segunda-feira, outubro 10, 2011

A Cidade Suspensa – Parte VIII

Em um bonde estranho, num itinerário sombrio e revelador, Kain descobre alguns segredos sobre a Cidade Suspensa. Diante de um curioso companheiro de viagem, teme dizer mais do que deveria...


O viajante virou-se para Salomão, a fim de dar qualquer resposta, tentar inventar alguma coisa e desviar a atenção de seu companheiro, mas viu que o rapaz dormia, recostado ao vidro sujo. Fazendo um muxoxo, Kain cruzou os braços e relaxou os ombros, enquanto fechava os olhos, buscando o auxílio do sono. O bonde de repente rangeu de forma assustadora e deu um solavanco, quase lançando Kain de seu assento. 

Os primeiros raios de sol venceram as silhuetas dos prédios e atravessaram o vidro fosco das janelas do bonde. A Cidade Suspensa destacou-se, ainda mais escura ante os raios dourados e o céu azul. O solavanco violento parou e Kain constatou que estava tudo bem, seu aparente cochilo se arrastara pelas horas da noite. Salomão, seu companheiro de viagem, continuava adormecido.

O bonde fez sua primeira parada e Kain desembarcou. Enquanto o viajante observava a fachada de pedra do prédio à sua frente, o bonde retomava o movimento, em seu tortuoso caminho por trilhos que surgiam e desapareciam logo em seguida.

O prédio era gigantesco, destacando-se das demais construções. Era uma estrutura cilíndrica que subia vertiginosamente, dando a impressão de uma altura infindável. Acima do portão, como se dominasse toda a fachada, Kain reconheceu a insígnia que estava gravada na medalha que recebera de Scarlate. Então aquele rapaz, Salomão, estava realmente certo. Aquele símbolo representava a Biblioteca.

Ao aproximar-se do portão, Kain avistou um homem muito alto, vestido de um uniforme cinzento e carregando um bastão. Era o porteiro, que estendeu a mão em sinal proibitivo para o viajante. Kain estacou e retirou a medalha do bolso do capote. O homem, sem dizer uma palavra, olhou com interesse para Kain. Em seguida, tocou com seu bastão onde os dois lados do enorme portão se encontravam. Com um rangido, a entrada abriu-se para Kain, que distinguiu apenas um caminho reto a perder de vista.

Sem vacilar, o viajante penetrou na Biblioteca. O portão se fechou logo às suas costas. Candeias iluminavam o caminho de forma parca. Kain continuou a seguir em linha reta por algum tempo, até que chegou a uma outra porta, bem menor e feita de madeira. Um velho vestido de uma longa túnica e com a cabeça coberta por um capuz cumprimentou-o com uma reverência, para em seguida empurrar a porta de madeira, abrindo o par da direita. Kain seguiu aquele que, ao que parecia, seria seu guia na visita à Biblioteca.

Além da porta de madeira, o ambiente era outro. Estantes dispunham-se de forma aleatória, todas abarrotadas de livros de todos os tipos e datas. Sujeitos vestidos de longas túnicas passeavam silenciosamente entre as estantes, lendo e meditando nos livros que carregavam. Alguns deles murmuravam entre si as impressões de suas leituras. O guia de Kain levou-o entre as estantes e os murmuradores até uma outra porta, que dava em um segundo corredor em linha reta. No fim do corredor, mais uma sala, com estantes e murmuradores. O viajante percebeu que em cada sala a disposição aleatória dos móveis sugeria a complexidade de um labirinto.

Kain e seu guia seguiram por mais diversas salas e corredores, de modo que o viajante já não sabia se orientar naquele ambiente. Chegaram  por fim em um outro portão, guardado por outro guia. Acima, havia uma plaqueta de madeira onde estava escrito "Bibliotecário" logo abaixo da insígnia da Biblioteca. Kain em segundos estaria diante do homem que dominava toda aquela estrutura. Sua jornada se aproximava de um momento crucial.

sexta-feira, outubro 07, 2011

Uma narradora incomum


Que tal um encontro íntimo com a Morte? Calma! Não precisa ficar assustado. Estou falando de A menina que roubava livros, romance de Markus Zusak, escritor australiano. 

A narrativa, que ocorre em plena Alemanha Nazista, acompanha a comovente história de Liesel Meminger, uma garotinha órfã que é adotada por um casal de meia-idade. E para contar essa história, ninguém mais do que a própria Morte. 

“Aquela que ninguém quer ver” havia se encontrado com Liesel por três vezes. E por três vezes a sagaz e espirituosa funcionária do “outro lado” surpreende-se com a garota. Na terceira, um livro cai das mãos da menina, chamada pela narradora de “roubadora de livros”. Esse livro perdido é na verdade um diário, onde Liesel expressa seus pensamentos, gerados por uma verdadeira fascinação pela palavra. A Morte resgata o livro, resgatando também as vivas experiências da Heroína.

A narrativa acompanha bem de perto os passos da garota em seu crescimento, que ocorre em plena Segunda Guerra. E esse singelo trecho da vida de Liesel, naquele período tão conturbado, é uma sucessão de alegrias e dores, capazes de comover até mesmo a ilustre narradora.

A menina que roubava livros é uma obra que fala da força das palavras em uma época em que os discursos e as ideologias levaram multidões à loucura. Mas também fala de como essas mesmas palavras podem ser a ponte a aproximar pessoas criando mundos de encantamento e beleza.


Ficha técnica
Título: A menina que roubava livros
Autor: Markus Zusak
Edição: 1
Editora: Intrínseca
ISBN: 9788598078175
Ano: 2007
Páginas: 480

quarta-feira, outubro 05, 2011

Ocaso


O homem de meia idade veste um robe vermelho de seda, com um belo dragão chinês bordado nas costas. Os raios do poente emolduram a bela imagem do dragão nas costas do homem amarelo. O bigode castanho, espesso, cobre o lábio superior daquele rosto cavado e duro. Duro como o mogno lavrado. Seus dentes dourados brilham qual o pôr do sol em seu apogeu incendiante.
As horas foram sacrificadas naquele momento escasso. O homem está só, régio, ainda que cercado por estátuas de magnitudes inferiores. Amortecido e estagnado, tudo parece morrer em atenta exasperação. Somente o dragão parece vivo, com suas garras de cores quase predadoras. O robe deixa exposto o peito coberto de pêlos castanhos e lisos que parecem ser de um homem jovem. Uma cicatriz escapa furtiva, um risco sofrido que ainda sangra por dentro. O peito do homem sofre múltiplos ocasos a cada segundo esvaído.

É o dragão, triste entidade, que anseia a liberdade. Suas garras abertas com energia, quase irrompendo das costas do homem. A cauda sinuosa se estende ao longo do robe vermelho, sua ponta quase tocando o chão. A formidável criatura debate-se num delicado mar de sangue. Sua morte é plástica, estética, arquetípica. Vivo, o dragão é o que mais sofre a cicatriz do homem sorridente. É o impulso vazio do fogo. É o desejo ardente, enlouquecido pelas horas solitárias. O poente a tudo toma, expande-se no assoalho amarelado, na pele também amarela dos presentes, nos dentes amarelos expostos em cada sorriso.

Foi no momento em que as figuras voltaram a se mover que todos entenderam. Era o ocaso necessário para que o dragão pudesse enfim alçar vôo. As posições se alternaram, alguns inevitavelmente não puderam compreender. Somente sabiam. O sol mergulhou no horizonte, rebatendo enfim a última revoada da existência. 

07/07/2005

segunda-feira, outubro 03, 2011

A Cidade Suspensa – Parte VII


Para escapar dos estranhos seres que vagam entre as ruas desertas, Kain busca abrigo em um bonde noturno. Em uma viagem quase macabra, ele está prestes a descobrir alguns inusitados segredos sobre a Cidade Suspensa...


O bonde sacudiu freneticamente enquanto alguns passageiros soltavam exclamações de sobressalto. Mesmo desconfiando da integridade do veículo, Kain mantinha sua costumeira serenidade. O barulho e as convulsões externas ao bonde tinham amainado e a atenção do viajante voltou-se então para a paisagem bizarra que se constituía na Cidade Suspensa. Kain pôde perceber grandes edifícios com chaminés e formidáveis fornalhas. O fumo que as mesmas despejavam, invisível na escuridão, tornava-se distinto por segundos, quando era iluminado pelo calor do fogo das chaminés.

Eram quilômetros e mais quilômetros do que parecia ser um complexo industrial no coração da Cidade. Kain olhou para baixo e percebeu que alguns blocos dessa região não estavam ligados pela base. Dava para ver as nuvens passando por debaixo de uma espécie de fenda, que era mantida unida por uma grossa corrente de ferro. Olhando ao longe, podia-se observar que essa corrente repetia-se por toda a extensão dessa fenda, mantendo a unidade daquela seção da Cidade.

“Impressionante, não?” comentou alguém ao lado de Kain. Desinteressado, ele virou-se e notou que um rapaz negro, de olhos vivos e cabelo rastafari o olhava com um sorriso brincalhão. Percebendo a mudez de Kain, o rapaz continuou:

“São as fornalhas. Elas são tudo aqui na cidade. Impulsionam as máquinas das fábricas, deixam as caldeiras aquecidas para os banhos dos turistas, mantêm toda a cidade flutuando...”

“Banhos? Turistas?” perguntou Kain, saindo de sua taciturna mudez.

“Sim, banhos e turistas. Alguns deuses gostam muito de nossos hotéis e boates, repletos de saunas, massagens e banhos. Ninguém fala abertamente, mas eu já vi uns anjos também. Sempre chegam disfarçados, pra não ficarem com a imagem comprometida...”

O bonde continuava a se mover pelos trilhos, os quais faziam uma ponte para transpor a enorme fenda que separava os blocos da cidade. O companheiro de Kain olhou para baixo, para o infinito de montanhas, vales e rios que passavam com rapidez sob a cidade.

“Eu nunca me acostumo com isso” comentou o jovem. “Tem uns outros lugares em situação bem pior. Só cabos de eletricidade, um punhado de gatos, prendendo quarteirões inteiros. Se cortarem um fio, já era.”

“Mas as pessoas não têm medo?” perguntou Kain.

“Medo? Pode ter medo quem não tem alma? Ou tem uma falsificada? Muitos vendem o próprio coração para ter uma alma artificial, feita aqui na Cidade. Com ela, não é preciso ter medo. Ou se tiver, ele será muito mais saboroso. A propósito, sou Salomão.”

“Kain.”

“Belo nome, meu caro,” riu Salomão. “Com certeza um nome ideal.”

Kain não entendeu o comentário do outro, nem sua entonação, mas permaneceu calado. Sentia-se estranhamente nervoso. Tinha a sensação de que estava sendo procurado, e que seu caçador já deveria estar nas imediações da Cidade. Para disfarçar o nervosismo, Kain pegou a medalha que ele tinha guardado no bolso direito do sobretudo e começou a girá-la entre os dedos. Salomão olhou com interesse aquele pedaço de metal.

“A insígnia da Biblioteca!” comentou o rapaz, admirado. “O senhor é representante do Bibliotecário?”

“O quê?” Kain ficou bastante confuso com a pergunta. Salomão, pelo contrário, mudou sua expressão, como se tivesse acabado de entender.

“Sim, sim, quer dizer que você é um emissário então. Tem passe livre para a Biblioteca. Pode me dizer o que vai buscar lá?”

Kain entrou em alerta. A cada momento naquela cidade Kain testemunhava estranhas personagens interessadas em sua missão. Esse inusitado interesse despertava a desconfiança do viajante. “A cada encontro que temos com alguém, realizamos um nó na linha de nossas vidas”, lembrou-se. Temia ficar enlaçado. Talvez a misteriosa sombra que havia ficado para trás, no ponto, seria apenas mais um dos perigosos nós que Kain deveria enfrentar.

sábado, outubro 01, 2011

Um menino, um homem e uma jornada

Ao terminar As aventuras de Huckleberry Finn, a sensação foi de ter chegado ao fim de uma longa viagem. Com a certeza de que a viagem, embora longa, fora repleta de humor e nem um pouco cansativa. 

Escrito por Mark Twain e publicado em 1884, o livro narra a jornada de um garoto pobre, quase um menino de rua que, após rejeitar a adoção de uma velha fazendeira, escapa com um escravo fugido. Os dois então empreendem uma jornada por todo o rio Mississippi, enfrentando ladrões, caloteiros e, acima de tudo, as poderosas forças da natureza que dominam aquelas águas.

Incorrigível por natureza, Huck Finn mente a todo o momento, nunca diz seu verdadeiro nome, sempre inventa uma história diferente para cada pessoa que encontra. É um menino que precisou aprender muito cedo as artes da malícia para sobreviver do pai bêbado, que o espancava. 

Huck é um dos personagens mais importantes em um livro anterior de Twain, As aventuras de Tom Sawyer. Escrito dez anos depois de seu predecessor, As aventuras de Huckleberry Finn é narrado em primeira pessoa, pelo próprio Huck, num modo quase oral. Twain busca inclusive reproduzir a oralidade das personagens que surgem a cada curva do rio.

Mas o que me encantou profundamente nesta obra foi a capacidade de Twain criar imagens e sua descrição dos fenômenos naturais. Sem falar do humor construído com ironia e inteligência do protagonista e de seu companheiro de viagem, Jim.

Uma marca forte na concepção do livro é a inocência presente em toda a narrativa. Talvez por ser narrado por uma alma jovem, infantil. Podemos perceber no texto a busca pela bondade, pela honestidade, ou melhor, pela ética além da moralidade. Huck, apesar de trapaceiro e ladrão, tem seus arroubos de consciência e busca a cada momento justificar seus atos através de diálogos internos. O pragmatismo do protagonista acaba sempre vencendo, sempre batendo de frente com a moral cristã protestante que dá base à sociedade do sul dos Estados Unidos no século XIX.

A tradução de Maura Sardinha, além de competente, manteve uma graciosa cadência à narrativa, tornando a leitura agradável, mesmo nos momentos em que as personagens mais difíceis falavam! 

Para encerrar, gostaria de deixar um pequeno trecho, que me arrebatou pela beleza de suas imagens:

“Aí começou a chover, e choveu violentamente, e eu nunca tinha visto o vento soprar com tanta força. Era uma verdadeira tempestade de verão. Lá fora tava tão escuro que chegava a ficar preto-azulado, e lindo; e a chuva batia com tanta força que as árvores pareciam embaçadas, como se tivessem cobertas de teias de aranha; às vezes uma lufada de vento fazia as árvores se dobrar e mostrar a cor mais clara do avesso das folhas; logo depois, uma forte rajada fez os ramos balançar como se tivessem enlouquecidos; e depois, quando o preto-azulado tava bem forte – fsst –, um brilho glorioso deixou a gente ver as copas das árvores balançando no meio da tempestade, muitos metros adiante do que se via antes; depois, num segundo, ficava tudo novamente escuro como o pecado, e se ouvia outra vez o estrondo do trovão que roncava, resmungava e caía do céu até os confins da terra, como barris vazios rolando uma longa escada abaixo.”

Ficha técnica
Título: As Aventuras de Huckleberry Finn
Autor: Mark Twain
Edição: 1
ISBN: 9788577992287
Editora: BestBolso
Ano: 2011
Páginas: 352

segunda-feira, setembro 26, 2011

A Cidade Suspensa – Parte VI

Kain percebe que se quiser continuar sua busca, deverá entrar no jogo e fazer suas apostas, pagando o preço pela informação de que precisa.

Praguejando, Kain vasculhou os bolsos mas, antes que retirasse as moedas de cobre, o vendedor apontou para o sobretudo do viajante, mais precisamente para um dos botões. Kain lembrou-se então que as coisas que compõem as pessoas, naquela cidade, valem muito. Sem vacilar, o viajante arrancou o botão e depositou-o na palma da mão do vendedor. 

Sorrindo, o Ambulante Chinês fechou os olhos, enquanto esfregava o botão, logo caindo num curioso transe. Uma voz bem diferente começou a recomendar:

“Agora não adianta nada, mas alguma coisa tem que ser feita. O dia acabou e logo a parte mais escura da noite vai chegar. Até lá, você tem que estar em algum lugar, algum abrigo. A noite aqui é muito, muito fria e o escuro devora gente. Nenhuma porta ou janela oferece abrigo e os Aqueles que Vagam ocupam as ruas desertas.” 

O mascate calou-se e respirou fundo. O silêncio pairou entre o dois de uma forma quase premonitória. Kain se sentia condenado. Vendeu uma parte de si mesmo só para ter a confirmação do que já sabia.

“Eu dou uma passagem de bonde para o freguês”, disse o Ambulante Chinês, retirando de um de seus muitos bolsos um pedaço de papel grosso. “É um bonde noturno e a linha não pára até que a noite acabe. Seguro lá vai ser bem!”

Kain pegou a passagem que o Ambulante Chinês lhe estendia. Desejava maiores explicações, mas então percebeu ao redor que a Cidade Suspensa estava bem mais escura que antes. Deu as costas ao vendedor sem agradecer e afastou-se.

Foi fácil para Kain encontrar o ponto de embarque do bonde, conforme havia indicado o Ambulante Chinês. Ficava em uma rua estreita, mais escura que as outras, com um abrigo para chuva.

“Como se nessa porcaria de cidade chovesse”, pensou o forasteiro, enquanto olhava ao redor. Tudo no mais completo silêncio, enquanto alguns postes, quase solitários, começavam a funcionar, despejando uma luz amarelada em trechos irregulares das avenidas, visíveis ao longe. O ar era carregado, fedorento, como se fosse o interior de um porão. 

O viajante abriu o pesado capote que o cobria e esfregou o pescoço. A imagem de Scarlate, a Cortesã, veio então à sua mente. A pele branca qual leite, contrastando com os cabelos vermelhos, lançaram o forasteiro em um semi-delírio.

Um movimento furtivo chamou a atenção de Kain. Havia mais alguém no abrigo. Recompondo-se, o viajante assumiu uma postura defensiva, examinando a silhueta de um provável companheiro. A penumbra que envolvia o ponto de embarque não permitia que ele identificasse aquela pessoa, tornando-a uma incógnita sem rosto, feita de sombra. Kain achou melhor manter distância.

Ficaram ambos em silêncio. O desconhecido era como um buraco escuro, a brecha para o vazio. No entanto, sua presença era mais palpável e urgente que o abrigo, os postes, os edifícios. Kain sentiu os pêlos de sua nuca eriçados. 

O som perturbador do chiar de ferros em movimento feriu o silêncio e rompeu o impasse do momento. O bonde se aproximava.

Era um veículo de cor indefinida, por causa da escuridão, mas as luzes internas deixavam-no com a aparência de abóbora em noite de Halloween. Emitia os sons estridentes de metais se arranhando, enquanto passeava por trilhos que Kain não conseguira perceber. Após instantes de observação mais atenta, percebeu que os trilhos na verdade surgiam do chão à medida que o bonde se locomovia, para depois desaparecerem quando o veículo passava.

Ao sinal do viajante, o bonde parou no ponto de embarque. Um agente de uniforme surrado e rosto macilento estendeu a mão, esperando o bilhete. Kain entregou o pedaço de papel e embarcou. Enquanto o veículo se punha em movimento, o viajante percebeu de relance que o misterioso vulto ficara para trás, como se aguardasse locomoção mais apropriada. Sentindo um estranhamento crescente, Kain dirigiu-se para o fundo do bonde, enquanto observava as pessoas maltrapilhas e assustadas que o fitavam com a acidez de quem quer desviar olhares curiosos. Um solavanco inesperado lançou Kain para o banco que escolhera e, enquanto se acomodava, passou a olhar pela janela. O vidro era manchado, como se alguém tivesse tentado lavá-lo e em seguida, desistido. Olhando ao longo do corredor, dava para ver as costas do controlador do bonde, que usava o mesmo uniforme gasto que trajava o encarregado de receber as passagens.

A atenção de Kain foi totalmente desviada para o lado de fora. A noite foi tomada de sons de agudo sofrimento. O bonde foi cercado por uma força invisível, um sentimento doloroso que fez os passageiros desavisados, como Kain, pensarem que o veículo seria esmagado como uma lata de alumínio. Lá fora, vultos de forma indefinida povoavam as ruas.

Naquele momento, Kain percebeu que aquela era a hora noturna da pior escuridão.

quinta-feira, setembro 22, 2011

Sobre pedaços de assuntos inacabados

Van Gogh O quarto do Artista 1889


Abro minha mochila: junto com o bloco de anotações encontro algumas outras pistas interessantes. Dentre elas, a capa que comprei para a máquina de lavar, ainda dobrada dentro da embalagem. Encontro também uma revista de palavras cruzadas que nunca terminarei e um livro comprado anteontem (ou teria sido ontem?) que não lerei tão cedo.

Descubro que minha mochila é como eu mesmo: um depósito de coisas inacabadas ou não resolvidas. Os quadros que ela pintou ainda estão lá no apartamento, encostados num canto atrás da porta. Não assumiram o lugar na parede a eles destinado. Sequer têm a assinatura dela. São testemunhas quase mudas, mas transmitem a energia dos gestos dela, as suas escolhas de tons, seu desapego quase irresponsável, seu amor ao trivial. Só meu silêncio repete o nome dela cada vez que os olho. Mas deixa estar. Não quero falar dos quadros, são mais um de tantos assuntos inacabados.

Também não quero ser tomado por alguém triste. Todos nós temos assuntos não resolvidos. Alguns ficam para trás, no caminho, como destroços de nós mesmos, evidências do nosso naufrágio diário. Outros continuam conosco, igualmente inúteis, mas a diferença é que não os largamos. Nosso consciente os esquece, mas eles continuam lá, como parte da paisagem que somos nós.

Carregar um peso não seria tão ruim se minhas costas não doessem tanto. As cartas também, não me importaria de mantê-las comigo. Eu me importo e não as queimo. Estão lá, em algum canto do guarda-roupa bagunçado, esperando que eu vá ressuscitá-las. Assim como este papel, parte de um bloco de anotações feito a partir de folhas de rascunho. Dou vida às minhas ideias a partir do lixo, da ruína. Quando olho estas folhas, estejam elas vazias ou cheias de meus rabiscos, é como se estivesse diante de um espelho.

Afinal, o que o homem toca que não seja obviamente incompleto?

quinta-feira, setembro 15, 2011

A Cidade Suspensa – Parte V


Após desfrutar de estranhos prazeres com Scarlate, Kain é devolvido às ruas da Cidade Suspensa para continuar sua busca.

Logo quando saiu da taberna, Kain avistou o Ambulante Chinês, que o aguardava. O mascate exibia um sorriso torto, que beirava o escárnio. O viajante percebeu que os raios do crepúsculo ainda coroavam os edifícios mais altos da Cidade. Inicialmente perplexo, pensou um pouco e depois concluiu que o fluxo do tempo e sua percepção, na Cidade Suspensa, deveriam ser bem peculiares. Kain aproximou-se do vendedor.

“Parece feliz, freguês." disse o oriental "Moça bonita, a Scarlate, né? Parece dez anos mais jovem depois de estar com ela, né?”

Mas Kain não ligou muito para os comentários do outro. Estava se sentindo mais leve, pois sua jornada naquela cidade voadora parecia mais fácil do que havia calculado. Ao pensar na condição de vôo da Cidade, estranhou ainda estarem no chão. Perguntou ao Ambulante Chinês:

“Quando a Cidade irá decolar, afinal?”

“Ora, já decolou, freguês” respondeu, ainda sorridente, o vendedor. “Logo que você chegou, né?”

“Mas eu não sinto nada... Pra mim, ainda estamos no chão.”

“Todo mundo está no chão, freguês, todo mundo...” limitou-se a dizer o homem, antes de mudar de assunto “ficar na cidade, conseguiu?”

“Sim, já tenho um laço” declarou, satisfeito. "Devorei o coração de Scarlate.”

O Ambulante Chinês soltou uma sonora gargalhada. Kain observou-o, sereno, embora não
apreciasse a reação do oriental.

“Corações de cortesãs não servem para laço, patrão. Precisa achar um coração sem marca de dentes. Por aqui difícil isso ser.. Mas vender um eu posso, não tem laço, é artificial, mas é mais gostoso que o de uma cortesã, né?"

Aquela resposta deixou Kain muito irritado com toda a situação. Sentiu-se enganado. Tudo bem que Scarlate valia mais do que duas moedas de cobre, mas o Ambulante deveria ter sido mais claro em sua informação. Pelo visto, o viajante só fora enviado para a taberna para cumprir outros propósitos. Quase foi dominado pela vontade de punir o chinês. 

“E o que eu faço?” perguntou Kain, sentindo o cansaço da viagem começar a cobrar seu preço sobre aquele corpo não tão jovem.

“Isso agora tem preço, né?” respondeu o Ambulante, acentuando a agudeza de seu sorriso. “É informação, agora tem um preço.”

sábado, setembro 03, 2011

A Cidade Suspensa – Parte IV

Kain tem um exótico encontro com uma mulher fatal, que poderá ajudá-lo a alcançar seu objetivo...


Scarlate deixou o balcão sob os cuidados de outra garota e quase arrastou Kain para além de uma porta lateral, por um corredor que dava em quartos para uso particular. Segurava com firmeza a mão esquerda do estrangeiro. Entraram em um dos quartos, mobiliado com uma cama rústica e uma mesa com um candeeiro onde uma vela ardia. 

A Cortesã trancou a porta atrás dele, estendeu a mão para a vela e pronunciou uma palavra estranha que fez a pequena chama brilhar em tom vermelho vivo. Ela então cravou as unhas com força em seu próprio peito, enfiando os dedos até que a mão fosse também enterrada. Kain observava com um misto de curiosidade e nojo a complicada operação que ocorria.

Com um suspiro, Scarlate enfiou o resto da mão direita no tórax e puxou para fora seu coração, que pulsava irregular e estava coberto de marcas de mordidas, cicatrizes como as que cobrem os braços de um guerreiro já velho e cansado. Apesar de muito marcado, aquele coração batia com tal força que chegou a despertar certa melancolia em Kain, ao percebê-lo tão vivo e pulsante. 

“O que é isto?!” perguntou Kain, tentando disfarçar seu olhar melancólico. “Esse coração tá uma droga. Não vou comer isso.”

Scarlate observou-o por alguns instantes. Novo suspiro.

“Não sei de onde vem, estrangeiro, mas não se rejeita um coração por aqui. Não seja rude diante de uma dama.”

Kain olhou resignado para Scarlate, a Cortesã, temendo que ela tivesse percebido sua fraqueza. Se quisesse ajuda, seria melhor não ofender aquela mulher. Dando de ombros, ele tomou o coração entre as mãos.

“Você só pode comer um décimo dele, nada mais” advertiu-o a moça. “A chama da vela voltará ao normal, marcando o fim do contrato.”

Kain girou o coração em suas mãos, procurando uma área sem marcas. Mordeu um pedacinho e descobriu que o gosto era muito bom, melhor do que imaginava. Deitou-se na cama, e Scarlate deitou-se ao seu lado. Kain fechou os olhos, enquanto dava pequenas mordidas, buscando aproveitar seu bocado, sorvendo calmamente a parte do coração de Scarlate que havia à disposição.

Quando a chama da vela voltou ao normal, Kain sentia um misto de vazio e satisfação. Levantou-se, para deixar o recinto, mas Scarlate segurou-o pelo braço. O coração ainda jazia do lado de fora, no colo da moça, sangrando das mordidas que Kain fizera. Sem perceber, o viajante havia consumido mais do que lhe fora permitido, chegando a tirar um bom pedaço. A moça estendeu-lhe algo.

“Leve isto com você. Irá ajudá-lo a continuar na Cidade.”

Sem proferir palavra, Kain tomou o objeto das mãos de Scarlate e examinou-o brevemente. Parecia ser uma medalha antiga, com inscrições misteriosas, indecifráveis. Ainda em silêncio, o viajante deixou o recinto. A Cortesã, após alguns segundos de meditação, enfiou logo o coração no peito e correu a procurar papel e pena. Alguém importante precisava ser informado dos últimos acontecimentos.

quarta-feira, agosto 31, 2011

Cachalote - Para além da superfície

Ler Cachalote, graphic novel de Daniel Galera e Rafael Coutinho, foi uma experiência de profunda imersão. Ainda que toda a forma de narrativa busque proporcionar a seu leitor essa experiência, creio existem graus de imersão. Esta será mais profunda de acordo com a empatia do leitor, mas também conforme a competência e a genialidade do artista.

Cachalote não só permite o mergulho em vidas alheias como também, através de sua narrativa, busca proporcionar, numa profunda catarse, que o leitor esteja na pele de cada personagem. Ainda que pareça óbvio dizer que sua na narrativa é extremamente visual, a expressividade do traço de Rafael Coutinho criou um ambiente quase delirante. Fragmentado, o roteiro guia o olhar do leitor por um universo em que 5 vidas se desdobram. 

Cachalote não poupa o leitor, assim como não poupa seus personagens. Construído numa complexidade que torna difícil falar em tema (o que enriquece a obra), pode ter várias interpretações, diferentes interações, como um cubo mágico em quadrinhos. E o tom quase kafkiano que permeia cada história realça essa alegoria. Não só o tom. Há uma sexta história, que entra como prólogo e epílogo da graphic novel, e que faz jus ao título. Ao falar em interpretações, considero por bem fazer menção a duas abordagens: uma, a mais superficial, fala da relação aparência versus essência. A outra, talvez mais profunda, aborda a tensão entre maturidade e criatividade. Talvez maturidade não seja a melhor palavra, mas velhice, ou decrepitude, decadência. A resignada degeneração da beleza.

Essa degeneração deixa lacunas por todo o enredo. Cabe ao leitor completar essas lacunas, intuir dos mistérios tecidos em torno dos personagens. Como metáforas de almas velhas, artísticas, que passam por crises criativas, como se encalhadas após sequencias de pequenos fracassos que aos poucos se tornaram em uma tragédia. E uma ausência de um desfecho tradicional como maior alegoria da própria incompletude dos personagens e de nós mesmos.

Título: Cachalote
Editora: Companhia das Letras
Autores: Daniel Galera e Rafael Coutinho
ISBN: 9788535916737
Ano: 2010
Edição: 1
Número de páginas: 320
Acabamento: Brochura
Formato: 21.00 x 27.00 cm

domingo, agosto 28, 2011

A Cidade Suspensa – Parte III


Kain chega à enigmática e titânica Cidade Suspensa. Agora, ele deve encontrar uma maneira de permanecer na cidade. De forma inusitada, o estranho Ambulante Chinês apresenta-se para ajudar.

"Pra ficar na Cidade, só tem três jeitos: Um emprego, Um laço com um cidadão, Uma moradia. Se conseguir qualquer um, pode ficar."

Essas palavras ecoaram na cabeça de Kain, que manteve seu silêncio enquanto fitava o Ambulante Chinês. Aquilo era mais que simples informação. E sem nenhum custo? Kain continuava a desconfiar do mascate, que exibia um riso estranho, quase com um ar de deboche.

"Sei o que deve pensar agora o freguês, né? Pensar deve que não sabe o que fazer... Que difícil começar... Dessa avenida, do lado de onde eu tava vindo, tem uma taberna. Procura Scarlate a Cortesã. Ajudar o freguês pode, né?"

O Ambulante Chinês apontou para algum lugar ao longo da avenida imersa em sombras. Uma tímida luz parecia lutar contra a escuridão, como a fraca chama de uma vela. Com seu típico sorriso matreiro, ele voltou à frente da carroça e passou a puxá-la, numa corrida regular, no sentido contrário ao destino de Kain. Enquanto o mascate se afastava, o viajante resolveu que não custava nada seguir aquela dica.

A taberna estava envolta em uma luz parca e não havia música ambiente. Alguns clientes espalhavam-se pelas mesas mal-cuidadas, com umas poucas garotas a acompanhá-los. Todos se vestiam de forma quase miserável e conversavam aos sussurros. Kain procurou a moça referida pelo Ambulante Chinês. Um dos clientes apontou com a relutância de um ébrio para os fundos do estabelecimento.

Scarlate, a Cortesã, cuidava do balcão. Era de longe a moça mais bonita daquela taberna, com seus volumosos cabelos vermelhos e olhos verdes. E não seria mentira que ela ficou impressionada quando Kain surgiu à porta do estabelecimento. A Cortesã viu um homem alto, vestido com um capote cinza e cabelos compridos e grisalhos. Era bonito e tinha uns olhos assustadoramente negros. Kain aproximou-se de Scarlate e depositou duas moedas de cobre sobre o balcão.

"Uma bebida e uma noite com você." disse o viajante, com um olhar apertado, perturbador.

Scarlate fez mofa, enquanto apanhava as duas moedas e segurava-as entre os dedos finos. Olhou o viajante com deboche.

"Você deve ter vindo de um lugar cheio de garotas bonitas e baratas, estrangeiro, mas aqui, isso só paga a cerveja."

Enquanto segurava as moedas com a mão direita, Scarlate passou a esquerda por baixo do balcão, de onde tirou uma velha caneca de madeira, que foi depositada em frente ao viajante. Ainda com a mão esquerda, a Cortesã pegou na alça de um jarro, derramando seu conteúdo no interior da caneca, até enchê-la. Enquanto servia o cliente, a jovem começou a esfregar as duas moedas de cobre entre os dedos, fazendo a cor amarronzada começasse a despregar-se como se fosse ferrugem. Ela agora tinha duas moedas de prata nas mãos. Kain não parecia surpreso. Em muitos lugares que conhecera, cortesãs também eram feiticeiras.

"Bom, agora você tem o suficiente." Disse Scarlate. Ela havia gostado do visitante. "Mas só para um pequeno pedaço."

A Cortesã então guardou as duas moedas no avental, enquanto Kain tomava uns bons goles do copo de cerveja. Scarlate sorriu enquanto observava o pomo-de-adão do viajante fazer movimentos vigorosos. A moça passou a língua pelos lábios, esboçando um sorriso malicioso e enigmático. 

domingo, agosto 21, 2011

A Cidade Suspensa – Parte II

O som dos guizos trouxe um homem chinês, de baixa estatura, vestido com uma bata oriental de cor indefinida, por causa da pouca iluminação. Ele vinha puxando uma pequena carroça abarrotada de bugigangas. Pelo visto, o homem era um mascate e carregava uma quantidade de mercadorias maior do que a carroça podia normalmente suportar. O homem também tinha uma trança comprida e bem cuidada caindo pelas suas costas. Usava um chapéu justo, característico, que se encaixava muito bem em sua cabeça. O Ambulante Chinês parou diante de Kain.

"Um viajante, um viajante." Repetiu, feliz, o homenzinho. "Bem-vindo freguês. Sua sorte esse encontro, sim. O senhor pode comprar coisas boas, coisas muito boas aqui, né?"

"Não tenho interesse." respondeu Kain, evasivo. "Com licença."

Mas o Ambulante Chinês não pareceu querer desistir do novo cliente, pois desvencilhou-se da carroça e tentou barrar o caminho do viajante. Suspirando, Kain abriu e fechou os olhos lentamente, como se decidisse dar uma chance ao mascate. Alegre, o Ambulante Chinês começou a retirar de sua carroça os mais variados objetos.

"Amuletos, tenho sim; patuás, livros de feitiçaria, poções milagrosas, tenho tudo, freguês. Mas o melhor com certeza é uma alma forjada. Uma raridade, né? Tenho uma aqui na medida certa, né?"

Kain estava surpreso, mas não tinha dinheiro para comprar almas, mesmo falsas. Se não podia cobrir o preço nem mesmo da sua...

"Escuta, eu quero saber o que faço para poder ficar na Cidade." 

"Mas isso é informação, né?" respondeu o Ambulante Chinês. "Informação também tenho pra vender, né? Mas o freguês é novo, é amigo, vou dar de graça."

Kain olhou-o, ainda surpreso. Ele parecia mesmo querer dar essa informação sem cobrar por ela. Não existe nada de graça, pensou o viajante. Não conseguia adivinhar qual era o objetivo daquele vendedor em ser tão amigável. Kain suspeitava que talvez as forças que conspiravam contra o êxito de sua missão já estivessem em movimento.

quinta-feira, agosto 18, 2011

Testemunhas de um tempo distante


Para muitas pessoas, o passado é fascinante e, quanto mais longínquo for o tempo, mais perguntas ele desperta. Seria isso verdade? Pois essa é a premissa de tantos arqueólogos. Ao encontrar um esqueleto, é inevitável ao estudioso perguntar: quem foi essa pessoa? Por que ela estava aqui? O que costumava fazer em seu dia-a-dia? A História hoje fornece um grande volume de informações, mas as perguntas continuam, inesgotáveis. Surge então uma obra destinada a um passado distante da terra, quando pesquisadores afirmam ter vivido os primeiros exemplares do homo sapiens (cro-magnon), que teriam convivido ainda com os neandertais.

É nessa época que nasce Ayla, uma menina cro-magnon que havia sobrevivido a um terremoto em que toda a sua família morrera. Vagando sem destino e superando terríveis perigos, a menina é acolhida por Iza, uma neandertal que viajava com o seu grupo em busca de um novo lar. A caverna dos neandertais havia sido destruída pelo mesmo terremoto que vitimara os pais da menina cro-magnon. Decidida por adotá-la, Iza dá a ela o nome de Ayla. 

A princípio, os demais integrantes do bando não desejam a presença de uma estranha entre eles. Brun, o líder, é um dos maiores opositores à permanência da menina, mas a influência de Iza, que é curandeira, garante que Ayla seja acolhida e iniciada nos costumes do grupo. 

Enquanto cresce, Ayla faz amigos, como Creb, o Mog-ur (feiticeiro), e inimigos, como Broud, o filho de Brun e futuro líder. Com o passar do tempo, Ayla descobrirá que quanto mais amigos tiver, mais perigosos serão seus inimigos.

Ayla, A Filha das Cavernas é o primeiro volume da saga Os filhos da terra, de Jean Auel. É uma narrativa fascinante sobre um povo já extinto e seu possível contato com o ancestral do homem moderno, que o substituiu. Com grande conhecimento e um talento inegável, Jean Auel tece a trama da garota cro-magnon ao longo da sua infância e adolescência, criando uma personagem apaixonante, tanto por sua perspicácia quanto inteligência mas, sobretudo, por sua coragem. Tudo isso torna Ayla, a filha das cavernas um verdadeiro épico, uma leitura indicada para todos os gostos.


Ficha Técnica

Editora: Record
Autor: JEAN M. AUEL
Ano: 2003
Edição: 1
Número de páginas: 556
Acabamento: Brochura
Formato: Médio
Volume: 1

Também disponível em edição de bolso.

domingo, agosto 14, 2011

A Cidade Suspensa – Parte I



Era início de noite quando Kain chegou aos portões da Cidade. Na verdade, ainda estava claro o bastante para que ele pudesse distinguir os tons alaranjados dos raios de sol que abandonavam com rapidez o horizonte. Kain suspirou, enquanto batia as mãos nos joelhos cansados, para afastar a poeira do caminho. Por duas semanas ele havia viajado, sem parar, e agora chegava àquela cidade de edifícios escuros e imponentes, silenciosa quando não se movia. Era bom ter chegado a tempo.

O viajante deu seus primeiros passos para abandonar a estrada empoeirada e atravessar os limiares da Cidade. Os portões enferrujados permaneciam fechados, mas ele sabia que aquilo era uma ilusão. O grande enigma que tomara grande parte de sua vida: como penetrar na Cidade Suspensa.

Estava bem assentada no chão, era verdade. Outro viajante menos experiente pensaria que se tratava de apenas mais deplorável aglomerado de almas enclausuradas. Um aglomerado impenetrável para aqueles que não conhecessem seus segredos. Uma encruzilhada poeirenta, um crepúsculo e um peito vazio. Essas eram as três condições para penetrar naquele lugar.

Sem hesitar, Kain dirigiu-se aos portões em passos firmes. Um segundo antes de penetrar na Cidade, os portões permaneciam em solene imobilidade. No segundo seguinte, como previra, o viajante os havia ultrapassado, parando apenas para observar as construções titânicas e opressivas que compunham os edifícios da Cidade. Kain suspirou, enquanto lembrava que tinha pouco tempo. Logo a Cidade se suspenderia e começaria mais uma jornada. Era necessário encontrar um lugar para ficar antes que ela fizesse um novo pouso.

Dentro do gigantesco complexo, Kain não sentia o vento. Era tudo parado e morto naquelas ruas que pareciam feitas de aço e fuligem. "Isso tudo parece enorme um labirinto de carvão." pensou ele. A Cidade era um gigantesco emaranhado de avenidas e edifícios escuros, banhados por uma luz lúgubre. Suspirando, procurou ao redor uma porta ou janela com luz acesa, algo que denunciasse vida. Não encontrou nada a não ser penumbra. Segundos depois, ouviu o agudo tilintar de guizos que se aproximavam pela avenida à direita.

quarta-feira, agosto 10, 2011

As marcas da mão dela


Era para ser um blog literário. Mas hoje será somente um blog. Um diário, sim, com a única função de tentar capturar um momento que, ainda que não saibamos por qual motivo, consideramos precioso.

Cheguei à casa dela por mero acaso. Digo que não foi planejado. Já queria visitá-la, tentava ligar com certa regularidade e ficava imerso em culpa por não conseguir concretizar esse intento. Sabia que ela sempre estaria lá, nessa inércia que atua em cumplicidade com as culpas cultivadas e administráveis.

Toquei o interfone, subi os dois lances de escadas e descobri a porta aberta. Gesto tácito de que sempre seria bem-vindo, sempre aguardado. Apesar de tudo, foi com a hesitação dos filhos pródigos que entrei.

Descobri, então, que ela não estava no sofá de costume. Na verdade, ela repousava em um recanto que eu ainda não conhecia. Acuada pelo calor, ela repousava em uma área interna. Beijei-a e fui beijado, enquanto perto dela procurava refazer suas memórias, costurando com a linha das palavras, embora sem agulhas.

Ela parecia distante, alheia, formal demais. Em determinado momento, desistiu e caiu em pranto: "Eu não consigo lembrar quem é ele..." Enquanto eu, com um copo de suco na mão, o estômago pesado, senti, ainda que por um segundo, ser algo sem existência, um ínfimo espaço nulo, negado.

Consternado, busquei forças para voltar a existir, para me impor no mundo dela, ser alguém de novo. Com suas mãos entre as minhas, eu tentava repetir o gesto que sempre fazia quando criança, seguindo com o polegar e o indicador as marcas da mão dela, segurando com a pontinha a pele, sentindo sua leveza carregada de idade. Ela então, meio que aliviada, disse que estava agora lembrando, enquanto eu ainda parecia não acreditar que havia sido devolvido à existência.

Carreguei-a no colo de volta à sala. Massageei seus pés com óleo, acariciei seus cabelos. Mas nada arrancava de mim a sensação de nulidade, enquanto eu a via em luta constante com insetos invisíveis e visitas indesejadas, imaginadas.

Enfim foi preciso partir. Beijos, abraços, pedidos de bênção. E a sensação incômoda de que eu não poderia deixar com ela um pedaço meu. Deveria ir embora levando comigo todos os meus cacos.