terça-feira, outubro 12, 2021

O menino trincado

Aquele menino tinha uma rachadura. Não era grande. Quem olhasse de longe, nem notaria. Essa rachadura só poderia ser vista bem de perto.

O menino também não se incomodava. A rachadura estava lá desde que o menino se lembrava. Não sabia qual acidente a teria causado. Foi no futebol? Na aula de educação física? Ou será que foi no recreio, quando brincava de queimada? A verdade era que o menino simplesmente não sabia. Um certo dia, simplesmente notou a tal rachadura.

Quando deu por si, lá estava ela. Uma linha irregular que começava no umbigo e subia pelo peito até o pescoço. Não doía. Nem parecia estar lá. Mas ao tocá-la, era possível senti-la na ponta do dedo, percebendo o desnível na pele.

Acontece que depois que percebeu a rachadura, o menino não conseguiu mais parar de pensar nela. Será que traria algum problema? As outras crianças também seriam trincadas? Teriam rachaduras ao longo do corpo? E se fosse a única criança assim? Seria levada para longe, para ser estudada igual os alienígenas da televisão?

Resolveu esconder essa rachadura. Evitava de todo o jeito tirar a camisa na frente de alguém. Os pais achavam que era simplesmente timidez.

Um menino trincado que cresceu evitando choques e encontrões. Cercado pelo medo de um leve toque pudesse transformar a rachadura em seu peito num monte de estilhaços.

10 comentários:

  1. Que conto forte, amor. Achei maravilhoso! Publique um livro com ele. Por favor!
    Inclusive tem muitos contos aqui que precisam virar livros. Te amo!

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    1. Obrigado por suas palavras, sempre tão bondosas. Eu também te amo!

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    2. Uma rachadura que parece ser só dele. Mas no fundo, acho que todo mundo tem uma. Alguns já notaram e não dão importância. Outros não notaram ainda que têm. Outros notaram e tiveram coragem de expor, abrir e ver o que tem lá dentro. Outros ainda acham que só eles têm e preferem esconder. Muito filosófica eu, mas acho que no meu caso, eu estou tentando ver o que tem dentro da minha rachadura. E às vezes tentar ver lá dentro dói muito. Não é sempre que estou disposta.

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  2. Muito lindo o conto! Merece estar num livro mesmo! Parabéns, Samuel!

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    1. Obrigado, Áurea! Fico tão feliz por sua visita e seu comentário!

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    2. Concordo com a Áurea! Queremos livro, queremos livro! Ilustrado por Odilon Moraes. Já até visualizei as imagens...

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  3. Muito bom. Poderia virar um livro 💖.

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  4. Só depois reparei que há outros comentários dizendo o mesmo que eu, rs. Quando comecei a ler achei que fosse a resenha de um livro, depois percebi que era um conto seu.

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    1. hahahhahahaha Isso é uma sinal de que ele tem que publicar né, Luci?

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