quarta-feira, junho 06, 2012

Sabores, memórias e sensibilidades

A faca desliza quase inábil entre os dedos. O fio corta a ponta do dente de alho, que é desnudado de forma metódica e meticulosamente descuidada. A cena é quase a mesma da infância: Eu, sentado à enorme mesa de madeira, com uma faca também enorme, tento descascar as cabeças de alho que minha avó irá usar para o feijão preto do almoço. O chão é feito de pequenos mosaicos brancos, encardidos. O cheiro é de velhice e familiaridade, apesar de minha tenra infância. Além da mesa, a porta da cozinha deixa que a luz do quintal, plena de energia matinal, invada o recinto.

A memória se contrasta com o presente. Agora é noite; preparamos um jantar feito de afeto. Uma receita estranha, oriental, guia nossa inexperiência. As vozes se alteiam, alternam-se. Risos tão efusivos quanto o som do alho chiando na panela.

Os sabores são outros, embora o presente se desenhe no amor do passado. O calor da família, ainda que não seja a minha, enche meu peito de ternura. Sou visita, mas faço parte de algo que tem uma beleza tão natural, tão pura, tão viva em simplicidade, que parece despropositada, coincidente. O acaso parece ter nos unido nesse momento não planejado. Contudo, rearranjamos o tempo e o espaço para que sejamos mais que mero acaso.

E assim, olhando nos olhos dela, deixando minhas mãos dançarem entre as mãos dela, sinto-me completo. Nossos olhares trocam cumplicidade. Não estamos cozinhando, estamos criando vida.

O sabor deste jantar supera qualquer outro sabor provado este ano. Minto: não supera o sabor dos lábios dela.

3 comentários:

  1. Amor em estado puro, simples e lindo.

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  2. Tao, tao, tao, que até dispensa comentários!!!

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  3. É tão, tão, tão, que dispensa comentários!!!

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