segunda-feira, setembro 30, 2013

A Cidadela - Parte II de IV


O último capitão exibia uma expressão que passeava entre a desagradável surpresa e o completo repúdio. Seridath imaginou também ter vislumbrado um lampejo de medo nos olhos do ruivo.
– Se você tá falando de usar essa coisa maldita aí, pode esquecer – disse Balgata, apontando para a espada.
– Não sei o que Aldreth te falou a respeito de Lorguth, mas é disso mesmo que eu estou falando – retrucou Seridath, friamente.
– Não quero saber, garoto. Se dependesse de mim, você já estava com essa espada no fundo de um poço, preso ou morto.
– Vamos ver então se essa é a vontade dos outros. Vamos expôr a situação a todos e as opções envolvidas. Vejamos se eles concordam com você.
– Pro inferno com eles! - rugiu Balgata. - Eu sou o capitão! Eu comando aqui!
Seridath ergueu as mãos, como em rendição, dando seu conhecido sorriso irônico, que tanto irritava Balgata. Os dois eram altos, embora Balgata fosse quase um gigante. Aos outros, que testemunhavam aquela discussão, parecia que dois titãs disputavam com suas forças catastróficas. Mas Seridath brincava. Sentia uma vontade mórbida de saber o quanto Balgata agüentaria as provocações antes de partir para cima do cavaleiro. Qual seria o último sentimento do capitão quando fosse atravessado por Lorguth? Contudo, ainda não era o momento. Tinha que controlar-se, minar a autoridade do outro e tomar seu lugar. Logo, aqueles homens veriam a fraqueza de seu líder e a única escolha para eles seria buscar refúgio junto ao guerreiro da espada negra.
Enquanto Seridath maquinava sua traição, Balgata já estava longe. Havia agradecido Lucan pelas informações e ordenado ao arauto que repousasse. Partiriam logo após o nascer do sol. Com sorte, levariam pouco mais que três horas para chegar a Arnoll, embora o plano fosse passar de largo pela cidadela. Era uma decisão difícil, mas teria que deixar os outros à própria sorte.
Aguardando as horas passarem, Balgata caminhou em silêncio até um grupo de árvores próximas. Não tivera tempo para respirar durante aquela fuga. Precisava de um pouco de ar. Aldreth aproximou-se do capitão, que apenas virou seu rosto para o arqueiro, fitando nele seus olhos cansados. O rosto abatido de Balgata, banhado pelo luar, parecia cadavérico. Ao longe, Seridath observava a cena, mas não estava a uma distância suficiente para que pudesse ouvir o que conversavam. Aldreth parecia o de sempre: com aquele patético olhar de desespero. Balgata, apesar de resistente, começava a mostrar sinais de estar cedendo à fadiga. O cavaleiro negro assentiu, enquanto suspirava. Isso mesmo, esperava que todos chegassem ao seu limite. "Testados," pensou ele, "estamos sendo todos testados, como antes da Montanha. Como ele falou, um teste antes e um depois. E vou vencer em ambos."
Nesse instante, o rapaz sentiu um tremor quase imperceptível abaixo de seus pés. Embora insignificante, essa sensação deixou-o alerta. Seridath fechou os olhos e foi imediatamente tomado pela estranha impressão de estar se expandido, estendendo-se pelo solo. Era como se estivesse correndo metros e metros sob o chão, para todos os lados. A cada momento, o tremor ficava mais forte. O rapaz pôde perceber que esse tremor repetia-se em um ritmo constante. Continuou a percorrer o solo até sentir o tremor retumbar, como se ele fosse esmagado de uma vez por dez mil pés.
Seridath abriu os olhos, assustado. Todo seu corpo era sacudido diante da tensão. O tremor ainda estava lá, tênue. Mas em breve ele retumbaria sobre todos, pois aproximava-se, tornando-se mais intenso a cada segundo. O rapaz partiu com rapidez na direção de Balgata.
– Capitão! – chamou ele – Capitão Balgata!
Balgata virou-se para Seridath, furioso, enquanto Aldreth alternava seu olhar assustado entre ambos. Parecia uma criança surpreendida fazendo em grande travessura e esperava um castigo severo. O cavaleiro percebeu e lançou, por um instante, seus olhos frios para o seu pajem. Em seguida passou a ignorar a presença do rapaz, enquanto pensava em uma forma de ser convincente.
– Capitão, temos problemas – disse o cavaleiro.
– Você é um sério problema, tenho certeza – reagiu Balgata. – E se não tiver uma justificativa, minha espada também será problema seu!
– Calma, capitão – Seridath ergueu novamente os braços, em tom apaziguador -, peço que venha comigo por um instante. Algo muito sério está acontecendo aqui perto e preciso que você mesmo o veja.
Balgata pôs a mão no cabo da espada, enquanto via Seridath afastar-se rumo à orla do bosque. Olhou para Aldreth, que parecia totalmente amedrontado.
– Não tenha medo, garoto – murmurou o capitão. – Eu cuido daquele traste. Se quiser vir conosco, não irei proibir.
– Tu-tudo bem, senhor – respondeu Aldreth. – Eu também vou.
Seguiram Seridath, que margeou a orla do bosque, na direção da campina. O cavaleiro quase corria, de forma que precisaram apertar o passo. Logo os três estavam juntos, usando como cobertura um capim alto, totalmente ressequido, que crescera naquelas matas. Passaram um córrego insignificante, infestado de juncos. Andaram por quase uma hora. Algo iluminava de forma lúgubre as colinas à frente. Seridath logo mudou o rumo, para o interior do bosque, corrigindo-o em seguida na direção original. Agora os três corriam por entre as árvores, rumo ao local de onde brotava a estranha luminosidade. O cavaleiro parecia ter um bom olho para ambientes escuros, pois traçava seu caminho evitando qualquer obstáculo. Os outros dois seguiam à risca o caminho por ele escolhido.
Balgata então começou a escutar um som ritmado que retumbava na noite. Rapidamente reconheceu o som de tambores de guerra. Sem dúvida guiavam a marcha de um exército que se aproximava. Venceram a colina, conquistando uma visão panorâmica. Do lado direito, a campina se estendia, banhada pela luz da lua cheia. Contaminando a campina, como um câncer, estava uma enorme e escura massa que se movia de forma disciplinada, avançando de acordo com o ritmo dos tambores. O exército quase não possuía tochas, pois seus soldados não precisavam de alguma iluminação para seus olhos sem vida. Eram sombras humanas que se moviam, embora fosse possível identificar os contornos do que pareciam ser homens gigantescos, carregando os tambores que marcavam a velocidade da marcha.
O capitão sentiu seu corpo estremecer, enquanto observava. A palavra "Tominaro" veio à sua mente. Uma lenda infantil; uma brincadeira comum entre as crianças pobres. Os mais velhos procuravam assustar os mais novos com histórias assim. Gigantes comedores de gente. Então eles existiam de verdade e estavam auxiliando os inimigos. Com um olhar resignado, Balgata comentou para Seridath:

– É, garoto, acho que vamos precisar usar mesmo essa coisa aí.

Continua...

sábado, setembro 21, 2013

Manhã Inesquecível



Agradeço a todo mundo que esteve hoje pela manhã lá no meu lançamento... Foi um momento maravilhoso e inesquecível. Estive muito ansioso nos últimos dias. As mãos suavam, o coração batia acelerado, a cabeça girava. Não conseguia dormir, a alergia me alarmou, a gastrite atacou, o refluxo voltou... 

Quando faltava uma hora para começar, levantei-me para andar pela Biblioteca e senti tudo girar. Tomei água, respirei fundo. A ansiedade estava a mil. Afinal, os personagens que tratei com tanto carinho durante estes últimos anos finalmente sairiam de meu controle e habitariam outras mentes, inspirariam outros sonhos. 


E no final, quando vi o auditório cheio de rostos amigos, uns de longa data e outros mais recentes, senti-me realmente recompensado. Minhas mãos tremiam, a boca estava seca e o peito parecia querer inflar até não mais poder. Dei autógrafos, tirei fotos, recebi tantas palavras de carinho! E pude ver meu livro nas mãos de tantas pessoas...

Recebi mensagens de carinho daqueles que foram impossibilitados de comparecer. Senti-me igualmente reconfortado. 

E por isso novamente agradeço a todos que estiveram comigo nesta manhã maravilhosa, dia 21 de setembro de 2013. Este dia ficará para sempre em minha memória!

segunda-feira, setembro 09, 2013

A Cidadela - Parte I de IV

Ir para A retirada - Parte V de V

O arauto ainda respirava. Havia alguns cortes em seu lado esquerdo, um deles bastante profundo, e hematomas no rosto e pescoço. A haste escura de um virote partido estava cravada logo abaixo da omoplata direita. Era um milagre que ele estivesse vivo. Os ferimentos indicavam que havia escapado de um combate atroz.
Deram água ao jovem, embora Balgata olhasse desconfiado. Todos os feridos pelos inimigos já estavam mortos... duas vezes. Talvez fosse melhor acabar logo com seu sofrimento. O rapaz pareceu adivinhar as desconfianças de seus companheiros.
Foram bandidos, senhor – disse ele, olhando para Seridath. – Eles tomaram Arnoll.
O jovem tinha mais respeito por Seridath, e Balgata tentava dissimular sua irritação diante desse fato. Havia coisas mais urgentes, como a informação que o rapazinho acabava de fornecer.
Quer dizer, então, que Arnoll foi tomada!? – grunhiu o capitão, furioso.
Exatamente, senhor – respondeu Lucan.
Diga, rapaz, como conseguiu sobreviver? – perguntou Balgata, propositalmente mantendo um tom de desconfiança em voz.
Lucan suspirou, deixando escapar um gemido e um sorriso resignado de alguém que não entende a hostilidade de seus próprios aliados. Balgata cedeu e ordenou que tivessem uma pausa até que Lucan recebesse os primeiros socorros. Também convocou dois ajudantes para carregar o arauto até uma das carroças onde ele poderia ser tratado devidamente por duas senhoras de Keraz. Os últimos feridos pelos zumbis haviam morrido na noite anterior. As duas senhoras, que arriscaram suas vidas oferecendo-se para cuidar dos feridos, ficaram animadas ao verem um paciente que não definharia diante de seus olhos, se fosse tratado devidamente. Não havia clérigos ou cirurgiões entre eles, mas as duas senhoras eram capazes de fazer uma sutura no corte profundo tratar adequadamente as outras feridas. Balgata pediu para ser chamado logo que os cuidados com Lucan fossem concluídos. O capitão também distribuiu ordens para manter seguro o acampamento.
Após cerca de uma hora e meia, um dos camponeses aproximou-se do capitão, comunicando que Lucan já não corria risco. Balgata aproximou-se dele, apreensivo.
E então? perguntou. – Ainda está inteiro ou as velhas arrancaram algum pedaço do seu fígado?
Estou bem, capitão – respondeu Lucan. – Obrigado por perguntar.
Mas você nos disse que Arnoll foi tomada – inquiriu Balgata, já completamente esquecido da frase que Lucan havia dito. – Dominada por bandidos.
Sim. Homens bem vivos. Os malditos estavam rondando a cidade faz um tempo, mas agiram quando as pessoas começaram a aparecer, fugindo dos mortos. O senhor feudal havia decretado alerta e não deixava ninguém entrar ou sair. Parece que alguém escalou o muro e abriu o portão após matar os guardas.
Quer dizer que eles possuem homens de qualidade murmurou Balgata. Talvez um assassino rastejante. Mas como você sabe disso tudo, garoto?
Eu topei com um grupo montando guarda nesta noite. Lucan deu um sorriso maroto Pude ouvir muito do que eles conversavam. Parece que as coisas deste lado estão piores do que pensávamos.
Como assim, piores?
Aquele exército que enfrentamos em Keraz era só uma parte de uma grande força que está marchando desde o mar, a nordeste daqui. Isso significa...
Quiriath-Mon! murmurou Balgata, rangendo os dentes.
Isso mesmo, capitão. Essa força gigantesca engoliu os vilarejos ao redor, mas muitos deles já estavam tomados. Os camponeses mortos só engrossaram as fileiras dos amaldiçoados.
Por Nibala e suas cabeças! – blasfemou Balgata.
Todos ao redor estremeceram. A madrugada ia pelo meio, e a lua cheia ainda brilhava forte no céu, concedendo às árvores um aspecto surreal. Seridath aproximou-se, parecendo interessado no relato do arauto. Balgata tentou manter o controle.
E os nossos homens? – inquiriu o capitão, evitando alimentar o assunto dos mortos. – Riderth e os outros, que escoltavam os camponeses?
Acho que foram levados para Arnoll. Eu ouvi eles comentando sobre um grande número de pessoas no calabouço. Falaram de um bando que era guiado por um sacerdote.
Culliach... – comentou o capitão.
Isso. Também penso assim. Parece que eles vão querer usar os homens para lutar se os mortos chegarem até aqui.
Me conte como ganhou essas feridas perguntou o capitão, embora fosse impossível dizer se ele ainda desconfiava da habilidade de sobrevivência do rapaz.
Eu os estava espreitando. Ouvi muita coisa mesmo, já que eles não imaginavam que eu estava por perto. Eram três e dois deles já estavam meio bêbados. Mas eu não previ que poderia haver um quarto, que tentou me pegar pelas costas. Nós brigamos, chamando a atenção dos outros. Lutei com todas as minhas forças e acho que matei um deles, o que estava mais bêbado. O bandido que me atacou primeiro era muito bom com sua adaga e conseguiu fazer em mim este corte aqui. Percebi que iria morrer. Ele nem estava lutando a sério, mas os outros dois partiram pra cima com suas espadas. Na confusão, consegui tomar distância e correr, mas fui na direção oposta à nossa. Um deles devia ter uma besta, mas só senti a fisgada do virote quando já estava longe. Tive que fazer uma volta enorme para retomar o caminho que vocês tomaram. Perdi as forças quando percebi que estava novamente na rota e acabei relaxando...
Acha que eles seguiram você?
Não creio. Na verdade, duvido que acreditem que eu esteja vivo. Se é que eles achavam que eu não era um zumbi.
E você faz idéia de quantos são? – inquiriu Seridath, evitando o olhar irritado de Balgata.
Não tenho certeza, mas acho que ouvi eles falando sobre isso, dizendo que era difícil manter uma cidadela do tamanho de Arnoll com pouco mais que sessenta homens.
Se tivéssemos mais homens, pelo menos mais vinte, não hesitaria em atacá-los – suspirou Balgata.

Creio que nós temos esses homens, capitão – respondeu Seridath, fitando Balgata com seu sorriso sombrio. – Talvez até mais.

Continua...

segunda-feira, setembro 02, 2013

A retirada - Parte V de V

Ir para A retirada - Parte IV de V


Logo pela manhã, Balgata acordou os demais energicamente. Seridath já estava de pé, pronto, do lado de fora da gruta. Não dormira de tanta euforia. Era primeira vez que ele meditara sobre os acontecimentos em Keraz. Pelo que acontecera na noite da batalha, ele era senhor de forças mais sombrias do que imaginava.
Nesse instante, Aldreth despontou da entrada da gruta. Os olhares de ambos se cruzaram e o arqueiro desviou rapidamente o seu, baixando a cabeça. Havia sido mandado por Balgata para buscar água. Seridath seguiu o outro com o olhar. Havia percebido algo naquele rosto amedrontado. Não sabia dizer ao certo, mas era um olhar diferente, quase desafiador. Seridath então lembrou-se de que somente o arqueiro sabia seu segredo. Seria seguro manter Aldreth vivo? Essa pergunta tornava-se uma sutil interrogação na mente do cavaleiro. Afinal, uma morte a mais não faria tanta diferença.
Com todas as bestas de Nibala! Vamos, bando de molengas! – gritava Balgata com os camponeses – Parecem mais lerdos que os zumbis que enfrentamos! Andando! Andando!
Seridath mantinha-se de costas para a entrada da gruta, enquanto sentia aquela estranha euforia permear seu corpo. Estava mais disposto do que nunca. Olhava as árvores e pedras ao redor, sentindo quase como se pudesse tocá-las, pegá-las, mesmo à distância. Desembainhou Lorguth e olhou para sua lâmina negra. Alguma coisa também havia acontecido com a espada. A bainha não comportava mais a lâmina que parecia ter crescido. A parte serrilhada também estava mais comprida e o gume, mais afiado. As duas esporas pareciam maiores e mais agudas. Lorguth mais uma vez provava o seu poder. Ela estava evoluindo e Seridath não percebera isso antes. Aquela arma magnífica desenvolvia-se lentamente, acompanhando o crescimento do seu senhor. O cavaleiro sentiu o orgulho inundar seu peito.
Quando teriam começado essas mudanças? O rapaz ponderou que, de alguma forma, a espada havia despertado na noite de batalha, quando o cavaleiro tomara a decisão de subjugar a lâmina negra.
Eu estou falando com você, seu idiota! – gritou Balgata, tentando chamar a atenção de Seridath.
O sombrio rapaz encarou o capitão, que manteve seu tom de desafio. Estava claro que Balgata já chegava a seu limite. Lorguth começou a vibrar nas mãos do cavaleiro, como se implorasse pelo sangue daquele homem insolente. Mas Seridath não queria pôr tudo a perder. Embainhou novamente sua maligna companheira, enquanto encarava Balgata.
O que quer? – perguntou.
Não tá vendo que estamos partindo?! Vá para a vanguarda, já que você gosta tanto de aparecer!
Seridath quase se arrependeu em ter embainhado sua espada. Mas seu sangue frio impediu que ele retrucasse e começasse uma nova disputa com o capitão. Os nervos afloravam naquele momento crítico. Uma briga com certeza iria selar o destino de todos, e Seridath ainda acreditava que poderia usá-los. Sem lançar outro olhar para Balgata, o rapaz cumpriu suas ordens, enquanto comandava os demais para abrirem caminho pelo interior do bosque. Lucan continuava desaparecido, talvez em algum lugar à frente, ninguém saberia ao certo. O capitão comandava a retaguarda. Seridath teve um mau pressentimento e observou-o, furtivamente. Viu num relance Balgata marchar ao lado de Aldreth.

No final do dia, o grupo já alcançava os limiares do bosque. A rota prosseguia em campo aberto, oferecendo mais perigo para os fugitivos. Balgata afirmava que mais uma noite de viagem e eles chegariam à cidadela fortificada de Arnoll. Bastava resistirem mais um pouco. Marcharam durante toda a noite. No início da madrugada, os guerreiros que formavam a vanguarda encontraram o corpo de Lucan estendido na campina. 

Continua...