quarta-feira, maio 30, 2012

Como fazer um metrô legal

Tenho pensado muito nesse meio de transporte que é tão atual, tão cosmopolita. Não há nada mais urbano do que o metrô. Para comprovar esta afirmação basta lembrarmos das produções cinematográficas. Uma metrópole que se preze tem que ser provida desse meio de transporte.
Minhas divagações sobre o metrô ocorrem também porque é através dele que chego ao trabalho. Dessa forma, todas as manhãs aguardo sobre a plataforma a chegada da gigantesca máquina metálica, que desliza sobre os trilhos e lembra uma centopeia. 
Outro elemento que me inspirou na escrita deste texto foi a crônica "Como comportar-se no bond", de autoria do grande Machado de Assis. Nela, o escritor cria uma espécie de código de conduta para os passageiros dos bondes que trafegavam no Rio de Janeiro no final do século XIX.
Sendo assim, não resolvi criar uma lista de regras de comportamento para o metrô e sim elencar quais são os ingredientes essenciais para que este transporte público alcance a excelência. Sem mais delongas, passo a descrever aqui quais são as características mais notáveis para um metrô legal.
Gente, muita gente. Sem gente, é impossível fazer um metrô legal. Mas tem que ser muita gente mesmo. Não estou falando de lotação ou superlotação. As leis da física devem ser desafiadas, para ter graça. Por isso, sempre que você estiver aguardando na plataforma e o transporte chegar, não hesite em entrar, por mais lotados estejam os vagões. Sempre existe uma forma de entrar: bandinha, rolo compressor, osmose.
O método "bandinha" é o menos traumático para entrar em um vagão superlotado. Você vira de lado e avança lentamente, em passinhos curtos, como num andar de siri. Assim, seu ombro vai confortavelmente alcançando espaço entre os corpos dos passageiros.
Já o "rolo compressor" é mais difícil, pois exige que você tenha o porte físico de um lutador do UFC. Use toda a sua força bruta e insensivelmente pressione a massa de passageiros à sua frente de forma que eles não vejam outra solução a não ser mudar o formato de suas anatomias para que você caiba perfeitamente entre eles.
Sendo o mais passivo de todos, o método "osmose" torna-se também o mais masoquista. Para realizá-lo, você deve "desligar" seu cérebro, de forma que ele não receba as mensagens de socorro do resto do seu corpo. Em seguida, posicione-se de maneira que seu corpo faça parte da massa de passageiros que tentam embarcar e deixe-se levar, como se todos fossem parte de um líquido e a porta do vagão a membrana celular por onde você, o nutriente, deverá passar. 
Pronto. Estamos todos dentro, colados uns aos outros e precisamos transpirar. Essa é a segunda condição. O calor (humano ou não) deve ser uma constante no metrô legal. O suor e os odores também. Metrô sem fedor não é metrô. Por isso, se você deseja utilizar esse transporte, por favor, não tome banho. Se possível não escove os dentes também. Abra bem os braços para que todos possam usufruir do seu odor.
Agora que o ambiente está bem agradável, está na hora de usar o celular. Não; não queremos que você faça ligações, não agora. Basta ligar seu aparelho no volume máximo tocando uma música de gosto duvidável. Se ela for repetitiva e interminável, melhor ainda. Mas se você não estiver aguentando de curiosidade para saber aquele pedaço de novela que perdeu, então pode ligar para um parente ou amigo. Peço apenas que faça o favor de deixar todos os demais passageiros a par do assunto. Afinal, quem não assiste uma boa novela?
Com essas dicas acima, espero que sua viagem no metrô seja muito mais interessante e menos monótona. Viemos ao mundo para viver emoções e não há nada mais emocionante num metrô onde as leis da física (e do bom senso) inexistem. 

segunda-feira, maio 28, 2012

Um olhar


Seria difícil notar aquele menininho. O corpinho franzino que mentia uma idade inferior; uma inocência ainda maior. Sim, seria quase impossível perceber aquele pedacinho de gente.
Não para quem tinha um olhar como o dela. Todo dia, a caminho do trabalho, os olhos da moça zapeavam o interior do ônibus. Não encontrar indícios de seu silencioso companheiro de viagem era quase que um sinal da desordem no universo. O coração dela saltava no peito rumo a um abismo interior, até que descobria a cabecinha do garotinho semioculta atrás de um outro passageiro. Pudera! 
O que tanto atraía seu olhar de menina era a independência do pequeno, sempre desacompanhado, cruzando o centro da cidade em um ônibus repleto de gigantes. Ele, o maior de todos, por enfrentar impávido um mundo tão maior que o seu.
Inevitável seria o desencontro, como de fato se sucedeu. A moça precisou lidar com ausências intermitentes, assumindo a naturalidade de outros percursos, interrupções anteriores. O trajeto do menino começava bem antes do embarque dela; vários acontecimentos poderiam desviá-lo de seu encontro.
Como daquela vez, em que ele não estava. Ela tentou dar de ombros, resignar-se, mas seus olhos o encontraram através da janela, em um outro ônibus, que seguia ao mesmo destino. Lá estava o menino, e como dormia! Em breve chegaria o seu ponto e ele perderia o momento de descer.
Ao perceber o risco que seu companheiro corria, a moça rapidamente sinalizou para desembarcar. Desceu de seu ônibus e sinalizou ao seguinte, o mesmo veículo onde o menino dormia. Subindo os degraus do ônibus de um jeito esbaforido, ela pagou a passagem a um perplexo cobrador e aproximou-se do menino. 
Buscou acordá-lo com gentileza. O pequeno abriu os olhos com um sobressalto. 
- Oi, desculpa, mas você vai perder seu ponto - disse ela.
O menino pareceu alarmado, pois o ônibus acabava de ultrapassar o ponto em que ele deveria desembarcar. A moça sinalizou novamente para que o veículo parasse. O menino tinha uma expressão ainda confusa e amedrontada. Desceram quando o ônibus parou.
- Você sabe chegar no seu ponto? - perguntou a moça.
O menino apenas balançou a cabeça afirmativamente, embora não parecesse muito certo disso.
- Pode deixar que eu volto o caminho com você.
Ainda um pouco desconfiado, o menino esboçou um tímido sorriso e murmurou:
- Tá, brigado...
Os dois desceram a rua calmamente, intercalando seus passos com uma conversa trivial. O menino ensaiava seus passos junto com as frases que dizia sobre si mesmo. A ela cabia sorrir e encorajar o pequeno desbravador. Chegaram rapidamente ao local onde ele deveria ter desembarcado. Mais uma vez ele murmurou um agradecimento e a moça apenas sorriu, como se fosse ela a agraciada, enquanto um se afastava do outro, acenando um adeus.
Seria difícil notar aquele menininho entre tantos passageiros, entre tantos rostos uniformes e cinzentos. Seria, mas não para o olhar dela.

sexta-feira, maio 25, 2012

Bagagem


Geralmente, não costumo fazer resenha de livros de poesia. O principal motivo é que em geral, leio prosa. 
Não significa, contudo, que alguns textos escritos em verso não me fisguem. Inclusive, quando gosto muito de um poema, procuro sempre decorá-lo. Assim, quando sinto vontade de compartilhar algum poema com alguém, fica mais fácil. Basta declamá-lo.
Pensando então na ausência de resenhas sobre livros de poesia, resolvi começar com uma autora muito apreciada: Adélia Prado.
Tendo sido publicado pela primeira vez em 1976, Bagagem é um conjunto de sentimentos e memórias, saudades e vivências, repleto de beleza e focado nas coisas simples da vida, como uma laranja tirada do pé do quintal ou o almoço de domingo com a família. São poemas que têm a cara de Minas de tempos passados, dialogando com poemas de Drummond, embora faça contrapontos que se afastem da ótica negativista e busque um lirismo mais alegre, carregado de feminilidade.
Bagagem é um trabalho tocante e atual, tanto que continua sendo publicado e distribuído. É inclusive um excelente presente para os amantes de poesia.

Confira o lindo poema que abre esta obra inesquecível:


Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Ficha Técnica
Título : BAGAGEM
Autora: Adélia Prado
ISBN : 850106503X
Gênero : Poesia - Poesia brasileira
Páginas : 144

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/4548-bagagem

quarta-feira, maio 23, 2012

Vivendo entre livros

Alguns amigos que costumam visitar este blog sabem da relação apaixonada que tenho com meu trabalho. Afinal, realizo minhas atividades profissionais cercado de livros. Sou funcionário da Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte e amo o que faço.
Não seria menor meu entusiasmo quando me foi oferecida a oportunidade de trabalha no estande da Fundação Municipal de Cultura na Bienal do Livro de Minas 2012, que começou dia 18 de maio e terá seu encerramento dia 27 próximo. Já nestes cinco dias vivenciei muita coisa e sei que ainda há muito por vir.
A abertura aconteceu justamente diante de nosso estande. Contamos com personalidades ilustres, homenagens foram feitas, discursos proferidos. Em seguida, a Bienal recebeu uma avalanche de alunos. Nesse momento nosso estande se destacou.
Ao contrário dos demais estandes da feira, que em sua maioria têm como foco a venda de livros, revistas e demais artigos ligados à leitura, nosso estande tem como principal objetivo oferecer de graça a leitura em si. Montamos uma biblioteca onde as pessoas podem escolher um título para lê-lo calmamente sentado em uma de nossas poltronas. Também temos dois pufs - um deles gigantesco - para uma leitura ainda mais confortável e prazerosa. 
Sei que parece conversa de propaganda, mas esse caráter idealista do nosso trabalho meio que vai contra a ideia de uma feira de livros e isso meio que me apaixona. Cresci com a visão da biblioteca como algo distante e hoje percebo que essa distância é feita pelas pessoas, que devem vencer preconceitos e usar esse espaço para exercício de sua liberdade de leitura.
De qualquer maneira, em muitos casos sofremos um pouco com o clima convidativo do estande. O puf enorme chama a atenção da criançada e muitas vezes eu tive que fazer valer toda a minha voz para evitar que os meninos o transformassem em pula-pula. Outro motivo de tristeza vem dos ladrões que acreditam poderem se apropriar do que é público pelo simples fato de estar à mão. 
Enquanto estive no estande nestes últimos dias, recebi amigos e conhecidos. Presenciei escritores e artistas transitando como verdadeiras celebridades, enquanto outros deles passeavam com a família, num típico programa de domingo. 
A experiência tem sido gratificante e desafiadora. Estou adorando. Não é por menos. Há quatro anos atrás, em uma outra edição da Bienal, sonhei trabalhar num evento como esse. E aqui estou eu. Muito ainda tenho que relatar, mas deixo para outros momentos, pois o que sinto com mais intensidade nestes dias de intensa correria ainda não consigo traduzir em palavras.

segunda-feira, maio 21, 2012

A Grande Chuva – Parte Final


Ainda pela manhã, fiz uma breve visita à estranha firma Cerqueira César. Fui atendido por uma secretária irritadiça, que me levou a Walter Cerqueira César, o mais velho de dois irmãos. A moça nos deixou a sós, sem abster-se de lançar-me um estranho olhar de medo.
– Bom dia, senhor Firenze  – saudou-me o advogado.
– Bom dia. Creio que o senhor conheça meu irmão Alberto.
– E o que faz o senhor pensar assim? – O homem lançou-me um olhar apreensivo.
– Encontrei um de seus cartões entre os pertences de meu irmão. O incidente passaria despercebido se não fosse a descrição do variado ramo em que esta firma atua. Meu irmão está desaparecido justamente por seu louco interesse em assuntos ligados ao ocultismo.
– Bem, somos conhecedores de certos mistérios, senhor Firenze. – O velho Cerqueria remexeu-se, inquieto, em sua cadeira. – E não deixamos de usar esse conhecimento. Mas o caso do seu irmão...
– O sonho – atalhei.
– Sim, o sonho... – Cerqueira parecia cada vez mais desconfortável. – Não era caso que poderíamos assumir. Somos médiuns, mas não feiticeiros, meu irmão e eu; apenas iniciados. Resolvemos pequenos problemas, espíritos familiares, removemos maldições e expulsamos demônios menores. O caso do seu irmão, porém, tratava-se de um conhecimento antigo demais...
De repente, Walter Cerqueira César ficou rígido, enquanto suas feições se tornavam cada vez mais vermelhas e suas mãos se crispavam, agarrando os braços da cadeira. Ele apertou os olhos com força e, ao abri-los, estavam amarelados e diabólicos.
– Oiê, eu achei você! – disse ele, com um acentuado ar infantil na voz. – Seu irmão bobão parou de brincar. Mas agora você é meu. Meu. Vou te buscar. Vou sim. Estou te esperando hoje, no mesmo lugar!
E Walter Cerqueira César soltou um berro medonho, hediondo, simulacro de uivo, enquanto tombava ao chão. Permaneceu imóvel e, quando o socorro médico chegou, nada puderam fazer para salvá-lo. O diagnóstico posterior foi infarto fulminante.
Não consegui encontrar o outro irmão, Benjamim. Nem ao menos a secretária quis aproximar-se de mim, como se algo maligno estivesse agarrado aos meus ombros. Deixei o escritório, abrindo caminho entre a multidão curiosa. Voltei para casa abalado. Pela primeira vez, um homem havia morrido na minha frente. Pela primeira vez, via fora do sonho aqueles olhos amarelados. 
Ainda estava com aquela imagem quando me deitei. O sonho me visitou logo que peguei no sono: a mesma ladeira íngreme, a mesma esquina. Ao dobrá-la, percebi que algo não ia bem. O menino não estava de costas. Ele me fitava. E sorria. Senti algo como o terror sacudir meu espírito e virei-me, descendo em correria a ladeira. Pela primeira vez o sonho tomava outro rumo. Corri como um louco. Afinal ele havia cumprido o que prometera. Ele me aguardava.
Fui arrancado do sonho por meu próprio berro de terror. Percebi que estava de volta ao meu quarto. Não estava, entretanto, tranquilo. Afinal, eu teria que dormir de novo. Teria que encontrar o meu destino. E o menino estaria lá.
É por isso, doutor, que permaneço aqui, entre estas paredes acolchoadas. É por isso que eu não devo dormir, doutor. Por favor, não posso dormir. Preciso, preciso muito de algo para afastar o sono. Pois ele está lá, no barulho da chuva estalando no telhado. Ele está em cada dobra do escuro, doutor. E ele me espera. Eu sei.


Este conto foi produzido com o inestimável auxílio do grande Amigo e Mestre  Sérgio Fantini, durante a oficina de produção literária por ele ministrada.

sexta-feira, maio 18, 2012

O Arqueiro


O jovem inglês Thomas teve sua vida mudada completamente quando Hookton, a pequena aldeias de pescadores onde mora, é atacada por piratas franceses, comandados por um misterioso homem que atende pelo apelido de o Arlequim. Ao presenciar a morte de seus pais e de tudo o que amava, Thomas decide seguir seu sonho – tornar-se um arqueiro no exército inglês. Sob o comando do rei Eduardo III, o jovem irá testemunhar o início de uma das mais importantes guerras da história européia: A Guerra de Cem Anos.
Em O Arqueiro, primeiro voluma da trilogia chamada A Busca do Graal, Thomas terá que enfrentar as dificuldades e a gritante violência dos campos de batalha na França, participando das consecutivas vitórias inglesas em solo francês. O maior interesse do jovem é guerrear, beber e fazer fortuna com os saques das cidades inimigas, enquanto é atormentado pelo dever de descobrir as razões que levaram à morte de seus pais e à destruição de sua aldeia. Contrariado, Thomas vê-se lançado em armadilhas consecutivas que acabam por obrigá-lo a seguir seu destino: a busca da relíquia mais preciosa do mundo cristão: O Santo Graal. E essa busca irá gradativamente aproximá-lo do Arlequim, o homem com quem deve acertar as contas.
Escrito pelo grande escritor Bernard Cornwell, O Arqueiro é repleto de batalhas magníficas e personagens cativantes, além de manter-se fiel ao plano de fundo histórico onde a narrativa se desenvolve. Ideal para os amantes de História Medieval que apreciam boas narrativas de ação.

Ficha técnica:
Título original inglês: Harlequin
Tradução: Luiz Carlos do Nascimento Silva
Ilustrações: Daniel Morena
Projeto gráfico: Porto+Martinez
Editora: Record
ISBN: 8501061700
Número de páginas: 444

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/715-o-arqueiro

quarta-feira, maio 16, 2012

Era uma vez um menino


Era uma vez um homem. Na verdade, ainda não era um homem, e sim um menino. Esse menino tinha um sonho. Infelizmente não era um sonho altruísta. Não era um sonho martinlutherkinguiano. Era um sonho egoísta e idiota. Um sonho piegas. Mas não deixava de ser um sonho.

O menino não sabia quando esse sonho surgiu, quando começou a ser engendrado na cabecinha oca de menino que ele tinha. Não fazia idéia se fora um filme, uma história, uma estória, um caso ou um causo. Teria sido um livro? Uma conversa com algum adulto? Não fazia idéia.

Bem, falemos do sonho. O menino queria ser um herói. Ele queria ser um príncipe encantado. E o grande problema desse menino é que ele nascera para ser príncipe. Tinha roupas de príncipe, lisos e compridos cabelos que, embora não fossem louros, eram de um castanho bonito. Seus olhos, mesmo não sendo azuis ou verdes, eram expressivos. Era um belo menino, talentoso, que sabia cantar, escrever poesia, fazer música, falar coisas bonitas. E também tinha um bom porte físico. 

Ele tinha tudo para ser um príncipe. Só não tinha a coragem.

Esse ingrediente essencial faltava ao pequeno príncipe. Ele não acreditava que um dia seria um herói. Bem que ele o queria, mas não acreditava e tinha medo de acreditar e se decepcionar.

Por isso, escolheu o caminho mais fácil: se decepcionar de primeira, sem esforço ou coragem. Ele caminhou, cantou, enfrentou dragões, salvou princesas, conquistou reinos, mas sempre acreditando que era algo inferior, desprovido de qualquer heroísmo. E com isso se rebaixou. Deixou de fazer música, deixou de escrever poesia. Seu olhar triste e desesperado afugentou a beleza do seu rosto. A preguiça fê-lo gordo e letárgico. Deixou de ter vocação para ser príncipe.

E o menino triste continuou seu caminho, agora arrastando-se, acreditando na mentira que ele mesmo formulara para poder sentir pena de si mesmo. Talvez para se lamuriar diante de outros e ouvir comiserações, talvez para manter bem seguro o medo que lentamente o devorava por dentro. Talvez porque no fundo nunca tivera vocação para principados e heroísmos, e todos aqueles talentos eram reflexo de um outro que ficara perdido dentro de si, e que nunca foi capaz de realmente nascer. 

segunda-feira, maio 14, 2012

A Grande Chuva - Parte II


A minha frente repousava um dossiê que me consternava. Recortes de jornais, relatórios de detetives e notas pessoais. Além do diário que meu irmão, Alberto, deixara como seu último rastro em vida. O diário estava aberto no trecho que eu acabara de ler: 

Sábado, 31 de outubro. Segui aquela importante pista acerca do sonho e fui recompensado. Através de minhas pesquisas tomei conhecimento de uma vidente em Shambala que pode me ajudar a desenvolver o sonho. Segui viagem, mesmo com esse tempo, de forma a tentar alcançar esse exótico país. Contratei um destemido capitão, bem como uma tripulação seleta, para que levassem meu barco para longe dessa odiosa chuva. O tempo não melhorou e quase que a expedição se põe a perder. Mas foi uma alegria quando descobri, pela primeira vez, a marca do sol por entre nuvens. Cheguei a distinguir seus traços em um dia mais quente. Espero chegar amanhã e encontrar a tão afamada vidente. Espero também de fato resolver esse mistério que ronda os Firenze.

Suspirei, quando meus olhos caíram novamente sobre aquelas páginas, tão lidas e tão manuseadas por mim. Aquele dossiê era o resultado da investigação que eu havia encomendado para descobrir o paradeiro de Alberto. E nada havia sido esclarecido. Apenas relatos do paradeiro itinerante de meu irmão e seu diário, repleto de ideias que me pareciam desprovidas de sentido. Levei a mão ao caderno, correndo os dedos pelas páginas, até dar com o último registro:

Domingo, vinte de dezembro. A febre baixou. Já sinto que posso andar, talvez até caminhar pelo convés. Estamos fugindo. Tentando escapar de Shambala. Mas sinto que não há lugar para fugir. Oxalá não tivesse seguido as ordens daquela bruxa, daquela rameira! Pois ela deu asas à minha loucura, deu-me a chave para libertar o Mal. Eu desenvolvi o sonho. Falei com o menino e o que ele me disse prostrou-me por quase um mês. Esse é um pequeno preço, pois é minha alma que está em jogo. Assim como minha sanidade. Estou amaldiçoado, pois libertei o Mal que espreitava meus sonhos. O menino virá e não descansará até completar a taça.

Essas enigmáticas palavras foram as últimas deixadas por Alberto. Sua letra tremia, irregular, quase ininteligível. O navio Albatroz, contratado e equipado por meu irmão, foi encontrado dez dias depois, encalhado em um rochedo, a meio caminho de casa. A ponta do arrecife perfurara o casco, mas o navio não afundou, por causa do mesmo rochedo. Apesar de não ter sido submersa, a embarcação estava vazia, como se abandonada às pressas por sua tripulação. Talvez todos estivessem tomados pela mesma loucura que vitimara Alberto. 
Suspirando, ainda passei as páginas do diário com a ponta do polegar, sentindo a aspereza do papel que fazia um som rouco ao roçar de minha pele. De súbito, um pedaço de cartolina escapou dentre as páginas e caiu sobre o carpete. Abaixei-me e apanhei um pequeno cartão, que tinha os dizeres:

Cerqueira César – Serviços advocatícios, de contabilidade e paranormais. 
Realizamos exorcismos.

Fiquei assombrado com a versatilidade dessa estranha firma de advogados. E mais surpreso ainda por ter encontrado tal cartão entre os objetos pessoais de Alberto. Decidi entrar em contato com o número indicado.
– Cerqueira César, boa tarde. – surgiu uma voz feminina. – Em que posso ajudá-lo?
– Boa tarde. Aqui é Firenze ...
– Sinto muito, senhor. – A voz parecia vacilante. – Não podemos atendê-lo. Passar bem.
O telefone ficou mudo. Para mim aquele tipo de tratamento não fora nada profissional. Consternado, mandei chamar meu motorista e ordenei-lhe que preparasse o automóvel para o dia seguinte. 

Continua...

sexta-feira, maio 11, 2012

Entrevista com o vampiro


Louis é um jovem fazendeiro de 25 anos que não consegue lidar com a morte do irmão, da qual considera-se parcialmente culpado. Seu sentimento de culpa o leva a praticar atos contra a própria vida, e Louis mergulha em um turbilhão de vícios, esperando que a morte o encontre. Mas quem o encontra é justamente um vampiro. Lestat, o homem louro, belo e esguio, cuja sede de sangue o torna mortal, alimenta intresses em Louis. É assim que o rapaz é transformado em um vampiro, sendo guiado por Lestat nos primeiros passos através da imortalidade. Tudo ocorre no final do século XVIII, em Nova Orleans, no estado da Louisiana, mas a vida de Louis se prolonga até os dias de hoje. Ele decide então ceder uma entrevista a um jovem repórter, com o objetivo de convencer o mundo da realidade de sua existência.
Entrevista com o vampiro foi escrito por Anne Rice e logo tornou-se um dos exponentes do gênero vampiresco, mesclando elementos góticos e eróticos com temas existenciais, tornando-se uma obra densa e ao mesmo tempo essencialmente humana. E esse é a grande força da obra de Rice, uma vez que nas literaturas e filmes convencionais o vampiro sempre foi visto como um ser que abriu mão da sua humanidade em busca de vida eterna. Mas Louis é humano demais e, para dar vazão a toda a sua humanidade, busca um sentido na vida, mesmo naquela que se prolonga pelos séculos. Em sua longa peregrinação por um mundo que vai gradativamente tornando-se de moderno a contemporâneo, o vampiro entrevistado vai descubrindo que os motivos que levariam um homem à busca pela vida eterna não seriam os mesmos que impulsionam um imortal a propagar sua existência. Sendo assim, Louis quer, acima de tudo, um sentido para viver. O sucesso do livro foi tal que originou uma adaptação para o cinema, estrelada por Tom Cruise, Brad Pitt, Kirsten Dunst e Antônio Banderas, grandes astros de Hollywood.
No Brasil, Entrevista com o vampiro foi traduzido por Clarice Lispector que, além de ter realizado um trabalho impecável, garantiu um certo charme ao romance, não só pelo prestígio de seu nome, como também pela competência de sua tradução e domínio da escrita. Entrevista com o vampiro é um romance indispensável para todos os amantes de cinema e de boa literatura.


Ficha Técnica
Livro: ENTREVISTA COM O VAMPIRO
Editora: Rocco
Autor: Anne Rice
ISBN:85-325-0102-8
Páginas:312

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/997-entrevista-com-o-vampiro

quarta-feira, maio 09, 2012

Um retorno entre serras e nuvens


Ainda nem é meio-dia e parece que eu vago há séculos neste ônibus, entre essas montanhas oblíquas de Minas Gerais. Penso nela, em seus olhos verdes e profundos, na vontade de tê-la em meus braços, de sentir seu cheiro, o sabor dos seus lábios, ouvir a voz dela. E também penso em meus devaneios noturnos, meus sonhos, nas imagens que crio antes de dormir.

O caminho agora é mais estreito, ou melhor, parece assim por causa das árvores enormes. Chegamos a um trecho aberto, montes arredondados a média distância; cascatas furtivas se revelam, tímidas. Lá em baixo um chalé ostenta sua solidão. Os montes por vezes exibem cachos de floresta, como topetes moicanos. Um outro monte tem uma cicatriz de terra, marcas inequívocas da dominação humana.

Linda cena acaba de abrir-se para mim. Algo que me pareceu uma estreita planície, várzea talvez, estendendo-se por uns trezentos metros, como se as montanhas tivessem sido intencionalmente recuadas. Pinheiros ladeavam um caminho em diagonal, escondendo a casa da fazenda de olhares curiosos dos viajantes. 

Grandes pedras se avolumam sobre o ônibus. É bonito, e grandioso. Mais uma vez parece que a estrada está mais estreita. Montanhas enormes, escuras e nuas. O céu não exibe a austeridade da vinda. Nuvens esparsas, brilhantes de tão brancas, apenas realçam a força do azul.

Pequena cidade à beira da estrada, esbanjando um ar pitoresco, quase acolhedor. Já passou. Como a vida, esta viagem é feita de silenciosas e inauditas despedidas. Ainda faltam 10 horas e incontáveis palavras até minha chegada...

Estava lendo quando fui assaltado por uma visão incrível: névoa na serra, verdadeiras nuvens bem abaixo de mim, ao longe. Fiquei a observá-las. Fui dominado por um sentimento difícil de definir. A princípio, pareceu-me inveja... Mas continuei a espremer o cérebro, até que a palavra me veio, quase como uma revelação. "Ressentimento" era o que sentia. Esses pedaços de algodão, como chumaços embebidos em magia, pareciam tão próximos e, no entanto, tão distantes! Eu me ressentia pelas nuvens, pois queria estar com elas que, desdenhosas, não me convidavam para dançar.

segunda-feira, maio 07, 2012

A Grande Chuva - Parte I


Ninguém sabe, na verdade, por que a Grande Chuva começou. Apenas sabemos que um dia uma nuvem gigantesca aproximou-se da nossa Capital e gotas fortes tocaram o Grande Relógio e os escuros capitéis de nossas catedrais. Desde então chove sem parar. 
Com a chuva, até as nossas expressões se tornaram tristes, ensimesmadas, soturnas. Tudo é tristeza, melancolia. Fomos tomados por uma profunda fleuma. A chuva, que se infiltra no concreto e o amolece, endureceu nossos corações. E da mesma forma que a chuva, veio também o sonho. 
Sempre uma ladeira sem fim, íngreme. Subo e isso leva um tempo que parece não acabar. Lá no alto, depois do muro de um terreno baldio e a cerca de um condomínio, com alguns prédios, há uma esquina iluminada por um poste. Logo que eu viro essa esquina, vejo um menino.
Ele tem sapatos e meias pretas, veste shorts de tergal e camisa branca escolar. E a chuva, sempre sobre ele. Eu me aproximo e quando toco os ombros do menino, ele se vira e lança seu olhar sobre mim. Seus olhos são amarelados, olhos de fera. Algo ou alguém uiva na escuridão e eu desperto. 
Há três gerações este sonho persegue minha família. Meu avô, meu pai e meu irmão mais velho, Alberto, o tiveram. E agora eu, o último Firenze. Todos os homens da minha família se perderam em busca da resolução desse mistério: o sentido do sonho. Todos eles tinham a certeza de que tanto o sonho quanto a chuva estão interligados.
Eu meditava, à hora do chá, sobre as marcas do mundo que a Chuva pôs a perder. Ninguém insiste nisso, mas é senso comum que no lugar desse mar escuro que nos cerca a leste havia a Grande Planície. Basta pesquisar nos registros de periódicos datados do início do século. A Metrópole, muito maior e mais opulenta que nossa Capital, estava estabelecida do outro lado desse mar intruso. Entretanto, nem é preciso tanto rigor quanto o necessário a um pesquisador ou detetive para abalizar nossas crenças. Basta andar por aí, conversar (ainda que pouco) com o povo ou ver com os próprios olhos. No bairro mal-afamado do Horto há uma pitoresca evidência: a linha férrea desativada leva diretamente às vagas escuras, entre as plataformas das docas. 
Eu recordava essas evidências, imerso em minha tristeza. Embora a melancolia já fosse um traço natural em minha personalidade, aquela tarde me transmitia um pesar ainda maior. Sentia a dor da perda de algo que nunca conheci, nem virei a conhecer. O mordomo acabara de trazer uma baixela com chá e biscoitos e eu fitava, pensativo, o grande Relógio que poderia ser vislumbrado a certa distância pela vidraça de meu gabinete.

Continua...

sexta-feira, maio 04, 2012

A Caverna: a vida além da vida


Não há dúvidas de que a Filosofia contribuiu de forma fundamental para que o pensamento humano se tornasse o que é hoje em dia. Procurando submeter a realidade a uma forma de pensar diferente do convencional, os filósofos contribuíram para quebrar tabus, desnudar preconceitos, apontar brechas nos comportamentos da sociedade. Além disso, trata-se de um fato que a Literatura e a Filosofia sempre mantiveram um estreito diálogo desde os primórdios da civilização humana.
Mas existe, de fato, uma utilidade para a Filosofia? Qual é o seu papel? Sua missão? E quais são seus frutos hoje em dia, no auge da sociedade pós-moderna? E para o homem comum, com uma formação técnica, qual a vantagem de conhecer a Filosofia? As questões que ela levanta seriam no mínimo interessantes para esse homem?
A Caverna, do vencedor do Nobel José Saramago, propõe essa discussão. Não vá pensar, porém, que se trata de um livro para intelectuais, cheio de teorias complexas e palavras difíceis. A Caverna é um romance, sim senhor, que conta o drama de Cipriano Algor e sua família. Cipriano, um oleiro de sessenta e quatro anos, é obrigado a vender o produto de seu trabalho a um aglomerado comercial chamado o Centro. Mas tudo começa a desabar quando o Centro decide não comprar mais as louças que Cipriano fabrica com a ajuda de sua única filha, Marta. Para piorar, o marido de Marta, Marçal Gacho, trabalha como segurança no mesmo Centro e espera uma promoção quase certa. Com a promoção, Marçal será obrigado a mudar-se com a esposa para o Centro, por uma questão de norma da empresa.
Cipriano e sua filha, contudo, não desistiram. Pretendem dar a volta por cima, buscando ideias inovadoras para lidarem com essa situação. A resposta de como o oleiro obstinado e trabalhador vencerá essa batalha está nas páginas de A Caverna, um romance repleto de humanidade e sabedoria, poesia em forma de prosa. Leitura recomendada para aqueles que desejam ver o mundo com outros olhos.

Ficha Técnica:
Título: A Caverna
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 853590073X 
Ano: 2000
Páginas: 352

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/2040-a-caverna

quarta-feira, maio 02, 2012

A outra parte de mim que se foi

Pouco tive do que era dele. Mais o que já era meu, o que recebi de sua herança. A imagem que dele tinha era uma difusa figura de cabelos brancos que assomava, sempre potente, como uma torre, como um símbolo. 

E agora, ele não está mais presente. Eu ainda tento entender a sua falta maior. A última imagem continua forte em minha mente, seus olhos perscrutadores, repletos da docilidade de uma infância tardia, resgatada. Inquiria quem eu era e o que fazia ali. Enquanto silenciosamente eu tentava deixar claro que ele era o motivo de minha presença.

Acima de tudo, durante anos cultivei uma falta que agora se tornou definitiva. Conselhos, elogios, sorrisos, tudo obliterado pela distância. E mais uma vez faltaram palavras, mais uma vez. Como agora. 

* Homenagem a meu avô paterno, Arthur.