, da qual a consciência pode se servir da maneira que quiser, desde que tenha dinheiro para tanto. Além disso, a morte foi superada. Afinal, se o chip ou cartucho não for destruído, a consciência pode ser implantada em outro corpo e seguir sua vida normalmente.
Porém, como assinalado acima, apenas aqueles que dispõem de dinheiro podem fazer uso de corpos conforme seus gostos e caprichos. Apenas aqueles com grande riqueza podem usufruir da imortalidade.
Em um mundo assim o espectador conhece Takeshi Kovacs. Ele é o último emissário, um antigo rebelde com treinamento de combate altamente qualificado. Acordado de uma prisão criogênica de 250 anos, ele é contratado por um magnata para resolver um assassinato. E a vítima é o próprio magnata. Todas as pistas indicam o suicídio, mas ele é um matusa, um dos mais antigos, e sua honra não admite algo como o suicídio.
Kovacs recebe a oferta de uma fortuna, além do perdão de seus crimes, para aceitar o caso. Assim, tem início uma intrincada trama envolvendo sexo, intrigas, política e uma boa dose de ação.
Minha impressão da série como um todo foi muito boa. Senti que mergulhava em um rico universo em que o espírito se torna a matéria. Afinal, a consciência, nessa ficção, consiste em um cartucho eletrônico. Assim, é interessante observar como valores morais e questões filosóficas vão se desenvolvendo em torno do enredo, enquanto Takeshi Kovacs, assombrado por seu passado, faz o melhor estilo anti-herói, e mergulha em um ambiente noir, com direito a referências diretas ao pai do romance policial, o próprio Edgar Allan Poe.
As personagens são interessantes e carismáticas. Elas vão ganhando profundidade ao longo dos episódios. Com exceção de Kovacs, que faz um percurso moral de redenção, alcançando o patamar de herói e encontrando o seu nêmesis. Esse percurso empalidece a carga dramática em redor do protagonista.
Das personagens que crescem ao longo da série, merece destaque a policial Kristen Ortega. Incorruptível e durona, Ortega segue os passos de Kovacs por seus próprios interesses e não tem medo de enfrentar quem quer que seja. Seus rompantes de fúria se fazem no melhor espanhol chulo.
Existem outros pontos interessantes a se observar. Por exemplo, a sociedade que se descortina na série. Ainda que séculos tenham se passado desde a "descoberta" da imortalidade, com a raça humana tendo colonizado inúmeros planetas e se expandido para muito além dos seus limites, pareceu-me que eu estava diante da mesma sociedade do século XXI. Outras distopias, como Admirável mundo novo e 1984, apresentam uma "evolução" na sociedade de forma mais marcante que Altered Carbon.
Com isso, arrisco dizer que esta série não deixa de ser uma aguda crítica de nosso tempo, onde imagens superficiais e repletas de artificialidade, como perfis de mídias sociais, constroem relações muitas vezes perversas e predatórias, aumentando ainda mais as desigualdades em nossa sociedade, cada vez mais desigual.

Ficha técnica
Altered Carbon
Criação de Laeta Kalogridi
Produção: Netflix
Baseado no romance de Richard K. Morgan.
Site oficial.

quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Caminhando e contando

Já me perguntaram várias vezes por que conto histórias. Nessas ocasiões, fico meio sem saber o que responder. Afinal, é fácil dar uma resposta de amor? Creio que conto por vários motivos e talvez o principal deles seja o desejo de ser outro através das histórias. E sendo outro, posso assim me encontrar. Conto para me ligar ao outro, para sentir suas dores, alegrias, para ouvir suas vozes, para sonhar seus sonhos. As histórias são maneiras incríveis de sonhar acordado e, principalmente, sonhar junto.
Assim, vou caminhando. E a cada passo, busco rechear os dias com palavras de encantamento. Algumas, um pouco soltas, ao passo que outras se mesclam em frases que se lançam a inaugurar outros sentidos. Nesse caminho, sigo contando. Conto meus passos; conto meus tropeços, também.
Quero contar histórias sempre, todo dia. Quero viver cada história. Quero amá-las. Quero amar as pessoas através dessas narrativas. E quero sonhá-las. Como disse a mãe do Miguilim, ser um fiozinho caído do cabelo de Deus.

segunda-feira, fevereiro 12, 2018

Reminiscências - Parte II de IV

Ir para Reminiscências - Parte I de IV

 Enquanto o sol gradativamente declinava, um pequeno grupo aguardava em uma estreita fenda formada pelo encontro de duas rochas. O esconderijo estava estabelecido em um vale oculto pelas árvores do bosque, situado a pouco mais de meio quilômetro a leste de Arnoll. Eram cinco pessoas e todas estavam deitadas, em silêncio. Aguardavam a chegada do exército que em breve condenaria a cidadela à condição de total obliteração. Seridath levantou-se. Aldreth e Uri cochilavam. Apenas o ladrãozinho Thin estivera acordado todo o tempo, velando ao lado de Lucan, que dormia um sono leve e febril.
Seridath aproximou-se de Aldreth e o sacudiu levemente. O rapaz despertou assustado, com a mão na espada. Seridath, com um olhar, sossegou-o.
– Vamos sair – sussurrou ele ao jovem.
Ambos deixaram a caverna para avaliar a situação que em breve iria tragá-los. Seridath esperava observar melhor o exército inimigo. Subiram a encosta do vale, escalando o aclive da colina maior, passando por grama alta, arbustos e algumas árvores esparsas. As colinas da região tinham sua crista coberta por um conjunto cerrado de uma variação de pinheiros de grande porte e fortes galhos. Escolheram com cuidado o pinheiro que parecia mais alto. Aldreth era bom em escalar árvores, mas Seridath, o misterioso Viajante Cinzento, sempre o surpreendia. Em questão de minutos ambos estavam no topo da árvore escolhida. De onde estavam, poderiam ver a sombria massa que chegava pelo norte na campina de Arnoll.
Vem de muito longe o mal... – sussurrou Aldreth, mais para si mesmo do que para o amo, lembrando-se de um texto antigo.
– Cale-se. – falou Seridath, com rudeza – Não devemos temer o Mal. Ele está aqui, preso à minha cintura, e é meu servo.
Aldreth sentiu um calafrio. Detestava quando Seridath falava nesse tom. O rapaz, ao contrário do amo, não queria um pacto com o Mal. Queria saber o que havia de errado em simplesmente viver. O próprio Seridath parecia não estar certo de suas próprias palavras. Ainda estava em batalha com Lorguth. Algo interrompeu seus pensamentos, enquanto Aldreth murmurava:
– Olha!

Continua...

quarta-feira, fevereiro 07, 2018

Prosa Poética: O momento para afiar o lápis - e a mente!

A tarefa de escrever não é fácil. Por vezes, ficamos horas diante de uma página em branco, sem ideias para uma primeira frase. A intenção está lá; algum assunto se delineia; porém, não conseguimos achar aquela primeira frase que será como o primeiro golpe de facão em um terreno cheio de mato. 
Essa dificuldade não acomete apenas escritoras e escritores iniciantes. Grandes personalidades da história da literatura confessam sobre o tão temido bloqueio criativo, algo que agia como um muro invisível, impedindo o desenvolvimento do texto. Algumas vezes, por meses ou anos.
Mas não é bem disso que estamos falando. Bem, é e não é. Afinal, nem começamos ainda nosso primeiro texto. Temos o desejo de escrever, ansiamos por fazer a coisa direito, mas encontramos dificuldade justamente em começar.
Existe também aquele sentimento de despreparo, de imaturidade, que por vezes enguiça a criatividade de escritoras e escritores iniciantes. Ficamos com aquela sensação de que nada do que escrevermos sairá bom. De que precisamos nos preparar mais. Então, mergulhamos em livros, artigos, ensaios, manuais, tentando aprender o que ninguém irá ensinar.
Uma das possíveis alternativas para superar ou ao menos enfraquecer tais dificuldades são as famosas oficinas literárias. Inclusive, muitos escritores de carreira se sustentam não pela sua literatura, mas através de oficinas, sejam elas exercícios de leitura ou escrita.
Existe um grande porém na busca por oficinas de autores consolidados: a concorrência e o custo. Em muitos casos, a oficina requer um pagamento que ultrapassa as condições da escritora ou do escritor aprendiz. Em casos em que a oficina é oferecida gratuitamente, há uma fila enorme de pessoas interessadas. Assim, muitas delas ficam de fora do processo.
Outro problema apresentado em oficinas assim é seu caráter pontual. A gente se encontra com o escritor mediador, ouvimos suas palavras, discutimos com os colegas os pontos levantados, fazemos os exercícios propostos e pronto. De agora em diante, devemos seguir por conta própria. E lá vem o bloqueio de novo.
Dentro dessa perspectiva e buscando atender aos anseios de pessoas simples como nós, apresento a Prosa Poética - Oficina de Escrita Criativa. Proposta pelo professor de Letras Felipe Diógenes, a Prosa Poética é uma atividade gratuita, com frequência semanal, sem burocracias e com uma metodologia simples e leve. A proposta é a mediação através de um objeto provocador, sobre o qual os participantes deverão escrever durante um limite específico de tempo. Ao final do prazo, cada um deverá ler o texto produzido e todos serão convidados a comentar. Uma condição é que os comentários sejam positivos, ou seja, deve-se falar o que funcionou no texto, as construções bem-sucedidas. 
Esse é o formato padrão da Oficina. Porém, ele não é rígido. Dessa forma, outras metodologias foram utilizadas. Dentre elas, cito os jogos criativos do Oulipo. Esses jogos apresentam a proposta de produção escrita a partir de regras específicas.
Nos dias 30 de janeiro e 6 de fevereiro deste ano, eu tive a oportunidade de mediar as reuniões da Prosa Poética. E justamente utilizei algumas propostas inspiradas no Oulipo. Na primeira reunião, fizemos a atividade de escrever limitados por um cronômetro. A cada vinte segundos, uma palavra aleatória era dita e os participantes eram obrigados a inserir a palavra em seu texto. Foram cerca de 10 palavras por exercício. Mesmo tendo sido a pessoa responsável pela mediação e quem trouxe a atividade, em outras duas rodadas fiz questão de convidar os colegas a tomar a posição de mediadores, responsáveis por ditar as palavras. Afinal, eu também queria escrever.
Ontem, dia 6, abrimos a oficina com a proposta de texto quimérico. Cada participante começava a escrever a partir da frase "O gato subiu no telhado". Após um tempo de 5 a 7 minutos, eles eram obrigados a passar a folha para o colega do lado. A folha era dobrada de forma que apenas a última frase ficasse visível. A rodada terminava quando o texto passava por todos os quatro participantes até retornar às mãos de quem o havia iniciado.
Os resultados foram muito interessantes. Tivemos tempo de repetir o exercício da reunião anterior, em duas rodadas. E acredito que as próximas reuniões serão igualmente desafiadoras para mim, pois tenho mais uma mediação agendada. O exercício proposto está em fase de construção.
A Prosa Poética é um momento interessante de troca de vivências e possibilidades criativas. Seus encontros oferecem material para muitos escritos. Alguns destes estão presentes no blog oficial da Oficina, https://oficinaprosapoetica.wordpress.com. Fica o convite para todas e todos acompanharem nossa produção lá.
E não posso deixar de fazer o convite para quem mora em Belo Horizonte e Região Metropolitana para que dê um pulo e venha conhecer nossa Oficina. Nós estamos reunidos toda terça-feira, às 10h da manhã, na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil/Centro de Referência da Juventude. O endereço é: Praça da Estação, sem número. Chega junto!

segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Reminiscências - Parte I de IV

Ir para Renegado - Parte IV de IV

 As longínquas montanhas daquela terra há anos parecia não receber um raio de sol sequer. Não chovia, mas o céu permanecia nublado, fechado por nuvens escuras que prenunciavam tempestade. Um vento frio persistia. Não era forte, mas agourento, sempre trazendo uma sensação de perigo, a expectativa de algo terrível que estaria para acontecer a qualquer momento.
Koen apertou levemente os olhos, como que tentando captar toda a agudeza daquelas montanhas. Dominando a paisagem, um pico imponente capturava a concentração do garoto. Sentia frio, sua túnica fina não o protegia. Dez anos, ocaso da infância, marcada pelo trabalho duro e pelo constante treinamento nas lutas. Outros meninos estavam parados junto com ele, formando um grupo de vinte e duas crianças. Entre eles estava o Velho. Não que fosse idoso, mas gostava que o chamassem assim. O Velho pôs a mão no ombro de Koen, seu favorito.
– Prepara-te, rapaz. É possível que teus próximos cinco anos sejam todos passados nessas montanhas. As rochas não te permitirão sair até reclamares a posse da espada.
– Si-sim – gaguejou o garoto, engolindo em seco.
– Lembra-te – o Velho sussurrava ao ouvido do menino –, os outros também estarão em sua busca, mas só tu terás poder para dominá-la. Eles tentarão, mas hão de perecer.
Um trovão ecoou ao longe. Seridath acordou sobressaltado. Suas lembranças de infância às vezes voltavam em forma de sonhos, ou melhor, pesadelos. Aquele último, enigmático sonho, o fez pensar novamente na figura que o havia guiado até Lorguth. A espada estava bem segura entre seus braços. Apertou-a mais para junto de si. A lembrança da Montanha e do Velho era o único laço que ele conseguira manter com o seu passado. A única memória intocada. O resto era nada mais que ruínas em sua mente, cinzas de um esplendor perdido. Imagens confusas que se mesclavam com ilusões e incertezas.

Caía a tarde sobre as terras a nordeste do continente uma vez conhecido como Dredhera. Nos últimos anos esse nome fora esquecido, a não ser por escassos estudiosos que ainda mantinham os escritos antigos de uma língua considerada morta. A noite em breve chegaria, caindo sobre o reino de Dhar. Mas as sombras que se estendiam não provinham do ocaso próximo. A cidadela de Arnoll era gradativamente coberta por uma sombra espessa que se espalhava, vinda do norte, uma sombra que se instalava no peito dos guerreiros mais bravos e fazia estremecer cada habitante de Arnoll. Ainda abalados pelo assalto e pela retomada da cidadela, os moradores, quase em pânico, encolhiam-se em suas casas, imersos na expectativa da morte.

Continua...