segunda-feira, abril 30, 2012

Reencontro


Foi um momento inusitado, aquele encontro. Os dois se viram no mesmo lugar, aquele mesmo lugar, que um dia tanto significou para ambos. A galeria de arte era a mesma. O quadro observado, já era outro. No frio daquele corredor de mármore, tão diferente após anos de distância, dois corpos que já se pertenceram agora se encontravam, casualmente. Os olhos eram outros; os dela, tristonhos; os dele, austeros. Mas seria inverdade afirmar que os corações também não eram mais os mesmos. Reações? Nenhum as externou. Foram mantidas por trás da máscara da maturidade. Eram somente dois estranhos que admiravam a mesma obra de arte. A galeria que há muitos anos atrás já lhes havia sido tão familiar, pretexto para encontros tão agradáveis, parecia-lhes agora um mundo totalmente estranho. Estavam sós, ninguém os observava a não ser um busto de pedra, testemunha daqueles dois oceanos que se encontravam num silencioso estardalhaço.
Ele subitamente virou-se e a encarou. Ela permanecia imóvel, estranha e titânica, porém sublime imagem. Ele tentou falar, abriu lentamente a boca, mas faltou-lhe força e fôlego para tanto. Ela, embora sem demonstrar, era toda conflito. Com leve timidez, ela gentilmente tocou aquela vincada e bruta mão masculina. Surpreso, ele estremeceu, açoitado por uma energia nova. Retribuiu o gesto, envolvendo aquela graciosa e delicada mão dela. Eram outros, cada outro em si mesmo, projetando-se em seu parceiro. Eram um, eram vários, infinitos. Eram a galeria, o quadro sem cor ou graça, o busto de pedra. Eram ninguém. Naquele momento, nenhum dos dois perguntou-se o que viria depois.

sexta-feira, abril 27, 2012

As Crônicas de Nárnia - O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa


"Dizem que Aslam está a caminho. Talvez já tenha chegado", sussurrou o Castor. Edmundo experimentou uma misteriosa sensação de horror. Pedro sentiu-se valente e vigoroso. Para Suzana, foi como se uma música deliciosa tivesse enchido o ar. E Lúcia teve aquele mesmo sentimento que nos desperta a chegada do verão.

Ninguém imagina que mundo mágico pode ser encontrado atrás de cada porta. Quer dizer, pode ser até que imaginemos, embora essa fantasia não passe mesmo de brincadeira. Quem nunca brincou de faz-de-conta em sua infância? Que imaginava mundos incríveis habitados por criaturas fantásticas em seu quintal? Quem nunca atravessou uma porta, rumo a um esconderijo particular, esperando que um dia esse esconderijo se tornasse um reino mágico? Mas e se esse desejo pudesse tornar-se realidade? E se, mais do que realidade, essa aventura fosse um verdadeiro perigo? E foi isso mesmo que aconteceu com Lúcia e seus irmãos.
Enviados para a região rural da Inglaterra durante a II Guerra Mundial, os irmãos Pedro, Edmundo, Suzana e Lúcia passam o tempo explorando o enorme e antigo casarão onde estão hospedados. O plano de uma boa brincadeira pelos campos é frustrado por um temporal que parece não ter fim. Para matar o tempo, os irmãos decidem brincar de pique-esconde na enorme mansão. É durante essa brincadeira que Lúcia, a mais nova dos quatro, encontra uma sala vazia onde há apenas um gigantesco guarda-roupa. Resolvida em esconder-se no interior do móvel, a menina acaba descobrindo que o fundo do guarda-roupa dava para uma terra repleta de neve. No pouco tempo que passou lá, Lúcia descobriu que aquele lugar chamava-se Nárnia e que era dominado pela tirana Feiticeira Branca, que por sua magia mergulhou seus domínios em um eterno inverno.
Depois desse breve encontro, Lúcia retorna pela mesma passagem do guarda-roupa. Seu relato é considerado pelos irmãos como mera imaginação. Os quatro, contudo, em breve acabam por descobrir que o destino deles estava ligado ao guarda-roupa e ao mundo de Nárnia de uma forma mais profunda do que poderiam imaginar. Levados novamente pela mesma passagem, os quatro meninos e meninas irão envolver-se em uma intensa aventura pelo futuro e pela liberdade desse país congelado. 
O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa é a primeira obra da renomada série As Crônicas de Nárnia, embora tenha sido publicada pela Editora Martins Fontes como o segundo volume da série, escrita por C. S. Lewis, professor de Literatura na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Pelo trabalho de competência e talento, Lewis tornou-se referência para inúmeros escritores atuais. Para aqueles que querem conhecer sua obra, divertir-se ou apenas presentear alguém com uma narrativa incrível, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa sempre será uma ótima escolha.

Ficha Técnica:
Título: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa
Autor: C. S. Lewis
Editora: Martins Fontes
ISBN:  8533616155
Ano: 1997
Páginas: 180
Tradutor: Paulo Mendes Campos

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/1097

quarta-feira, abril 25, 2012

Tem uma literatura no meu sapato


Semana passada tivemos aqui em BH o 7º Seminário Beagalê, com o tema "Leituras e escritas incômodas". Já discorri aqui sobre a conferência de abertura, que contou com a postura forte e precisa do escritor Ricardo Azevedo.
Foram quase três dias de conversas que passearam da agradável formalidade ao tom acadêmico. As escolhas para os nomes não foram fáceis, pois o tema tende a ser espinhoso bem como esponjoso. Afinal, o que é esse incômodo que foi tão discutido nesse seminário?
Não pretendo aqui reproduzir tudo o que foi falado e debatido afinal, não tenho competência para tanto. Gostaria, porém, de resgatar alguns pontos recorrentes nas falas de grande parte dos convidados, que identificaram alguns fatores que interferem na produção literária (e na sua consequente apropriação) e que ajudariam a definir algumas fronteiras de sentido sobre o que seria o incômodo que permeia tantas escritas e leituras.
A literatura vive acossada pelo constante discurso do politicamente correto, que não só dita discursos e temáticas, mas vigia o que já foi escrito, interferindo em leituras. Não sejamos, contudo, ingênuos. Há diversos interesses nessa constante interferência. Não apenas ideológicos, mas também morais, religiosos e, sobretudo, econômicos. Afinal, o politicamente correto pasteuriza os discursos, propiciando um texto no padrão para um público também no padrão.
Assim, a produção literária se conforma a uma linha de montagem, acompanhando a lógica de produto. O livro, que era para ser um bem cultural, fica mais parecido com um BigMac.
Enquanto isso, uma outra literatura nada contra a corrente (ou mainstream). Essa literatura vive à margem, seus autores estão submersos por centenas de livros que entopem as vitrines de livrarias. Esses autores, escondidos nas prateleiras, ou em depósitos empoeirados, a custo sobrevivem.
Durante o seminário, alguns convidados defenderam com veemência a liberdade da criação literária. O autor tem compromisso com sua literatura, não com imposições e encomendas do mercado editorial. E esse compromisso se reflete na busca por um texto que provoque, sim, incômodo, que cause um deslocamento, faça o leitor sair de sua posição de conforto. 
É um grande desafio fazer com que essa literatura incômoda chegue ao leitor padrão, acomodado e acostumado com confortos estéticos. Um desafio lançado também a nós, leitores, agentes ativos de reflexão e contestação desta sociedade cada vez mais alienada, dependente do mero entretenimento.

segunda-feira, abril 23, 2012

Colapso

Ele acordou com um sobressalto. Havia cochilado sobre a mesa de trabalho novamente. Estava cansado, extenuado. Olhou as horas. Vinte minutos para o final do expediente. Pensou em passar o resto do tempo conferindo as atualizações das redes sociais que participava e visitando os blogs armazenados nos favoritos. Afinal, vinte minutos não são nada e ele adorava passar esse tempinho conferindo o que seus amigos estavam fazendo ou pensando.
Conectou-se à segunda maior rede social. Achou estranho quando descobriu que a última atualização era uma piada postada no dia anterior. Antes da piada, o link para um clip de vídeo, precedido de algumas citações filosóficas. Resolveu acessar sua outra rede favorita e descobriu que da mesma forma ninguém havia postado atualização nenhuma. Apenas a famosa rede de microblogs tinha atualizações, com as mesmas frivolidades de sempre: uma celebridade falando sobre o novo penteado de seu cachorrinho, links para propagandas de produtos diversos, um comentário sobre um show imperdível. A postagem mais recente tinha uma curiosa frase:
“A vida nos atravessa qual adagas imortais.”
O mais curioso era que a mensagem não parecia ter sido postada por autor nenhum. Estava lá, sem um responsável assinando seu cabeçalho. Meneando a cabeça, ele resolveu acessar um portal de conteúdo que costumava sempre promover os blogs mais quentes do momento. A lista não havia sido atualizada, ainda era a da semana passada. Intrigado, ele começou freneticamente a procurar um blog com uma atualização sequer. Não teve sucesso.
Chegou em casa e deitou-se imediatamente; sentia-se muito cansado. Teve um sono agitado, com prenúncios de sonhos que o sobressaltavam e o faziam acordar algumas vezes à noite. Seu despertar foi dessa forma penoso e resignado. No dia seguinte, os blogs continuavam desatualizados. No horário de almoço ele comentou com um colega sobre o fato, mas o outro não se mostrou nem um pouco admirado, como se tal acontecimento fosse normal. Outros também concordaram. Um dos colegas por fim declarou que finalmente as pessoas começavam a parar de achar que sempre tinham algo a dizer. Assim, a conversa morreu.
Mais uma noite conturbada. Dia seguinte, ele observou que a rede de microblogs tinha mais uma postagem anônima:
“O movimento é um indicador da vida.”
Para tentar satisfazer sua compulsão por atualizações da rede, resolveu acessar um site de notícias para verificar se havia algum fato no mundo que pudesse explicar o que estava acontecendo. Para sua surpresa, o site também estava desatualizado. Nenhuma notícia com menos de três dias de antecedência. Começou a sentir medo. 
Outra noite maldormida arrastou seu despertar até a manhã seguinte. A caminho do trabalho, ao entrar no ônibus, ele reconheceu alguns passageiros, que estavam vestidos com as roupas do dia anterior. Pareciam não se mexer. Uma moça de rosa estava bem ereta, com os olhos esbugalhados, sem piscar. Um rapaz mantinha a cabeça levemente inclinada e os olhos voltados para um livro cuja página nunca era virada. Um senhor que furtivamente enfiava o dedo no nariz permaneceu nessa posição durante a viagem toda.
Assustado e confuso, ele desceu como se alguém o perseguisse. Pessoas se mantinham imóveis, qual estátuas no meio da rua. Olhou para cima e quase teve um ataque quando viu um pássaro parado em pleno ar. No trabalho, ligou o computador e constatou que não havia nada de diferente, inclusive nas atualizações da rede de microblogs, a não ser uma nova mensagem anônima, de apenas uma frase:
“Só não vemos o que não queremos ver.”
Começava a desconfiar que essas mensagens poderiam ser para ele. Mas o que tudo aquilo queria dizer? Além dele, ninguém parecia surpreso com o que ocorria. Nenhum dos colegas de trabalho dava atenção ao assunto. 
No fim do expediente, ao sair do edifício, assustou-se mais ainda com a quantidade de pessoas estagnadas na rua. Tudo estava acontecendo tão rápido! Ele apressou o passo para o ponto. O ônibus estava lá, parado, o motorista continuava com a mão direita no volante e a outra estendida para fora do ônibus, sorrindo e saudando um jornaleiro que também retribuía com seu interminável aceno. Acabou decidindo tomar um táxi que ainda se movia.
Chegou em casa muito assustado. Ligou a televisão, mas a imagem estava congelada no cenário do telejornal da manhã. Ele dirigiu-se então direto para cama, suplicando para que tudo aquilo fosse um pesadelo. No dia seguinte, ao abrir a porta, avistou muitos de seus vizinhos paralisados ao longo da calçada. Pegou um outro táxi para o trabalho. O veículo mal podia avançar por ter que desviar dos outros veículos parados no meio da rua. Chegando ao serviço, notou que todos já estavam lá, mas parados e silenciosos como bonecos de cera. Ligou, trêmulo, o computador. Acessou freneticamente a rede de microblogs e deparou-se com uma derradeira mensagem:
“O colapso não é um fato em si, e sim o clímax de um processo.”
Olhou para o relógio em seu pulso. Seus olhos se arregalaram quando ele viu a verdade e uma gota de suor ficou estática entre sua têmpora e sua bochecha. Os ponteiros do relógio pararam, tal qual as batidas do seu coração.

sexta-feira, abril 20, 2012

Histórias folclóricas de medo e de quebranto

Uma coletânea de histórias medievais que abordam o maravilhoso, o amor, a força da vontade o eo poder da vida. Ricardo Azevedo reuniu nesse livro narrativas orais de média duração, que falam de longas jornadas e de segundas chances, que vêm não sem um grande esforço. Em todas elas, está clara a mensagem de que cada homem é dono de suas escolhas, não importa sua índole. Dou destaque à narrativa "A vida e a outra vida de Roberto do Diabo".
Em alguns contos, a mulher, na pessoa da rainha, entra como agente causador ou catalisador do conflito, sendo que este contribuirá para uma possível corrupção do protagonista. Em outro conto é a velha anfitriã do herói.
Outro agente catalisador é o rival, que cria um conflito de outra natureza, e que forçará o herói a assumir seu papel e lutar.
É importante destacar também que o inusitado e o maravilhoso sempre estarão presentes na coincidência ou no aparecimento do ente encantado, na figura de um príncipe, ou princesa, que deve ser salva pelo herói, arrancada de um estado de maldição ou perigo. Em todos os casos, a prova a ser ultrapassada estabelece o fim do conflito e a recuperação do herói.
As narrativas que deram origem às histórias presentes no livro são originadas do folclore português. Ricardo Azevedo, em sua condição de autor, faz um excelente tratamento literário, buscando eliminar os elementos moralizantes e o tradicional desfecho "eternamente" feliz. Ainda que a conclusão da narrativa seja venturosa, não há aquela ideia de eterna felicidade, como claramente se percebe nos contos de fadas, mas apenas a consciência de que a narrativa acabou, enquanto que a vida seguirá seu curso. Outro fator interessante no tratamento literário é a forma em que o autor tece sua narrativa, valorizando as lacunas e silêncios, como se a própria história fosse contada a boca pequena, sussurrada clandestinamente.
Histórias folclóricas de medo e de quebranto é uma obra bela, despretensiosa e, acima de tudo, humana. Garantia de uma leitura poderá levar o leitor ao deleite, mas também o fará pensar nas contradições de seu próprio ser.

Ficha técnica:
Título: Histórias folclóricas de medo e de quebranto
Autor: Ricardo Azevedo
Editora: Scipione
ISBN: 8526228986
Ano: 1996
Páginas: 88


Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/13539

quarta-feira, abril 18, 2012

Literatura e (f)utilidade

Auditório lotado. É momento de silêncio descontraído. Espocam aqui e ali cochichos discretos. Todos esperam que o famoso escritor Ricardo Azevedo comece sua fala.
De um jeito que passeia entre o brincalhão e o tom professoral, ele desfia sua prosa. Como se fosse íntimo da plateia, chama todos para uma maior proximidade, para uma conversa franca. Sua voz quase deixa o público com a sensação de estar sentado à sala de visitas, para um cafezinho. 
Falando do que lhe é comum, Ricardo comenta sobre a diferença entre a cultura oral e a moderníssima atualidade. Comenta sobre a improvisação, algo comum às sociedades orais, enquanto a sociedade moderna tem tudo planejado, sob medida.
Assim, o escritor define: vivemos num mundo de simulacros, dominado pela técnica e pela especialização exagerada. E assim produzimos um sujeito também sob medida, que irá consumir produtos feitos exclusivamente para ele. Uma corrida rumo ao consumo. Infelizmente, a literatura acaba sendo julgada com esses mesmos padrões. Assim, o mercado busca ditar o que deve ser escrito. Um texto que provoque o descompasso é julgado inconveniente, pois, como acreditam alguns educadores, literatura também deve ter utilidade.
Com uma sutil ironia, Azevedo defende que a literatura não deve ter utilidade nenhuma. Não que ele acredite na inutilidade do texto literário, longe disso. Assim como as demais linguagens artísticas, a literatura é algo inerente ao ser humano, sendo um espaço para realização e reconhecimento de si mesmo e do outro. A literatura é um espaço para a reflexão, para a possibilidade de tocarmos o infinito que é o outro.
Ao encerrar, o escritor recorre à poesia, citando textos que se sustentam, sem a necessidade de justificativas para sua existência. Ao recitar o belo e inesquecível poema "Os dois lados", de Murilo Mendes, Ricardo Azevedo evoca o que talvez exista de mais belo e frutífero no ser humano: sua indefinição.

Este relato foi produzido em questão da conferência de abertura do 7º Beagalê - Leituras e escritas incômodas, realizado em Belo Horizonte, no dia 17 de abril de 2012.

segunda-feira, abril 16, 2012

O Sapinho


Foi por acaso que me dei conta de que ele estava ali, fitando-me com aqueles olhinhos pretos e redondos. Ergui a cabeça. "Que lagartixa engraçada", pensei, "parece aleijada". De fato era como se fosse meia-lagartixa. Pele verde-clara quase transparente, mostrando o aparelho digestivo, patinhas dianteiras estendidas para frente, sempre exploradoras, patinhas traseiras bem recolhidinhas, como se nem existissem. Sem cauda nenhuma. Uma lagartixinha bem estranha. Mas segundos depois concluí que não era nada disso. Era um sapo, bem pequenino, grudado à parede do banheiro, perto do teto. Achei-o engraçadinho logo de início. Ele também me olhava, estudava este gigante com igual atenção. Fiquei ali, à mercê daquele olhar que misturava inocência, inconsciência mas também algo misterioso que eu não podia explicar. Era como se houvesse uma comunicação silenciosa e ancestral entre nós. Como se ele já soubesse quem eu era, como se estivesse lá para me encontrar. Intrigado, quase esqueci de escovar os dentes. 
Durante várias noites foi assim, com esses encontros pitorescos ocorrendo com maior freqüência. Eu escovando os dentes, meus olhos passeando por sobre o armário do banheiro, perscrutando, encontrando meu estranho hóspede. Ficava me perguntando: De onde viera? Seria do ralo do esgoto? E porque decidira ficar? O que o ligava à minha casa? Ou melhor, ao meu banheiro? Idéias loucas começaram a surgir. Talvez fosse um alienígena buscando uma forma melhor do que a de um sapo, um corpo melhor. Só poderia ser um alienígena, para parecer tão inteligente e sensível. Estava esperando um momento de distração minha para se lançar sobre minha cabeça e implantar seus ovos subversores que me tornariam em habitação para esse ser. Eu então escovava os dentes com rapidez, temendo um ataque surpresa. 
Com os dias passando, já que o suposto alien não tentava nenhuma abordagem, abandonei essa suposição. Passei a olhá-lo com maior simpatia. Certa noite sofri ao pensar que o teria machucado quando fui levantar a tampa do vaso. Mas meu amigo, esperto, previu o acidente e esquivou-se a tempo. Eu estava feliz, tinha um colega de banheiro. Não desperdiçava palavras com ele, somente essa comunicação silenciosa que alguns seres vivos ainda mantêm entre si. Estava quase completo, observado, importava-me saber se o sapinho estava lá. E sentia que ele também se importava. 
Até que, uma noite, dei falta de meu amigo. Onde estaria? Procurei-o ligeiramente com meus olhos, sem encontrá-lo. Na manhã seguinte, enquanto me arrumava em frente ao espelho do banheiro, uma mancha cinza sob a pia chamou minha atenção. Era escura, amassada, e tinha dois olhinhos bem pretos e redondos. Olhinhos já sem vida. Alguém de minha casa havia esmagado o sapinho. O meu sapinho. 
Amargurado, encenei um pequeno funeral, onde eu empurrei com a ponta do pé meu finado companheiro, como que dizendo Adeus. 

sexta-feira, abril 13, 2012

7º Seminário Beagalê: Leituras e escritas incômodas

17/04, às 16h: Abertura com Thaís Pimentel ( Presidente da Fundação Municipal de Cultura e Sílvia Esteves ( Diretora de Bibliotecas e Centros Culturais).

16h30: Ricardo Azevedo

18/04, às 9h: Dolores Prates e Léo Cunha
14h: Sérgio Alcides e Maria da Conceição Carvalho

19/04, às 9h: Marçal Aquino e José Rezende Junior
14h: Elvira Vigna e Francisco Morais Mendes.

Inscrições: beagale@pbh.gov.br
Informações: 32771959
32778672

terça-feira, abril 10, 2012

Paixão

Teu filho morre hoje, Senhora. E não adianta; não há mortal (ou imortal) que se compadeça de teu sofrer. Escuta: esse é o som das tropas. Vêm levá-lo de ti. Ele, tua eterna criança.
Calma! Cessa o fragor de teu peito. A madrugada está longe do fim, o galo ainda não canta. Qual o sentido das lágrimas, Senhora? Guarda-as para um momento mais público.
Afinal, o grão de trigo deve morrer. Olhos ávidos, repletos de dentes, aguardam ansiosamente o fim. Olhos que jamais se fecharam continuam sempre atentos. O espetáculo é necessário, pois traz em si a fascinação do fogo.
Em momento propício, luta. Rasga tuas vestes já negras de antecipado luto. Teu choro não será conformado, lânguido. Será um brado de horror contra a injustiça dos homens. Tua angústia será fúria marítima, rugido da fera a proteger sua cria. Não és mais humana, Senhora; és Ideal. Tua mão ergue a bandeira em prol do futuro dos homens, teus seios estão fartos do leite que será alimento dos povos.
O escuro é preciso, grávido de possibilidades. O escuro de fora, que adensa a noite, logo se fundirá a teu escuro de mãe abortada. Esta noite prenuncia a noite a abraçar teu filho. Em breve, será outra a mãe de teu menino.
Súplicas são inúteis, bem o sabes. Pelo menos para salvar teu filho. Através dele, porém, muitos serão salvos. Teus gemidos vencerão o tempo e tuas lágrimas, os séculos. Teu clamor não será apenas por um, mas por todos os filhos do mundo.

segunda-feira, abril 09, 2012

Sorte

As luzes de néon atravessam as persianas transversais que tampam parcialmente a janela do quarto de hotel. O ambiente sombrio é banhado por irregulares raios multicores. Uma música latina toca do mesmo local de onde partem as luzes: o cassino Trevo Verde. Um homem permanece deitado no chão do quarto. Várias garrafas de wisky barato estão vazias, espalhadas ao seu redor. Caixas de antidepressivos amontoam-se sobre o criado-mudo ao lado da cama. Do outro lado do quarto, em frente à cama, uma escrivaninha. Uma carta endereçada a certa mulher havia sido embolada e depois aberta sobre a superfície de madeira. O homem continua inerte, está nu, de bruços. Ele é careca, aparenta ter entre quarenta e quarenta e cinco anos e seus traços são ordinários. Deve ter uns setenta e cinco quilos, e cerca de um e setenta de altura. Não respira, está morto. A carta, amarrotada e borrada, com frases riscadas, tem apenas algumas palavras: “O que fiz, fiz por ti, apesar de teu procedimento. Adeus.” Na primeira gaveta da escrivaninha, uma foto de família. O homem, uma mulher de traços índios e cabelos crespos, uma menininha sorridente. Na segunda, uma arma junto à carteira da Polícia Civil. Na última, um comprovante de depósito.
Na manhã seguinte, a manchete:
– Ganhador da Mega-Sena suicida-se em hotel da Capital.

sexta-feira, abril 06, 2012

Haroun e o Mar de Histórias - A Palavra no seu melhor papel

Fonte: divulgação
Haroun e o Mar de Histórias apresenta ao leitor o menino Haroun, de dez anos, filho do contador de histórias Rashid Khalifa, conhecido e aclamado por todos como o melhor narrador da região. Após um triste incidente na família, Rashid enfrenta problemas com seu talento em narrar. Haroun então descobre que seu pai é nutrido por uma torneira mágica, proveniente de uma lua invisível, onde está o Mar de Fios de Histórias, em que cada fio é uma história que já foi contada, ou que ainda será. Haroun descobre que esse mar corre perigo, por causa de uma estranha poluição, que está corroendo as histórias. Para evitar o fim do Mar de Fios de Histórias e, consequentemente, o fim do talento do seu pai, Haroun embarca em uma jornada em busca da resolução do problema.
Trata-se de uma narrativa descontraída, repleta de referências às histórias tradicionais, onde os heróis precisam se aventurar em jornadas a lugares longínquos e superar grandes desafios. O autor, Salman Rushdie, se apropria das narrativas tradicionais, aproveitando seus modelos mas também inovando, dando ênfase à arte narrativa e criando um universo belo e factível. Uma ótima aventura para qualquer idade.


Ficha Técnica:
Título: Haroun e o Mar de Histórias
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras (Companhia de Bolso)
ISBN: 9788535916980 
Ano: 2010
Páginas: 184
Tradutor: Isa Mara Lando

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/13024

terça-feira, abril 03, 2012

Esperto demais para a sua idade

Isso tenho certeza que nunca fui. Ainda me lembro quando vozes alheias, adultas, falavam sobre este pequeno ser em formação: garoto problema. É atrasado demais, alheio, disperso, melancólico, ordinário.
No caderno escolar, as marcas da expectativa frustrada. Letra vermelha, expressão triste do boneco da forca. Um futuro sufocado se delineava na pauta escolar. Precisa se esforçar mais. Esse era o recado escrito. E eu continuava sem saber que esforço era esse. Afinal, já era tão difícil conseguir ficar tanto tempo olhando para o quadro negro, prestando atenção na monótona voz da professora. O recado, porém, estava dado. O menino rendia pouco.
Sem querer, fugia. As imagens infantis invadiam minha realidade. Brincar? O tempo todo. Tecia histórias, inventava reinos que caberiam em meio metro de quintal. As galinhas viravam dinossauros, as formigas eram montadas e os muros viravam montanhas a serem escaladas. Todo lugar era um mundo particular. Nele eu era Rei.
Hoje, adulto, ainda invento devaneios infantis. Ainda me perco nos labirintos do sonho. E quando desperto dessas fantasias, descubro mais uma vez ter chegado atrasado à realidade. Predomina a sensação de inadequação, de insuficiência. Continuo ordinário, alheio, disperso. As palavras faltam, perdidas em seus significados. Fico assim, a cada dia adiado, no frustrante silêncio da impossibilidade. 

quinta-feira, dezembro 22, 2011

Um conto de natal – Parte Final


O duende jogou-se aos pés do Papai Noel. As crianças, horrorizadas, foram esconder-se atrás dos seus pais. Os seguranças pararam a alguns metros de distância, como que para observar a conversa que aconteceria dali em diante. Apesar da confusão de todos, o bom velhinho continuava calmo e sereno.

– Papai Noel – disse o duende –, eu não posso acreditar que encontrei o senhor. Sou o único que restou de todos nós. Não sei mais dos outros. Agora estou feliz porque o senhor vai cuidar de seu duende-mestre, do supervisor da sua antiga fábrica de brinquedos.

– Afaste-se, Dimas. – disse o velhinho, calmamente – Nossa fábrica faliu, estou fazendo esses bicos para ver se pelo menos consigo tirar meu nome do SPC.

– Mas, Pa..Papai Noel... – o duende parecia horrorizado ante a frieza de seu antigo mestre. – Eu avisei ao senhor para que não mudássemos nossa moeda, que transferir-se para o Brasil não seria uma boa idéia, faria mal para as renas, mas o senhor insistiu em não manter nossas transações em ouro e ainda por cima quis comprar um chalé na Serra da Mantiqueira...

– Eu sei, Dimas, eu sei – retorquiu o velhinho, com um sorriso entre a bondade e a tristeza. – Estou pagando caro por minhas ideias. Nossos investidores quebraram. O Banco do Pólo Norte pediu concordata e conflitos mundiais me encheram de temor. Pensei que seria um bom negócio vir para cá. E onde estão os outros?

– Acabaram-se – o duende baixou os olhos, com um olhar triste –, todos viraram gesso ou pedra. Eu acho que Kalil está entre aqueles enfeites ali.

E apontou para os falsos duendes do Shopping. Pelo visto um deles não fora falso um dia. Eu permaneci calado. É, parece que a crise atingiu até mesmo o Papai Noel! Pensei que o bom velhinho, um dos símbolos do Capitalismo, seria o único imune a suas adversidades. Os dois continuaram sua conversa. Noel mantinha uma expressão cada vez mais fria e severa. O duende, por sua vez, curvava-se cada vez mais.

– Papai, por favor, me aceite a seu serviço. Eu posso ser seu assistente, como antes!

– Impossível, caro Dimas. Eu só posso pagar duas assistentes e – Noel apontou as moças que o acompanhavam –, como vê, não há como eu deixar uma dessas duas lindas jovens sem amparo financeiro, em troca de um molenga como você!

– Mas, mas...

– Chega de “mas”, Dimas! – a voz do velhinho foi enérgica, fazendo o duende encolher-se. – Não quero ouvir mais suas lamúrias. Se quiser, torne-se gesso de uma vez e faça companhia para Kalil. Talvez o Shopping deixe você aí junto com os outros enfeites e, no final da temporada, encontre um lugar quente e seco para te guardar até o próximo natal. Essa é minha única oferta!

Dimas, entristecido, baixou os olhos. Fora vencido, não havia para quem mais recorrer. Eu olhava com compaixão para o pequenino duende. Pensei até em convidá-lo para trabalhar para mim, como faxineiro talvez. Mas ter um duende em casa talvez não seria lá uma coisa muito comum de se ver. Eu seria alvo de curiosos, telejornais, mídia. Eu não queria publicidade, queria só um conto de natal. Enquanto eu ponderava sobre as vantagens e desvantagens de se ter um duende em casa, Dimas foi lentamente se transformando. Aos poucos tornava-se uma figura mais fictícia do que real, feita apenas de gesso e tinta. O duende agora não passava de uma estátua velha e mal pintada.

Esfreguei bem os olhos, como se estivesse saindo de um transe. Olhei para aquela figurinha triste, enquanto, para minha admiração, as pessoas voltavam às suas preocupações normais. Papai Noel já voltara a atender as crianças com o sorriso mais bonachão do mundo, enquanto os pais riam e conversavam uns com os outros, esperando na fila a vez de seus pequeninos. Somente eu estava maravilhado. Somente eu me preocupava com o duende. Deixei o Shopping com pressa, ouvindo uma música fúnebre, saindo de não sei que lugar, sobrepondo sorrateiramente a música natalina que enchia todo o ambiente.

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Um conto de natal – Parte I


Eu caminhava pelas movimentadas ruas do centro, tentando inutilmente proteger-me do frio com a gola da minha jaqueta. Sim, este é um conto de natal, e todo conto de natal tem que ser aclimatado em uma baixa temperatura, se possível com neve e pessoas taciturnas, cobertas de casacos. Mas estamos em um natal dos trópicos e, por isso, não haverá neve e será verão. Providencialmente, uma frente fria chegou. Motivo do frio que veio a calhar perfeitamente em nosso conto.

Estou andando, sim, tentando não esbarrar com nenhum dos frenéticos cidadãos que precisam fazer suas compras de véspera de natal. Milhares de pessoas acotovelam-se na calçada, em busca de tentadoras ofertas que façam seu presente valer até o último centavo. Eu, porém, não compartilho desse frenesi. Ando à revelia, estou buscando uma cena que sirva de inspiração para meu conto. Infelizmente, apesar do frio, meu natal está pobremente provido de elementos inspiradores. Não existem papais noéis balançando sininhos e pedindo esmolas. Isso é coisa de filme americano. E na verdade quase não vejo Papai Noel algum. Eles estão todos confinados aos Shopping Centers.

Uma idéia atravessa minha mente. É isso! Talvez em um Shopping, devidamente ambientado de acordo com o espírito do natal, eu possa encontrar a inspiração certa para um lindo conto. Sigo quase correndo para o Shopping. Estou com pressa, assim como todos os compulsivos compradores, mas não quero comprar nenhum presente. Quero na verdade criar um conto, presentear o mundo com uma história comovente, talvez até resgatar minha alma.

Entrei pelos altos portões de vidro e senti uma lufada do ar condicionado, mais fria do que lá fora. O caloroso espírito do natal evidentemente já tomava conta dos corredores do Shopping, abarrotado de pessoas que só paravam poucos segundos diante das vitrines para examinar quase mecanicamente os produtos exibidos. Fiquei observando esse bando de autômatos, enquanto andava, calmamente, pelo largo corredor, já assimilando a magia que enchia os enfeites de natal. Tudo é paz, tudo amor. Uma música natalina quase não conseguia superar o barulho de vozes e passos apressados. Segui pelo corredor até chegar ao pátio central, onde uma imensa árvore de natal fora armada.

Meus olhos pararam diante dos enfeites. O trenó, as renas, os duendes, todos inanimados. Somente o Papai Noel esbanjava vida, cobrando módicos valores aos afortunados pais que quisessem satisfazer a vontade de seus filhos de tirar uma foto sentados no colo do bom velhinho. Enquanto eu divagava diante da cena das crianças quase se esmurrando para ter a primazia junto ao Papai Noel, um tumulto começava a surgir alguns metros atrás de mim.

Antes que eu pudesse me virar para observar do que se tratava, o causador da bagunça já passava por mim e andava apressado na direção do trono do velhinho Noel. Assustei-me com a figura. Parecia uma criança, à primeira vista, devido à baixa estatura. Mas, gastando um pouco mais de atenção no exame, qualquer um veria que aquela pessoa não seria uma criança de fato. Seus cabelos eram grisalhos e lisos, embora grossos e cobertos por um gorro verde. Tinha-os na frente aparados rente aos olhos e, atrás, na altura na nuca. Um par de orelhas pontudas despontava além do gorro, insinuando que aquela pessoa não era um ser humano. Seus olhos eram astutos e confiantes, embora estivessem um pouco tristonhos, adornados por sobrancelhas expressivas, também grisalhas. Um bigode espesso cobria o lábio superior, dando à criaturinha um certo ar de autoridade. Sua roupa era toda verde, guarnecida de guizos prateados.

A princípio, quis negar o que meus olhos denunciavam e imaginei que poderia ser um anão fantasiado, talvez um mendigo que conseguira driblar os seguranças, que seguiam atrás dele.

De fato, sua roupa não estava lá um primor. Tinha vários remendos e alguns guizos faltavam, enquanto outros estavam manchados, escurecidos pela ferrugem. Aquelas orelhas não pareciam ser falsas, é verdade, mas existem hoje fantasias que simulam totalmente um personagem natalino. E esse sujeito era idêntico às estátuas de duendes que acompanhavam o trenó e as renas de mentira que enfeitavam a árvore de natal do Shopping.


sábado, dezembro 03, 2011

A Sombra do Vento - A sombra do livro



Quando um livro deixa de ser mero objeto? Na resenha passada, falei sobre esse poder que algumas obras literárias (se não todas) sobre nossas almas e que nunca somos os mesmos após a leitura de um livro.

Nem sempre somos fisgados ou cativados por um texto, por mais sedutor que ele seja. Pode acontecer, no entanto, que sejamos seduzidos sem nem sabermos. Torcemos o nariz para o livro durante toda a leitura para, ao fecharmos as páginas, descobrirmos que a história não será esquecida, que fará parte de nós, que a narrativa irá reverberar em nós, durante nossos silêncios, acompanhando nossa jornada na vida como uma sombra.

Foi um pouco do que aconteceu quando terminei a leitura de A Sombra do Vento. Uma leitura controversa, confesso. Isso porque o livro, por mais bem escrito (as imagens literárias são lindas), ainda não havia cativado este leitor aqui. Continuei resistente até próximo ao final, mais especificamente ao fim de uma parte que se constitui o depoimento de uma das personagens mais importantes da trama. Descobri que estava amando a história.

A Sombra do Vento, obra de Carlos Ruiz Zafón, tem início quando Daniel, protagonista e narrador, desperta em sua cama desesperado, ao descobrir que não se lembra do rosto de sua mãe falecida. Daniel tem então dez anos. Seu pai, um homem sensato, sábio e sobretudo culto, resolve partilhar com o garoto um importante segredo: O Cemitério dos Livros Esquecidos. Nessa mistura mágica de biblioteca e necrópole, o menino encontra um livro que irá mudar para sempre sua vida: A Sombra do Vento, escrito pelo obscuro Julián Carax.

O livro deixa o garoto tão comovido que ele passa a ser admirador de Carax. Infelizmente, não há muita informação sobre esse homem e os anos passam sem que Daniel saiba muito mais. Aos dezessete, porém, uma série de acontecimentos, dentre eles uma forte decepção amorosa, lançam Daniel em uma cruzada arqueológica cujo objetivo é desenterrar as obras e o passado de Julián Carax. Cruzada que se revelará cada vez mais perigosa, à medida que diversos personagens vão se revelando.

Durante a leitura, muitas vezes me perguntei sobre o sentido do título. Afinal, o vento não teria sombra. Quem leu de certa forma sabe a resposta. Apesar da beleza das últimas palavras do romance, pensei em uma gama mais profunda de significados. Na interpretação, damos muito valor ao que foi dito, mas existe também o não dito. Como Clarice Lispector bem disse, as palavras não existem para que as entrelinhas sejam estragadas. Elas servem para realçá-las.

Sendo assim, quando Zafón batiza seu romance com esse título, cria uma bela imagem poética, mas também fala sobre o valor da sombra na trama. Afinal, Carax é um personagem obscuro. Além de ter sido um jovem sombrio, o personagem também é quase desconhecido, quase vivendo na sombra. Se a razão é a luz, a loucura seria a sombra. E não podemos negar que um dos temas mais fortes presentes neste romance é a loucura.

Outro ponto que se revela como possibilidade é a relação entre obra e autor. Ao lermos um livro, pouco sabemos sobre o seu criador. Afinal, quem é esta pessoa que ficou horas a fio imaginando personagens e dando-lhes forma através de linhas e linhas de texto? O que levou essa pessoa a escrever? Existe algum sentido, alguma mensagem que ele desejava transmitir? Ou ele escreveu por puro prazer? Nem todo mundo se faz perguntas desse tipo, mas não podemos negar que as respostas nem sempre estão lá. Assim como aconteceu com Daniel, essas respostas podem estar nas sombras.

Sendo assim, de uma maneira bem ousada, divago até chegar à conclusão de que o livro seria o Vento e o autor sua Sombra. Ainda que invisível, o vento tem uma força incrível. Pode tanto dar forma quanto destruir. O vento é vida e tempo, pois é movimento em excelência. Movimento sem um objeto físico, sem um corpo. O vento muda o rumo dos barcos a vela no mar, assim como um livro mudou a vida de Daniel. Já a sombra é a pergunta que está além do vento. O que o impulsiona? De onde vem? Para onde vai?

É quase impossível imaginar os contornos da sombra de algo desprovido de forma. Eu disse quase. Esse é o poder das palavras e, a um nível maior, da Literatura. Poder de dar vida a conceitos e imagens que antes julgávamos impossíveis. O poder de dar forma ao mundo, de mostrar que a vida é mais do que parece.

Assim, Carlos Ruiz Zafón, em seu A Sombra do Vento, dá forma a ideias controversas. Algumas quase terríveis, outras sublimes de tão belas. Se você quiser se enveredar por essas ideias, bem-vindo. Se não, pode também se encantar com a glamourosa Barcelona dos anos 1950, sempre bela sob a chuva. Pode testemunhar a beleza do amor adolescente. Tenho quase certeza de que, como eu, você sentirá que a viagem valeu à pena.

Ficha Técnica:
Título: A Sombra do Vento
Autor: Carlos Ruiz Zafón
Editora: Suma de Letras
ISBN: 9788560280094
Ano: 2007
Páginas: 399

Tradutor: Márcia Ribas


Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/103