Para Cíntia Almeida
Seria difícil notar aquele menininho. O corpinho franzino que mentia uma idade inferior; uma inocência ainda maior. Sim, seria quase impossível perceber aquele pedacinho de gente.
Não para quem tinha um olhar como o dela. Todo dia, a caminho do trabalho, os olhos da moça zapeavam o interior do ônibus. Não encontrar indícios de seu silencioso companheiro de viagem era quase que um sinal da desordem no universo. O coração dela saltava no peito rumo a um abismo interior, até que descobria a cabecinha do garotinho semioculta atrás de um outro passageiro. Pudera!
O que tanto atraía seu olhar de menina era a independência do pequeno, sempre desacompanhado, cruzando o centro da cidade em um ônibus repleto de gigantes. Ele, o maior de todos, por enfrentar impávido um mundo tão maior que o seu.
Inevitável seria o desencontro, como de fato se sucedeu. A moça precisou lidar com ausências intermitentes, assumindo a naturalidade de outros percursos, interrupções anteriores. O trajeto do menino começava bem antes do embarque dela; vários acontecimentos poderiam desviá-lo de seu encontro.
Como daquela vez, em que ele não estava. Ela tentou dar de ombros, resignar-se, mas seus olhos o encontraram através da janela, em um outro ônibus, que seguia ao mesmo destino. Lá estava o menino, e como dormia! Em breve chegaria o seu ponto e ele perderia o momento de descer.
Ao perceber o risco que seu companheiro corria, a moça rapidamente sinalizou para desembarcar. Desceu de seu ônibus e sinalizou ao seguinte, o mesmo veículo onde o menino dormia. Subindo os degraus do ônibus de um jeito esbaforido, ela pagou a passagem a um perplexo cobrador e aproximou-se do menino.
Buscou acordá-lo com gentileza. O pequeno abriu os olhos com um sobressalto.
- Oi, desculpa, mas você vai perder seu ponto - disse ela.
O menino pareceu alarmado, pois o ônibus acabava de ultrapassar o ponto em que ele deveria desembarcar. A moça sinalizou novamente para que o veículo parasse. O menino tinha uma expressão ainda confusa e amedrontada. Desceram quando o ônibus parou.
- Você sabe chegar no seu ponto? - perguntou a moça.
O menino apenas balançou a cabeça afirmativamente, embora não parecesse muito certo disso.
- Pode deixar que eu volto o caminho com você.
Ainda um pouco desconfiado, o menino esboçou um tímido sorriso e murmurou:
- Tá, brigado...
Os dois desceram a rua calmamente, intercalando seus passos com uma conversa trivial. O menino ensaiava seus passos junto com as frases que dizia sobre si mesmo. A ela cabia sorrir e encorajar o pequeno desbravador. Chegaram rapidamente ao local onde ele deveria ter desembarcado. Mais uma vez ele murmurou um agradecimento e a moça apenas sorriu, como se fosse ela a agraciada, enquanto um se afastava do outro, acenando um adeus.
Seria difícil notar aquele menininho entre tantos passageiros, entre tantos rostos uniformes e cinzentos. Seria, mas não para o olhar dela.
:o)
ResponderExcluirque fofo
ResponderExcluirAchei maravilhoso sua atenção. Ouviu a história, guardou o momento e escreveu de um jeito tão delicado que até fiquei orgulhosa de mim. :-)
ResponderExcluirColocou em uma caixinha e me entregou.
Nerito, me explique uma coisa, qual a diferença entre um conto e uma crônica? Quais são as caracteristicas de um conto?
ResponderExcluirBem, Fefa, os limites entre conto e crônica nem sempre são definidos. Fica fácil distinguir a diferença quando a crônica é mais reflexiva. No caso do texto acima, escolhi escrevê-lo como conto porque não há presença de um narrador cronista. A voz que surge no texto não é do Nerito e sim de um narrador onisciente "neutro".
ResponderExcluirPara o texto ser crônica, o Nerito teria que aparecer mais e declarar que o que ele está relatando aconteceu com uma amiga, a Cíntia Almeida, e que essa amiga relatou para ele tudo isso que ele agora transcreve aos leitores.
Não foi isso, porém, que aconteceu. A Cíntia não me disse que ficava angustiada quando não encontrava o menino. Ela não disse que a ausência dele dava sinais de uma desordem no mundo. Foram liberdades poéticas de minha parte. Em nenhum momento, também, eu digo que o relato se refere a Cíntia. Isso é uma inferência que pode surgir, verdade, pois o conto é dedicado a ela, mas em nenhum momento o texto diz que o que aconteceu foi com a Cíntia. O comentário dela ajuda nessa inferência, né?
Bem, para ser uma crônica, eu deveria fazer como te disse, preciso deixar o cronista aparecer no texto, seja numa forma opinativa, seja como espectador.
Lógico que minha resposta pode ser refutada... rsrsrs... E então? Este texto é conto ou crônica? ^_^
Um conto é uma narrativa curta. Com a literatura moderna e pós-moderna, a estética do conto (e dos demais gêneros literários) foi modificada, desconstruída, transformada. Ainda assim, para fins de classificação, simplesmente é fácil dizer que o conto é uma narrativa com princípio meio e fim, com aspectos ficcionais e de uma duração relativamente curta. Ufa!
Abraços!
Bastante interessante o texto dedicado a Cíntia. Um fato, pelo que parece, transformado em lirismo e magia. Um conto deveras apaixonante entre duas pessoas que se encontram em seus trajetos do dia a dia, mas que não se conheciam até aquele dia.
ResponderExcluirPois então, Samuca, fiz questão de ler este conto mais uma vez. Reforço o que eu disse: é um dos mais belos aqui postados... Você fez excelentes escolhas de linguagem, para narrar algo tão corriqueiro e , ao mesmo tempo, mágico. O conto tem uma força lírica muito clariceana.Lembra do conto Tentação, da Clarice? Me lembou muito: uma cena cotidiana, duas solidões, um olhar, um encontro e um adeus. E tanta ternura exalando poesia!
ResponderExcluirPutz, gosto mesmo dessa história!
Poxa, Si, valeu mesmo. Você sabe que sua opinião é muito importante, praticamente um veredicto!
ResponderExcluirbjim