sábado, setembro 03, 2011

A Cidade Suspensa – Parte IV

Kain tem um exótico encontro com uma mulher fatal, que poderá ajudá-lo a alcançar seu objetivo...


Scarlate deixou o balcão sob os cuidados de outra garota e quase arrastou Kain para além de uma porta lateral, por um corredor que dava em quartos para uso particular. Segurava com firmeza a mão esquerda do estrangeiro. Entraram em um dos quartos, mobiliado com uma cama rústica e uma mesa com um candeeiro onde uma vela ardia. 

A Cortesã trancou a porta atrás dele, estendeu a mão para a vela e pronunciou uma palavra estranha que fez a pequena chama brilhar em tom vermelho vivo. Ela então cravou as unhas com força em seu próprio peito, enfiando os dedos até que a mão fosse também enterrada. Kain observava com um misto de curiosidade e nojo a complicada operação que ocorria.

Com um suspiro, Scarlate enfiou o resto da mão direita no tórax e puxou para fora seu coração, que pulsava irregular e estava coberto de marcas de mordidas, cicatrizes como as que cobrem os braços de um guerreiro já velho e cansado. Apesar de muito marcado, aquele coração batia com tal força que chegou a despertar certa melancolia em Kain, ao percebê-lo tão vivo e pulsante. 

“O que é isto?!” perguntou Kain, tentando disfarçar seu olhar melancólico. “Esse coração tá uma droga. Não vou comer isso.”

Scarlate observou-o por alguns instantes. Novo suspiro.

“Não sei de onde vem, estrangeiro, mas não se rejeita um coração por aqui. Não seja rude diante de uma dama.”

Kain olhou resignado para Scarlate, a Cortesã, temendo que ela tivesse percebido sua fraqueza. Se quisesse ajuda, seria melhor não ofender aquela mulher. Dando de ombros, ele tomou o coração entre as mãos.

“Você só pode comer um décimo dele, nada mais” advertiu-o a moça. “A chama da vela voltará ao normal, marcando o fim do contrato.”

Kain girou o coração em suas mãos, procurando uma área sem marcas. Mordeu um pedacinho e descobriu que o gosto era muito bom, melhor do que imaginava. Deitou-se na cama, e Scarlate deitou-se ao seu lado. Kain fechou os olhos, enquanto dava pequenas mordidas, buscando aproveitar seu bocado, sorvendo calmamente a parte do coração de Scarlate que havia à disposição.

Quando a chama da vela voltou ao normal, Kain sentia um misto de vazio e satisfação. Levantou-se, para deixar o recinto, mas Scarlate segurou-o pelo braço. O coração ainda jazia do lado de fora, no colo da moça, sangrando das mordidas que Kain fizera. Sem perceber, o viajante havia consumido mais do que lhe fora permitido, chegando a tirar um bom pedaço. A moça estendeu-lhe algo.

“Leve isto com você. Irá ajudá-lo a continuar na Cidade.”

Sem proferir palavra, Kain tomou o objeto das mãos de Scarlate e examinou-o brevemente. Parecia ser uma medalha antiga, com inscrições misteriosas, indecifráveis. Ainda em silêncio, o viajante deixou o recinto. A Cortesã, após alguns segundos de meditação, enfiou logo o coração no peito e correu a procurar papel e pena. Alguém importante precisava ser informado dos últimos acontecimentos.

7 comentários:

  1. "Segurava com firmeza a mão esquerda do estrangeiro com firmeza"
    Arrume isso, Nerito!

    No mais, estava ansioso pra ler esse pedaço do texto. Ficou tão bom quanto você fez parecer quando me explicou!

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  2. Valeu pela dica, Teixeira. Está arrumado. Meus olhos estão viciados... eu cheguei a ler esse texto uma penca de vezes!

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  3. Vi seus comentários no meu blog e vim correndo aqui, crente, crente que você tinha atualizado.

    Maldade, Sr. Nerito, maldade...

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  4. Nossa, essa coisa de comer o coração foi muito forte.Bravo, garoto!

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  5. Como um verdadeiro Harlequin, Scarlate surpreendeu Kain como seu contrato. O doce tóxico e entorpecente, extasia e engana Kain ao ponto de fazê-lo comer mais do que devia. Ah! como é delicioso reler certos trechos conhecidos ;)

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  6. Comecei a ler essa saga hoje e, posso voltar atràs quando terminar de ler o restante... Mas, o fato é que esta parte é linda! Sua escrita é muito boa e ajuda a construir imagens magnifícas. Essa cena em que seu personagem vê e morde o coração da moça é belíssima. Me remete a às situações da vida em que dor, beleza e crueldade parecem uma coisa só. Estou encantada.

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