sexta-feira, fevereiro 19, 2021

As Mil e Uma Noites - Uma jornada de escuta e afeto



O afeto é algo poderoso. Desde o início desse distanciamento forçado, em que não nos foi possível realizar atividades presenciais, estivemos cultivando nossas relações através das conexões eletrônicas. Encerrados em nossas residências, por dias a fio sem colocar o pé fora de casa, passamos a usar as mídias sociais como forma de manter muitas de nossas relações interpessoais. 

Uma dessas iniciativas foi o grupo da Roda de Leitura da Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH. Iniciativa do amigo Wander Ferreira, bibliotecário na BPIJ, os encontros virtuais começaram a acontecer semanalmente. Foi em um desses encontros que soube de uma preciosidade. Em um gesto de grande carinho e compromisso, minha amiga Áurea Lana Leite começou a ler As Mil e Uma Noites, na versão de Antoine Galland, para algumas pessoas, entre elas o próprio Wander e outra amiga, a Kátia Mourão. Ao ficar sabendo dessa notícia, pedi para participar.

Foi assim que teve início minha jornada por essa visão ocidentalizada de uma saga oriental. Digo isso porque Galland, renomado orientalista, fez uma tradução adaptada da obra islâmica, fazendo várias interferências no texto, que considerou violento e de moralidade questionável. Contudo, muito da beleza presente na obra original permaneceu na versão de Galland e foi por esses textos que eu viajei, através da voz da amiga Áurea.

Antes de tudo, preciso comentar da qualidade da voz da leitora. A cadência, o tom, o ar tranquilo, esses elementos auxiliaram na imersão da narrativa. Áurea foi uma narradora ímpar, como excelente contadora de histórias que é. Foi fundamental que a serenidade de sua voz fosse transmitida a nós, ouvintes. Senti-me acolhido por essa leitura. E não apenas isso. A cada novo dia, recebendo um novo áudio, percebia nesse gesto um enorme cuidado. 

E pela voz da Áurea pude literalmente viajar para longe do meu apartamento. Estive em vários pontos do oriente, desde a Bagdá de Haroun Al-Rachid, até os confins do mundo, em lugares mágicos e oníricos. Nessas histórias, pessoas comuns se misturavam a princesas e príncipes. A partir da narrativa de traição da antiga esposa de Shariar, Sherazade foi tecendo relatos de injustiças, jornadas de redenção, buscas pela riqueza e revezes do destino. 

Em um curso que fiz com a mestra Gislayne Matos, aprendi que Sherazade atua como uma grande mentora de Shariar, usando os contos como alegorias para que ele perceba a própria impiedade. E com esses olhos fui observando que de fato muitas mulheres são injustiçadas ao longo de tantas narrativas. E muitas delas reagem a essa injustiça com inteligência e habilidade. Assim, vamos aprendendo com as inúmeras personagens, com seus erros e acertos, sua humanidade.

Foram mais de 300 noites ouvindo com Áurea sobre tantas vidas e mortes. Alguém pode perguntar por que não foram 1001, como o título da obra anuncia. Em determinado momento, as noites pararam de ser contadas no texto. Assim, Áurea continuou a ler, contando as noites da leitura, desvinculadas das noites da narrativa. 

Algo que me incomodou bastante foi a visão pejorativa que o texto carrega contra África e o povo negro. São comentários que sempre colocam as pessoas negras em lugar de vilãs ou escravizadas. Ainda que seja reflexo de uma época e cultura, é importante problematizarmos essa faceta grave de um texto tão seminal.

Com diversas e maravilhosas histórias, As Mil e Uma Noites foi uma narrativa que me fez muito bem em um momento em que eu me sentia assustado e temeroso. A incerteza do mundo, as perversidades do presidente, as mortes sem sentido, tudo isso foi mitigado. Através da voz da Áurea, sentia-me acolhido e fui capaz de sonhar.


Ficha Técnica

As Mil e Uma Noites

Antoine Galland

ISBN-13: 9788520936870

ISBN-10: 8520936873

Ano: 2015 

Páginas: 1120

Idioma: português

Editora: Nova Fronteira


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/as-mil-e-uma-noites-445456ed504724.html

4 comentários:

  1. Samuel, fiquei aqui emocionada lendo sua resenha. E na verdade posso garantir que eu fui quem mais ganhou neste processo todo. Foram 368 noites de uma época de pandemia, onde só se ouviam notícias alarmantes e cada história lida por mais intrigante ou surpreendente me trazia uma esperança de continuidade, de que tudo pode ser mudado por mais difícil e injusto que pareça as situações que enfrentamos nesta vida as histórias nos ajudam a processar, a fantasiar, a voltar a sonhar com a normalidade! Saúde e paz, é só o que queremos, meu amigo! Obrigada por suas lindas reflexões e por todos os retornos neste período!

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    1. Oi, Áurea! Suas palavras são mais uma prova do cuidado que você tem pelas pessoas. Sim, saúde e paz! Que logo venha a vacina para todes e as rodas de leituras e histórias voltem a ser presenciais!

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  2. Que experiência poderosa, Samuca e Áurea! Ler para alguém é uma maneira linda de demonstrar afeto. Fiquei admirada com a persistência, carinho e paciência da Áurea, enquanto leitora e contadora dessa histórias, e dos ouvintes, especialmente o Samuca. Acompanhei de perto a dedicação dele para escutar as leituras. Salvem esse áudios! Parabéns, Áurea querida! Parabéns, Samuca, Wander e Kátia!

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    1. Lembro muito bem como você acompanhou, Pam. Você foi inclusive ouvinte de tabela, quando eu compartilhava alguma narrativa mais emocionante, contando pra você com as minhas palavras. Beijo!

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