quarta-feira, agosto 31, 2011

Cachalote - Para além da superfície

Ler Cachalote, graphic novel de Daniel Galera e Rafael Coutinho, foi uma experiência de profunda imersão. Ainda que toda a forma de narrativa busque proporcionar a seu leitor essa experiência, creio existem graus de imersão. Esta será mais profunda de acordo com a empatia do leitor, mas também conforme a competência e a genialidade do artista.

Cachalote não só permite o mergulho em vidas alheias como também, através de sua narrativa, busca proporcionar, numa profunda catarse, que o leitor esteja na pele de cada personagem. Ainda que pareça óbvio dizer que sua na narrativa é extremamente visual, a expressividade do traço de Rafael Coutinho criou um ambiente quase delirante. Fragmentado, o roteiro guia o olhar do leitor por um universo em que 5 vidas se desdobram. 

Cachalote não poupa o leitor, assim como não poupa seus personagens. Construído numa complexidade que torna difícil falar em tema (o que enriquece a obra), pode ter várias interpretações, diferentes interações, como um cubo mágico em quadrinhos. E o tom quase kafkiano que permeia cada história realça essa alegoria. Não só o tom. Há uma sexta história, que entra como prólogo e epílogo da graphic novel, e que faz jus ao título. Ao falar em interpretações, considero por bem fazer menção a duas abordagens: uma, a mais superficial, fala da relação aparência versus essência. A outra, talvez mais profunda, aborda a tensão entre maturidade e criatividade. Talvez maturidade não seja a melhor palavra, mas velhice, ou decrepitude, decadência. A resignada degeneração da beleza.

Essa degeneração deixa lacunas por todo o enredo. Cabe ao leitor completar essas lacunas, intuir dos mistérios tecidos em torno dos personagens. Como metáforas de almas velhas, artísticas, que passam por crises criativas, como se encalhadas após sequencias de pequenos fracassos que aos poucos se tornaram em uma tragédia. E uma ausência de um desfecho tradicional como maior alegoria da própria incompletude dos personagens e de nós mesmos.

Título: Cachalote
Editora: Companhia das Letras
Autores: Daniel Galera e Rafael Coutinho
ISBN: 9788535916737
Ano: 2010
Edição: 1
Número de páginas: 320
Acabamento: Brochura
Formato: 21.00 x 27.00 cm

domingo, agosto 28, 2011

A Cidade Suspensa – Parte III


Kain chega à enigmática e titânica Cidade Suspensa. Agora, ele deve encontrar uma maneira de permanecer na cidade. De forma inusitada, o estranho Ambulante Chinês apresenta-se para ajudar.

"Pra ficar na Cidade, só tem três jeitos: Um emprego, Um laço com um cidadão, Uma moradia. Se conseguir qualquer um, pode ficar."

Essas palavras ecoaram na cabeça de Kain, que manteve seu silêncio enquanto fitava o Ambulante Chinês. Aquilo era mais que simples informação. E sem nenhum custo? Kain continuava a desconfiar do mascate, que exibia um riso estranho, quase com um ar de deboche.

"Sei o que deve pensar agora o freguês, né? Pensar deve que não sabe o que fazer... Que difícil começar... Dessa avenida, do lado de onde eu tava vindo, tem uma taberna. Procura Scarlate a Cortesã. Ajudar o freguês pode, né?"

O Ambulante Chinês apontou para algum lugar ao longo da avenida imersa em sombras. Uma tímida luz parecia lutar contra a escuridão, como a fraca chama de uma vela. Com seu típico sorriso matreiro, ele voltou à frente da carroça e passou a puxá-la, numa corrida regular, no sentido contrário ao destino de Kain. Enquanto o mascate se afastava, o viajante resolveu que não custava nada seguir aquela dica.

A taberna estava envolta em uma luz parca e não havia música ambiente. Alguns clientes espalhavam-se pelas mesas mal-cuidadas, com umas poucas garotas a acompanhá-los. Todos se vestiam de forma quase miserável e conversavam aos sussurros. Kain procurou a moça referida pelo Ambulante Chinês. Um dos clientes apontou com a relutância de um ébrio para os fundos do estabelecimento.

Scarlate, a Cortesã, cuidava do balcão. Era de longe a moça mais bonita daquela taberna, com seus volumosos cabelos vermelhos e olhos verdes. E não seria mentira que ela ficou impressionada quando Kain surgiu à porta do estabelecimento. A Cortesã viu um homem alto, vestido com um capote cinza e cabelos compridos e grisalhos. Era bonito e tinha uns olhos assustadoramente negros. Kain aproximou-se de Scarlate e depositou duas moedas de cobre sobre o balcão.

"Uma bebida e uma noite com você." disse o viajante, com um olhar apertado, perturbador.

Scarlate fez mofa, enquanto apanhava as duas moedas e segurava-as entre os dedos finos. Olhou o viajante com deboche.

"Você deve ter vindo de um lugar cheio de garotas bonitas e baratas, estrangeiro, mas aqui, isso só paga a cerveja."

Enquanto segurava as moedas com a mão direita, Scarlate passou a esquerda por baixo do balcão, de onde tirou uma velha caneca de madeira, que foi depositada em frente ao viajante. Ainda com a mão esquerda, a Cortesã pegou na alça de um jarro, derramando seu conteúdo no interior da caneca, até enchê-la. Enquanto servia o cliente, a jovem começou a esfregar as duas moedas de cobre entre os dedos, fazendo a cor amarronzada começasse a despregar-se como se fosse ferrugem. Ela agora tinha duas moedas de prata nas mãos. Kain não parecia surpreso. Em muitos lugares que conhecera, cortesãs também eram feiticeiras.

"Bom, agora você tem o suficiente." Disse Scarlate. Ela havia gostado do visitante. "Mas só para um pequeno pedaço."

A Cortesã então guardou as duas moedas no avental, enquanto Kain tomava uns bons goles do copo de cerveja. Scarlate sorriu enquanto observava o pomo-de-adão do viajante fazer movimentos vigorosos. A moça passou a língua pelos lábios, esboçando um sorriso malicioso e enigmático. 

domingo, agosto 21, 2011

A Cidade Suspensa – Parte II

O som dos guizos trouxe um homem chinês, de baixa estatura, vestido com uma bata oriental de cor indefinida, por causa da pouca iluminação. Ele vinha puxando uma pequena carroça abarrotada de bugigangas. Pelo visto, o homem era um mascate e carregava uma quantidade de mercadorias maior do que a carroça podia normalmente suportar. O homem também tinha uma trança comprida e bem cuidada caindo pelas suas costas. Usava um chapéu justo, característico, que se encaixava muito bem em sua cabeça. O Ambulante Chinês parou diante de Kain.

"Um viajante, um viajante." Repetiu, feliz, o homenzinho. "Bem-vindo freguês. Sua sorte esse encontro, sim. O senhor pode comprar coisas boas, coisas muito boas aqui, né?"

"Não tenho interesse." respondeu Kain, evasivo. "Com licença."

Mas o Ambulante Chinês não pareceu querer desistir do novo cliente, pois desvencilhou-se da carroça e tentou barrar o caminho do viajante. Suspirando, Kain abriu e fechou os olhos lentamente, como se decidisse dar uma chance ao mascate. Alegre, o Ambulante Chinês começou a retirar de sua carroça os mais variados objetos.

"Amuletos, tenho sim; patuás, livros de feitiçaria, poções milagrosas, tenho tudo, freguês. Mas o melhor com certeza é uma alma forjada. Uma raridade, né? Tenho uma aqui na medida certa, né?"

Kain estava surpreso, mas não tinha dinheiro para comprar almas, mesmo falsas. Se não podia cobrir o preço nem mesmo da sua...

"Escuta, eu quero saber o que faço para poder ficar na Cidade." 

"Mas isso é informação, né?" respondeu o Ambulante Chinês. "Informação também tenho pra vender, né? Mas o freguês é novo, é amigo, vou dar de graça."

Kain olhou-o, ainda surpreso. Ele parecia mesmo querer dar essa informação sem cobrar por ela. Não existe nada de graça, pensou o viajante. Não conseguia adivinhar qual era o objetivo daquele vendedor em ser tão amigável. Kain suspeitava que talvez as forças que conspiravam contra o êxito de sua missão já estivessem em movimento.

quinta-feira, agosto 18, 2011

Testemunhas de um tempo distante


Para muitas pessoas, o passado é fascinante e, quanto mais longínquo for o tempo, mais perguntas ele desperta. Seria isso verdade? Pois essa é a premissa de tantos arqueólogos. Ao encontrar um esqueleto, é inevitável ao estudioso perguntar: quem foi essa pessoa? Por que ela estava aqui? O que costumava fazer em seu dia-a-dia? A História hoje fornece um grande volume de informações, mas as perguntas continuam, inesgotáveis. Surge então uma obra destinada a um passado distante da terra, quando pesquisadores afirmam ter vivido os primeiros exemplares do homo sapiens (cro-magnon), que teriam convivido ainda com os neandertais.

É nessa época que nasce Ayla, uma menina cro-magnon que havia sobrevivido a um terremoto em que toda a sua família morrera. Vagando sem destino e superando terríveis perigos, a menina é acolhida por Iza, uma neandertal que viajava com o seu grupo em busca de um novo lar. A caverna dos neandertais havia sido destruída pelo mesmo terremoto que vitimara os pais da menina cro-magnon. Decidida por adotá-la, Iza dá a ela o nome de Ayla. 

A princípio, os demais integrantes do bando não desejam a presença de uma estranha entre eles. Brun, o líder, é um dos maiores opositores à permanência da menina, mas a influência de Iza, que é curandeira, garante que Ayla seja acolhida e iniciada nos costumes do grupo. 

Enquanto cresce, Ayla faz amigos, como Creb, o Mog-ur (feiticeiro), e inimigos, como Broud, o filho de Brun e futuro líder. Com o passar do tempo, Ayla descobrirá que quanto mais amigos tiver, mais perigosos serão seus inimigos.

Ayla, A Filha das Cavernas é o primeiro volume da saga Os filhos da terra, de Jean Auel. É uma narrativa fascinante sobre um povo já extinto e seu possível contato com o ancestral do homem moderno, que o substituiu. Com grande conhecimento e um talento inegável, Jean Auel tece a trama da garota cro-magnon ao longo da sua infância e adolescência, criando uma personagem apaixonante, tanto por sua perspicácia quanto inteligência mas, sobretudo, por sua coragem. Tudo isso torna Ayla, a filha das cavernas um verdadeiro épico, uma leitura indicada para todos os gostos.


Ficha Técnica

Editora: Record
Autor: JEAN M. AUEL
Ano: 2003
Edição: 1
Número de páginas: 556
Acabamento: Brochura
Formato: Médio
Volume: 1

Também disponível em edição de bolso.

domingo, agosto 14, 2011

A Cidade Suspensa – Parte I



Era início de noite quando Kain chegou aos portões da Cidade. Na verdade, ainda estava claro o bastante para que ele pudesse distinguir os tons alaranjados dos raios de sol que abandonavam com rapidez o horizonte. Kain suspirou, enquanto batia as mãos nos joelhos cansados, para afastar a poeira do caminho. Por duas semanas ele havia viajado, sem parar, e agora chegava àquela cidade de edifícios escuros e imponentes, silenciosa quando não se movia. Era bom ter chegado a tempo.

O viajante deu seus primeiros passos para abandonar a estrada empoeirada e atravessar os limiares da Cidade. Os portões enferrujados permaneciam fechados, mas ele sabia que aquilo era uma ilusão. O grande enigma que tomara grande parte de sua vida: como penetrar na Cidade Suspensa.

Estava bem assentada no chão, era verdade. Outro viajante menos experiente pensaria que se tratava de apenas mais deplorável aglomerado de almas enclausuradas. Um aglomerado impenetrável para aqueles que não conhecessem seus segredos. Uma encruzilhada poeirenta, um crepúsculo e um peito vazio. Essas eram as três condições para penetrar naquele lugar.

Sem hesitar, Kain dirigiu-se aos portões em passos firmes. Um segundo antes de penetrar na Cidade, os portões permaneciam em solene imobilidade. No segundo seguinte, como previra, o viajante os havia ultrapassado, parando apenas para observar as construções titânicas e opressivas que compunham os edifícios da Cidade. Kain suspirou, enquanto lembrava que tinha pouco tempo. Logo a Cidade se suspenderia e começaria mais uma jornada. Era necessário encontrar um lugar para ficar antes que ela fizesse um novo pouso.

Dentro do gigantesco complexo, Kain não sentia o vento. Era tudo parado e morto naquelas ruas que pareciam feitas de aço e fuligem. "Isso tudo parece enorme um labirinto de carvão." pensou ele. A Cidade era um gigantesco emaranhado de avenidas e edifícios escuros, banhados por uma luz lúgubre. Suspirando, procurou ao redor uma porta ou janela com luz acesa, algo que denunciasse vida. Não encontrou nada a não ser penumbra. Segundos depois, ouviu o agudo tilintar de guizos que se aproximavam pela avenida à direita.

quarta-feira, agosto 10, 2011

As marcas da mão dela


Era para ser um blog literário. Mas hoje será somente um blog. Um diário, sim, com a única função de tentar capturar um momento que, ainda que não saibamos por qual motivo, consideramos precioso.

Cheguei à casa dela por mero acaso. Digo que não foi planejado. Já queria visitá-la, tentava ligar com certa regularidade e ficava imerso em culpa por não conseguir concretizar esse intento. Sabia que ela sempre estaria lá, nessa inércia que atua em cumplicidade com as culpas cultivadas e administráveis.

Toquei o interfone, subi os dois lances de escadas e descobri a porta aberta. Gesto tácito de que sempre seria bem-vindo, sempre aguardado. Apesar de tudo, foi com a hesitação dos filhos pródigos que entrei.

Descobri, então, que ela não estava no sofá de costume. Na verdade, ela repousava em um recanto que eu ainda não conhecia. Acuada pelo calor, ela repousava em uma área interna. Beijei-a e fui beijado, enquanto perto dela procurava refazer suas memórias, costurando com a linha das palavras, embora sem agulhas.

Ela parecia distante, alheia, formal demais. Em determinado momento, desistiu e caiu em pranto: "Eu não consigo lembrar quem é ele..." Enquanto eu, com um copo de suco na mão, o estômago pesado, senti, ainda que por um segundo, ser algo sem existência, um ínfimo espaço nulo, negado.

Consternado, busquei forças para voltar a existir, para me impor no mundo dela, ser alguém de novo. Com suas mãos entre as minhas, eu tentava repetir o gesto que sempre fazia quando criança, seguindo com o polegar e o indicador as marcas da mão dela, segurando com a pontinha a pele, sentindo sua leveza carregada de idade. Ela então, meio que aliviada, disse que estava agora lembrando, enquanto eu ainda parecia não acreditar que havia sido devolvido à existência.

Carreguei-a no colo de volta à sala. Massageei seus pés com óleo, acariciei seus cabelos. Mas nada arrancava de mim a sensação de nulidade, enquanto eu a via em luta constante com insetos invisíveis e visitas indesejadas, imaginadas.

Enfim foi preciso partir. Beijos, abraços, pedidos de bênção. E a sensação incômoda de que eu não poderia deixar com ela um pedaço meu. Deveria ir embora levando comigo todos os meus cacos.

quarta-feira, junho 15, 2011

Silas - Um caminho em eterna construção

O trabalho de um escritor mostra que sua obra é algo vivo, que se expande e adquire limiares muitas vezes difusos. Um texto nunca está completo e todo o conjunto que representa o fruto do trabalho de um escritor também abarca a extensão de toda a sua vida. Acredito que esses contornos indefiníveis foram levados em conta na feitura do livro Silas, da editora Jovens Escribas.

Silas foi lançado em comemoração aos 20 anos da novela Dis Xis e aos 50 anos do autor, Sérgio Fantini. Antes de tudo, a pena de Fantini é ágil, reflete a rapidez referida por Ítalo Calvino. Prova da contemporaneidade do escritor, além da sua consciente competência sobre a arte da escrita. Sérgio Fantini dá corpo a uma ideia. Seu protagonista é antes de tudo testemunha. Através do maduro talento do escritor, cenas são construídas no processo de leitura, imagens que depõem para o leitor sobre um mundo margninalizado: a cidade do interior, com suas mazelas e seus casos de frustrações amorosas; a estrada de uma Minas em trânsito, uma babel que se revela primordialmente pelo silêncio e pela impossibilidade do diálogo oral; uma Belo Horizonte com suas praças de concreto, seus prostíbulos, seus becos repletos de traficantes e putas.

Como resultado desse processo de observação quase científico, temos a constituição de uma sociedade belo-horizontina "tradicional", sociedade que, à moda da mesma retratada por Henry Miller, tem suas bases na dita escória, na mistura ou convergência de povos, na margem de uma calçada ou na sarjeta imunda.

Em "Silas, 30 do segundo tempo" temos os personagens com suas paranoias e sua carência de identidade, sendo esta construída através de ícones da mídia de massa e dos melodramas que alimentaram as publicações Pulp Fiction. 

Silas é um homem da gente. Escrito em tom de confidência, Silas leva o leitor a uma jornada de construção de uma identidade. "Silas, velho" mostra-nos que esse processo nunca está completo.


Ficha Técnica
Título: Silas
Autor: Sérgio Fantini
Editora:  Jovens Escribas
1ª Edição
Páginas:  128
ANO:  211
Formato: 21cm x 28cm

quarta-feira, junho 08, 2011

Sobre culpas e profetas...

Eu havia acabado de sair do trabalho. Sorte o trajeto até minha casa precisar de apenas um ônibus. E sentado! Sorte? Mesmo? Aproveito essas longas horas para adiantar minhas leituras. Hoje o tempo é tão escasso que só mesmo em um lotação sacolejante que temos a oportunidade de uma outra viagem. E olha que às vezes eu até arrisco leituras malabaristas, usando para pendurar a mochila o mesmo braço que segura o livro.

E justo quando estava mais entretido em uma profana viagem literária, senta ao meu lado um rapaz. Roupas simples, bermuda, barba, jeito tranquilo e pacato. Entre suas mãos, uma Bíblia. Meus olhos escapam furtivamente para as páginas abertas, pois o rapaz não perde tempo para também aproveitar sua oportunidade de devaneio. Um título enorme parece alardear a este leitor clandestino, como uma propaganda: Malaquias. As primeiras palavras de um Profeta Menor. O Último Profeta.

Meus olhos retornam para meu próprio livro. Mas não estou mais sozinho em meu devaneio. Segue-me a culpa. Em minha leitura, o personagem visita um puteiro, reclama do bafo da puta. Enquanto meu companheiro de viagem passa um tempo com Malaquias.

De repente ele tenta chamar minha atenção, tocando com seus dedos meu ombro direito. Eu me viro para ele, em resposta. "Estou te incomodando?" pergunta ele, referindo-se ao seu ombro, que encosta em mim. Respondi que não, de certa maneira perplexo. Impossível estranhos não se encostarem em um lotação metropolitano. Ou seria outro o incômodo?

Novamente divago. Lembro-me da música que escuto com meu fone de ouvido. Uma banda de heavy metal, com seus temas polêmicos, profanos. Sim, estou profundamente incomodado. Comigo mesmo. Com a culpa que paralisa meus braços, que não me deixa dizer tudo o que fica apertado no peito. A mesma culpa que nasceu com este homem, que fazia o menino de sete anos orar pedindo a Deus que não o deixasse morrer dormindo, pois tinha medo de despertar no Inferno.

O rapaz em alguns momentos tentava puxar conversa. Percebi que eu mesmo, de tão incomodado, não dava muito papo. Educado e dócil, ele fazia perguntas das quais sabia as respostas como, por exemplo, o nome da avenida pela qual passávamos. Enquanto eu me perguntava se ele tentaria me evangelizar. Evangelizar. Outra demanda da culpa. Não evangelizar é deixar o outro perder-se. E permitir a perdição do outro é invocar sua própria perdição. Assim dizia Ezequiel. No caso, um Profeta Maior.

E toda essa culpa atravessava minha mente, enquanto eu me perguntava a real intenção do desconhecido jovem. No final, ele não queria me evangelizar. Parecia querer uma palavra de consolo, pois sua vida não estava fácil. Queria vender dois vales-transportes. Havia perdido o emprego e os documentos, inclusive os papéis do Seguro-Desemprego. Ele lamentava ter perdido o emprego de porteiro. Queria o que fosse possível, faxineiro, zelador, servente. Enquanto eu me preocupava com sua inconveniência. A culpa é um veneno compulsório.

Não sei o que poderia ter feito por ele. Quem sabe ter conseguido seus dados para indicá-lo a algum conhecido que pudesse oferecer a ele uma oportunidade. Ou mesmo poderia ter dito: Deus irá guiar seus passos, ajudar você a encontrar um bom emprego. Afinal, acredito em Deus. Mas vale a pena acreditar na culpa?

terça-feira, junho 07, 2011

O Retorno do Guardião

Eu havia determinado não atualizar este blog enquanto não recebesse um comentário sobre minha "homenagem" à Diana Wynne Jones. Fiquei surpreso ao descobrir um novo comentário. Retorno então a este humilde recinto para saudar todos os (possíveis) leitores.

Um dos principais objetivos deste blog é apresentar possibilidades de leituras e de histórias também. A Literatura se revela não só no escrito, mas também nos enredos (nós). Essas histórias ultrapassam os umbrais dos livros e alcançam outros suportes, realizando travessias que ocorrem também no imaginário do leitor.

Por isso, em muitos casos, sinto-me inclinado a discorrer sobre outras formas de contar histórias. Os seriados, hoje tão populares, muitas vezes encerram histórias incríveis. Outras vezes nem tanto.

Outro singelo objetivo é também compartilhar possíveis histórias. Digo possíveis porque um texto só se realiza quando recebe um leitor (ou quando recebido por ele). Por isso, desejo compartilhar aqui o resultado de minha imaginação, outrora tão delirante mas hoje nem tanto.

Saúdo a todos e agradeço muito aos leitores, tanto os que comentam quanto os que se furtam de deixar neste recinto suas palavras.

sábado, maio 07, 2011

Diana Wynne Jones e o mundo mais escuro

No dia 18 de junho de 2010, recebi uma mensagem de celular de uma amiga dizendo que o mundo havia se tornado um lugar pior, pois José Saramago havia partido. E foi com certeza o mesmo sentimento que tive quando soube do falecimento de Diana Wynne Jones.

Meu primeiro contato com a obra de Diana deu-se na verdade por caminho indireto. Apesar de ser um amante da literatura desde a tenra idade, conheci O Castelo Animado através de Hayao Miyazaki. Já naquele tempo era um leitor assíduo dos mangás, com minha cota de animes. Não há duvida que, nas animações, Miyazaki sempre esteve (e talvez sempre estará) no topo da minha lista.

E foi grande minha surpresa quando descobri que a animação era na verdade adaptação de uma obra literária. Costumo ser reticente quanto às adaptações, pois as considero muito irregulares. Mas o Mestre Miyazaki, não só criou uma obra-prima como também a fez inspirada em outra obra-prima.

O Castelo Animado, no caso o livro, é uma das leituras mais deliciosas que já tive em minha vida. Vai além de fruição, de prazer estético ou prazer da narrativa. É um texto sutilmente alegre, mas com suas doses de tragédia, claramente tecido por alguém que encontrou o prazer na vida.

Não restringi minha leitura apenas a um livro desta autora. Quando soube de outras obras dela traduzidas para o Português, não pude deixar de conferi-las. Adquiri Vida Encantada e As Vidas de Cristopher Chant, ambos da série Os Mundos de Crestomanci. Foi como se eu confirmasse uma certeza oculta. O mesmo traço alegre, a mesma pitada de tragéia, a mesma forma de construir enredos inusitados.

Não há dúvidas que Diana escreve para o público infantil. E essa criança está escondida tanto em um homem de 29 anos quanto em uma senhora de 80. Esse é a magia que movia seus livros, que podiam ser lidos por todos, pois tocavam naquilo que nos torna todos iguais: nossas almas. 

Uma das marcas mais fortes na obra infantil desta escritora, presente principalmente na série de Crestomanci, é a solidão infantil, ou seja, a incompreensão dos adultos em relação às crianças. A falta de diálogo entre gerações. A infância, mesmo repleta de seus encantos, pode ser uma fase bem solitária e incompleta. Principalmente quando os adultos ao redor não conseguem assumir seus papéis de orientadores, conselheiros. Mas os personagens de Diana, embora em muitos aspectos solitários e perdidos, também representavam a busca pela superação, da inocência e da liberdade. 

Diana nunca negou de onde tirava inspiração para seus livros. Professora, sempre rodeada de crianças, sempre buscando compreendê-las, ela aceitava de peito e mente abertos suas ideias, transformando-as nas mais belas histórias. Ela contava, por exemplo, que havia escrito O Castelo Animado a pedido de um garotinho, que havia pedido por uma história onde uma casa tivesse uma porta que pudesse ser aberta para vários lugares diferentes.

Em 2009, Diana foi diagnosticada com câncer e desde então lutava contra o tumor. No final de 2010, porém, ela decidiu interromper o tratamento, pois as dores estavam se tornando insuportáveis. Em 29 de março Diana partiu. No Brasil, onde seus livros ainda estão começando a se espalhar, sua morte passou quase despercebida, infelizmente.

Sinto muita tristeza ao saber que não mais haverá histórias do mago Howl, de Sophie, Cálcifer e dos outros incríveis personagens criados por tão criativa escritora. Também fiquei emocionado com o depoimento que Neil Gaiman fez em seu blog sobre a grande amizade com quem ele considera sua grande mestra. Gaiman não está errado. Certamente o mundo ficou mais triste e escuro sem a presença dela, que contribuiu para tornar as vidas de cada um de seus leitores uma Vida Encantada. Diana Wynne Jones foi uma grande Mestra e seu nome será jamais esquecido. 

Diana Wynne Jones
Nascimento: 16 de Agosto de 1934
Morte: 29 Março de 2011

quinta-feira, abril 14, 2011

Vieira - As palavras, as imagens e as ideias

Quando pensamos em Barroco, por conta das longínquas aulas de história em nosso tempo de estudantes, nossas mentes são logo povoadas por imagens das igrejas de Ouro Preto e pelas belíssimas obras do Aleijadinho. Mas não podemos esquecer que o Barroco foi um estilo que influenciou inclusive a literatura, tendo o Padre Antônio Vieira como um dos seus principais representantes. 


Nascido em Portugal, Vieira foi ainda criança para o Brasil com toda a sua família. Sua formação como jesuíta foi de fundamental importância para sua carreira eclesiástica e acadêmica, uma vez que suas pregações o fizeram conhecido tanto no Brasil quanto em Portugal. Durante toda a sua vida lutou contra a escravização do índio e com isso fez diversos inimigos. 


Em Sermões, antologia organizada pela editora AGIR, estão organizados três dos principais sermões do padre missionário: Sermão Pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as da HolandaSermão do Mandato e Sermão da Sexagésima. Vieira era adepto do Conceptismo, uma corrente do Barroco que buscava um discurso simples, de fácil entendimento para qualquer pessoa, mas que também encerrasse em si profundos conceitos. O Sermão da Sexagésima, o mais famoso dos sermões do Padre Antônio Vieira, pode ser considerado, inclusive, como um verdadeiro manual do pregador, discorrendo exclusivamente sobre a arte de pregar. O estilo simples do sacerdote jesuíta leva o leitor através de um delicioso discurso, repleto de jogos de imagens, trocadilhos e alegorias.


A relevância do trabalho de Vieira é inegável tanto no ramo religioso quanto no literário, por conta da exímia habilidade que o eclesiástico mantinha com a palavra. Tanto que, com todo o mérito, o Sermão da Sexagésima foi escolhido como leitura obrigatória para o Vestibular 2010 da UFMG.

Ficha Técnica
Título: VIEIRA - SERMOES - COLECAO NOSSOS CLASSICOS - VOLUME 11
Organizador:  GOMES, EUGENIO
Editora:  AGIR
4ªEDIÇÃO.
Páginas:  134
ANO:  1966
BROCHURA

domingo, março 27, 2011

A Guerra (im)Possível

O mundo acabou. Uma horda de mortos-vivos causou um grande colapso mundial. A boa notícia é que a humanidade, depois de chegar quase à extinção, conseguiu sobreviver e praticamente eliminar a grande ameaça. Esse período ficou conhecido como "Guerra Mundial Z". 

Dez anos depois, o autor, a pedido da ONU, viajou pelomundo e recolheu depoimentos de pessoas de diversas camadas sociais e que desempenharam diferentes papéis nos eventos anteriores à guerra e durante a mesma. É assim que Max Brooks apresenta seu livro, Guerra Mundial Z.

Alguns dos entrevistados foram grandes figurões, outros, simples soldados que combateram no front contra a multidão de zumbis. Seus relatos desenham uma história fragmentada, controversa e confusa. Cabe ao leitor, portanto, refazer os pedaços, construindo em sua mente toda a trajetória desde o paciente zero, o surto que originou o Grande Pânico, a virada e por fim o sucesso da vitória, conhecido como dia Z. Brooks, com genialidade, cria desta forma um romance que também funciona como um jogo. Um livro interativo que desafia o leitor a decifrá-lo.  Os relatos procuram cumprir com fidelidade o princípio de veracidade. Desta forma, Brooks insere cada acontecimento em seu contexto histórico, econômico e cultural, levantando possíveis reflexos e impactos que um surto zumbi de grandes proporções poderia causar em escala regional e global.

O único tropeço, a meu ver, é a linguagem assumida pelo autor para alguns personagens, como a fala de um brasileiro, cujo modo de expressar-se soa muito artificial, num tom que o aproxima mais do estilo norte-americano. Mas deslizes como esse não desqualificam a interessante e inovadora obra de Max Brooks. Guerra Mundial Z é mais que um bom livro. É um relato indispensável tanto para amantes do gênero zumbi como daqueles que não fogem a um bom desafio intelectual.


Editora: Rocco
Autor: MAX BROOKS
ISBN: 9788532525550
Ano: 2010
Edição: 1
Número de páginas: 368
Acabamento: Brochura
Formato: Médio

domingo, março 13, 2011

O Chinês Americano - Uma fábula sobre quão preciosa é nossa alma

Nessa incrível fábula, o menino Jin Wang, apesar de nascido nos EUA, tem suas raízes na china. Ele quer se enturmar, quer ser aceito, ser parte do grupo. Mas enfrenta os preconceitos e a incompreensão daqueles que se consideram americanos "genuínos".

Como alegoria da busca de Jin em ser parte desse país tão diferente da China que ele nunca conheceu, somos apresentados à lenda do Rei Macaco e sua busca incansável em ser igual aos deuses.

Por fim, há a terceira história das dificuldades de Danny, um menino americano que estranhamente tem um primo chinês, chamado Chin-kee. E Danny sempre acaba metido em confusão por causa do seu estranho primo. Essa história é contada no tom satírico de um seriado de comédia americano.

O Chinês Americano é acima de tudo uma narrativa fabulosa. São três histórias bem diferentes entre si, embora tenham elementos que a vão aproximando gradativamente. A própria lenda do Rei Macaco recebe elementos ocidentais, tornando-se também uma criação híbrida, fruto de contribuições diversas, como acontece em toda narrativa de tradição. Como grande mote que amarra as três histórias está a pergunta: até onde uma pessoa iria para se tornar outra? Estaria ela disposta a abrir mão da própria alma?

Gene Luen Yang renova a mitologia chinesa ao incluir à mesma elementos judaico-cristãos. A jornada do oeste se torna símbolo do próprio périplo chinês em busca da prosperidade americana. Mas essa jornada tem como risco a perda da própria alma, da identidade.

Apesar do tom alegórico, o texto é límpido e sincero. As situações nunca parecem forçadas. Além disso, os momentos de comédia são de arrancar gargalhadas. Definitivamente este é um quadrinho que não pode faltar na estante dos amantes do gênero.

Ficha técnica:


Editora: Companhia das Letras
Autor: GENE LUEN YANG
ISBN: 9788535914498
Ano: 2009
Edição: 1
Número de páginas: 240
Acabamento: Brochura
Formato: Médio

terça-feira, março 08, 2011

A guerra dos tronos

Fonte: divulgação.
É difícil resenhar sobre um livro cujo enredo não se fecha em si, mas prevê continuações. Afinal, a narrativa do autor ainda está em construção e o primeiro romance nada mais é que a ponta do iceberg.

Fica ainda mais complicado quando o livro tem quase seiscentas páginas e uma profusão enorme de personagens, inclusive quando o foco passeia entre alguns deles, como uma estratégia a tornar o leitor mais íntimo de algumas das mais importantes testemunhas da história que se desenrola.

Por isso considero um grande trabalho falar de A guerra dos tronos, livro recente de George R R Martin. Mais difícil ainda porque se trata de um estilo literário do qual aprecio muito, a narrativa épica de fantasia.

Em um mundo totalmente diferente, onde o inverno e o verão não funcionam como um ciclo anual e regular como em nossa realidade, sete antigos reinos são dominados por um único rei, Robert Baratheon. Para fazer sua vontade, o rei conta com um braço direito cujo título do cargo é "Mão do Rei". Em Winterfell, o antigo reino do norte, Lorde Eddard "Ned" Stark recebe o convite de seu amigo, rei Robert, de assumir o alto cargo no lugar da antiga Mão, que havia morrido subitamente. Ned aceita o cargo pela amizade, mas logo descobre que o preço pela obrigação será mais caro do que imagina, ao começar a investigar as misteriosas causas da morte do seu predecessor.

Enquanto as intrigas e perigos se desenrolam no sul, somos convidados a acompanhar os perigos que envolvem outros membros da família Stark, bem como outros personagens que têm profunda ligação com a história do reino e da suposta conspiração. No fundo dessas tramas, uma possível e sinistra ameaça começa a se desenhar além da Muralha, no extremo norte. Uma ameaça antiga e terrível, evocada dos piores pesadelos.

George Martin desenha um mundo medieval extremamente detalhado, com sua história, sua geografia, seus deuses e folclore. É uma história antiga, que remonta dez mil anos, deixando o leitor fascinado com as possibilidades de outras histórias de eras passadas. A construção dos reinos e das regiões aos seus arredores é meticulosa e sólida. Porém, o autor acaba pecando pelo excesso de detalhes. Como estratégia para não deixar o leitor entediado, o foco narrativo a cada capítulo muda para um outro personagem. Desta forma, o leitor também é convidado a observar personagens que têm grande valor estratégico ao longo de toda a narrativa, para além do primeiro volume. Um dos pontos altos do romance é sem dúvida quando a narrativa se alterna entre dois personagens que estão em lados antagônicos em uma sequência de batalhas. 

O foco em mais de um personagem também permite ao narrador desenhar mais profundamente os perfis que irão interferir com mais força na narrativa. Esta estratégia, apesar de engenhosa, também traz certos perigos, uma vez que em alguns momentos a narrativa se arrasta quando determinados personagens entram em cena. Isso pode fazer com que o leitor fique entediado. E o tédio, em um livro, pode ser perigoso, apesar de ser um risco que ronda qualquer narrativa.

Embora vasto, meticuloso e de certa forma desnecessariamente extenso, o romance de George Martin é uma excelente narrativa, um épico grandioso que apresenta uma engenhosa trama em um ambiente de fantasia medieval. Ótima leitura tanto para fãs do gênero quanto para aqueles que desejam uma boa leitura.

Ficha técnica
Título: A guerra dos tronos
Editora: Leya
Autor: GEORGE MARTIN
Número de páginas: 592
Acabamento: Brochura
Formato: Médio

Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/16048-a-guerra-dos-tronos

domingo, fevereiro 27, 2011

O Ladrão de Raios

Fonte: Divulgação


Percy Jackson sempre se considerou um garoto normal. Seus principais problemas são a dislexia e o déficit de atenção, que prejudicam seu rendimento nas aulas e a boa relação com seus professores. Além disso, o garoto de 12 anos nunca conseguiu se firmar em uma escola por mais de um ano. Sempre estranhos acidentes ocorrem ao seu redor e, como as causas nunca são muito claras, Percy acaba sempre levando a culpa.

Até aí tudo bem. O menino está disposto a aceitar que tem uma sorte ruim. Assume o fato de que precisa se defender dos valentões da escola e até decide proteger um de seus colegas, Groover, que parece ter uma deficiência em ambas as pernas. Tudo muda de forma surpreendente quando, durante uma visita escolar a um museu de história, ele é atacado por uma professora, que se transforma em um terrível monstro. O monstro acusa Percy de ter roubado algo muito valioso, além de poderoso, e o menino só escapa do perigo quando um outro professor, o sr. Brunner, surge sem aviso e lhe lança uma caneta que, na verdade, é uma espada grega disfarçada. Assim, Percy é obrigado a enfrentar a professora monstro e a derrota.

Esse incidente acaba fazendo com que Percy descubra uma incrível verdade: ele é um meio-sangue, um semideus, filho de um dos deuses gregos. Seu amigo Groover é um sátiro e o professor Brunner é na verdade Quíron, o mais notório dos centauros. Por ser um meio-sangue, Percy será para sempre perseguido por monstros e deverá estar pronto para enfrentá-los.

E a situação é ainda mais crítica, pois com o roubo do raio-mestre de Zeus, o jovem meio-sangue corre mais perigo do que nunca e deverá antes de tudo alcançar o Acampamento Meio-Sangue, único lugar seguro para alguém como ele. Porém, até mesmo o o Acampamento Meio-Sangue oferece perigos, pois Percy não sabe se pode confiar nos vários semi-deuses que encontra, principalmente os populares Annabeth Chase e Luke Castellan, filhos de Atena e Hermes, respectivamente.

Ao ler O Ladrão de Raios, fiquei um pouco decepcionado com a falta de ambição da obra. Não vou negar que seja um projeto interessante, digno de um professor que tenha um profundo conhecimento sobre a mitologia grega. Mas é somente isso. Estava claro que o autor tinha como objetivo unir em um único texto o ensino sobre a mitologia grega e sobre os grandes monumentos históricos e culturais norte-americanos.

Desta forma, o universo de Rick Riordan, apesar de rico, é extremamente limitado, sendo reduzido ao território dos Estados Unidos e aos seus valores simbólicos. E chega a ser de extremo mau gosto ter um foco tão limitado, como se o restante do mundo não existisse. São questões simbólicas, é lógico, mas diante das grandes mudanças atuais no campo do conhecimento, é temerário um professor norte-americano assumir de forma tão arrogante que todos os valores, sonhos e, principalmente, medos da civilização ocidental estejam transfigurados em cidades, monumentos e paisagens turísticas norte-americanas.

Além dessa visão simplista do mundo e do conceito de civilização, temos também a forma nociva que o autor estabelece o equilíbrio de forças como o bem e o mal, delineando um quadro de maniqueísmo em que Cronos e seus asseclas, os titãs, postam-se contra Zeus e os demais olimpianos. Os próprios deuses do Olimpo são apresentados sem muitos atrativos. De fato, os deuses gregos sempre tiveram seus vícios e falhas de caráter. Os titãs, porém, não parecem tão diferentes dos deuses e são pintados como seres malignos, amaldiçoados, liderando monstros, prontos para lançar a humanidade na escuridão.  

Afinal, titãs, deuses e monstros são representações do imaginário humano, símbolos de nossos comportamentos, sejam eles bons ou maus. A escolha dos jovens meio-sangue, talvez, seja o símbolo da escolha de nossa juventude, disposta sempre a aceitar os discursos ambíguos de nossa sociedade, discursos que visam antes de tudo a manutenção de um determinado estilo de vida, com sua tecnologia, suas facilidades, seus valores e vícios.

Ficha Técnica

Editora: Intrínseca
Autor: RICK RIORDAN
ISBN: 9788598078397
Ano: 2008
Número de páginas: 400
Acabamento: Brochura
Formato: Médio
Volume: 1