quinta-feira, dezembro 22, 2011

Um conto de natal – Parte Final


O duende jogou-se aos pés do Papai Noel. As crianças, horrorizadas, foram esconder-se atrás dos seus pais. Os seguranças pararam a alguns metros de distância, como que para observar a conversa que aconteceria dali em diante. Apesar da confusão de todos, o bom velhinho continuava calmo e sereno.

– Papai Noel – disse o duende –, eu não posso acreditar que encontrei o senhor. Sou o único que restou de todos nós. Não sei mais dos outros. Agora estou feliz porque o senhor vai cuidar de seu duende-mestre, do supervisor da sua antiga fábrica de brinquedos.

– Afaste-se, Dimas. – disse o velhinho, calmamente – Nossa fábrica faliu, estou fazendo esses bicos para ver se pelo menos consigo tirar meu nome do SPC.

– Mas, Pa..Papai Noel... – o duende parecia horrorizado ante a frieza de seu antigo mestre. – Eu avisei ao senhor para que não mudássemos nossa moeda, que transferir-se para o Brasil não seria uma boa idéia, faria mal para as renas, mas o senhor insistiu em não manter nossas transações em ouro e ainda por cima quis comprar um chalé na Serra da Mantiqueira...

– Eu sei, Dimas, eu sei – retorquiu o velhinho, com um sorriso entre a bondade e a tristeza. – Estou pagando caro por minhas ideias. Nossos investidores quebraram. O Banco do Pólo Norte pediu concordata e conflitos mundiais me encheram de temor. Pensei que seria um bom negócio vir para cá. E onde estão os outros?

– Acabaram-se – o duende baixou os olhos, com um olhar triste –, todos viraram gesso ou pedra. Eu acho que Kalil está entre aqueles enfeites ali.

E apontou para os falsos duendes do Shopping. Pelo visto um deles não fora falso um dia. Eu permaneci calado. É, parece que a crise atingiu até mesmo o Papai Noel! Pensei que o bom velhinho, um dos símbolos do Capitalismo, seria o único imune a suas adversidades. Os dois continuaram sua conversa. Noel mantinha uma expressão cada vez mais fria e severa. O duende, por sua vez, curvava-se cada vez mais.

– Papai, por favor, me aceite a seu serviço. Eu posso ser seu assistente, como antes!

– Impossível, caro Dimas. Eu só posso pagar duas assistentes e – Noel apontou as moças que o acompanhavam –, como vê, não há como eu deixar uma dessas duas lindas jovens sem amparo financeiro, em troca de um molenga como você!

– Mas, mas...

– Chega de “mas”, Dimas! – a voz do velhinho foi enérgica, fazendo o duende encolher-se. – Não quero ouvir mais suas lamúrias. Se quiser, torne-se gesso de uma vez e faça companhia para Kalil. Talvez o Shopping deixe você aí junto com os outros enfeites e, no final da temporada, encontre um lugar quente e seco para te guardar até o próximo natal. Essa é minha única oferta!

Dimas, entristecido, baixou os olhos. Fora vencido, não havia para quem mais recorrer. Eu olhava com compaixão para o pequenino duende. Pensei até em convidá-lo para trabalhar para mim, como faxineiro talvez. Uma criaturinha daquela deveria comer tão pouco! Mas ter um duende em casa talvez não seria lá uma coisa muito comum de se ver. Eu seria alvo de curiosos, telejornais, mídia. Eu não queria publicidade, queria só um conto de natal. Enquanto eu ponderava sobre as vantagens e desvantagens de se ter um duende em casa, Dimas foi lentamente se transformando. Aos poucos tornava-se uma figura mais fictícia do que real, feita apenas de gesso e tinta. O duende agora não passava de uma estátua velha e mal pintada.

Esfreguei bem os olhos, como se estivesse saindo de um transe. Olhei para aquela figurinha triste, enquanto, para minha admiração, as pessoas voltavam às suas preocupações normais. Papai Noel já voltara a atender as crianças com o sorriso mais bonachão do mundo, enquanto os pais riam e conversavam uns com os outros, esperando na fila a vez de seus pequeninos. Somente eu estava maravilhado. Somente eu me preocupava com o duende. Deixei o Shopping com pressa, ouvindo uma música fúnebre, saindo de não sei que lugar, sobrepondo sorrateiramente a música natalina que enchia todo o ambiente.

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Um conto de natal – Parte I


Eu caminhava pelas movimentadas ruas do centro, tentando inutilmente proteger-me do frio com a gola da minha jaqueta. Sim, este é um conto de natal, e todo conto de natal tem que ser aclimatado em uma baixa temperatura, se possível com neve e pessoas taciturnas, cobertas de casacos. Mas estamos em um natal dos trópicos e, por isso, não haverá neve e será verão. Providencialmente, uma frente fria chegou. Motivo do frio que veio a calhar perfeitamente em nosso conto.

Estou andando, sim, tentando não esbarrar com nenhum dos frenéticos cidadãos que precisam fazer suas compras de véspera de natal. Milhares de pessoas acotovelam-se na calçada, em busca de tentadoras ofertas que façam seu presente valer até o último centavo. Eu, porém, não compartilho desse frenesi. Ando à revelia, estou buscando uma cena que sirva de inspiração para meu conto. Infelizmente, apesar do frio, meu natal está pobremente provido de elementos inspiradores. Não existem papais noéis balançando sininhos e pedindo esmolas. Isso é coisa de filme americano. E na verdade quase não vejo Papai Noel algum. Eles estão todos confinados aos Shopping Centers.

Uma idéia atravessa minha mente. É isso! Talvez em um Shopping, devidamente ambientado de acordo com o espírito do natal, eu possa encontrar a inspiração certa para um lindo conto. Sigo quase correndo para o Shopping. Estou com pressa, assim como todos os compulsivos compradores, mas não quero comprar nenhum presente. Quero na verdade criar um conto, presentear o mundo com uma história comovente, talvez até resgatar minha alma.

Entrei pelos altos portões de vidro e senti uma lufada do ar condicionado, mais fria do que lá fora. O caloroso espírito do natal evidentemente já tomava conta dos corredores do Shopping, abarrotado de pessoas que só paravam poucos segundos diante das vitrines para examinar quase mecanicamente os produtos exibidos. Fiquei observando esse bando de autômatos, enquanto andava, calmamente, pelo largo corredor, já assimilando a magia que enchia os enfeites de natal. Tudo é paz, tudo amor. Uma música natalina quase não conseguia superar o barulho de vozes e passos apressados. Segui pelo corredor até chegar ao pátio central, onde uma imensa árvore de natal fora armada.

Meus olhos pararam diante dos enfeites. O trenó, as renas, os duendes, todos inanimados. Somente o Papai Noel esbanjava vida, cobrando módicos valores aos afortunados pais que quisessem satisfazer a vontade de seus filhos de tirar uma foto sentados no colo do bom velhinho. Enquanto eu divagava diante da cena das crianças quase se esmurrando para ter a primazia junto ao Papai Noel, um tumulto começava a surgir alguns metros atrás de mim.

Antes que eu pudesse me virar para observar do que se tratava, o causador da bagunça já passava por mim e andava apressado na direção do trono do velhinho Noel. Assustei-me com a figura. Parecia uma criança, à primeira vista, devido à baixa estatura. Mas, gastando um pouco mais de atenção no exame, qualquer um veria que aquela pessoa não seria uma criança de fato. Seus cabelos eram grisalhos e lisos, embora grossos e cobertos por um gorro verde. Tinha-os na frente aparados rente aos olhos e, atrás, na altura na nuca. Um par de orelhas pontudas despontava além do gorro, insinuando que aquela pessoa não era um ser humano. Seus olhos eram astutos e confiantes, embora estivessem um pouco tristonhos, adornados por sobrancelhas expressivas, também grisalhas. Um bigode espesso cobria o lábio superior, dando à criaturinha um certo ar de autoridade. Sua roupa era toda verde, guarnecida de guizos prateados.

A princípio, quis negar o que meus olhos denunciavam e imaginei que poderia ser um anão fantasiado, talvez um mendigo que conseguira driblar os seguranças, que seguiam atrás dele.

De fato, sua roupa não estava lá um primor. Tinha vários remendos e alguns guizos faltavam, enquanto outros estavam manchados, escurecidos pela ferrugem. Aquelas orelhas não pareciam ser falsas, é verdade, mas existem hoje fantasias que simulam totalmente um personagem natalino. E esse sujeito era idêntico às estátuas de duendes que acompanhavam o trenó e as renas de mentira que enfeitavam a árvore de natal do Shopping.


sábado, dezembro 03, 2011

A Sombra do Vento - A sombra do livro



Quando um livro deixa de ser mero objeto? Na resenha passada, falei sobre esse poder que algumas obras literárias (se não todas) sobre nossas almas e que nunca somos os mesmos após a leitura de um livro.

Nem sempre somos fisgados ou cativados por um texto, por mais sedutor que ele seja. Pode acontecer, no entanto, que sejamos seduzidos sem nem sabermos. Torcemos o nariz para o livro durante toda a leitura para, ao fecharmos as páginas, descobrirmos que a história não será esquecida, que fará parte de nós, que a narrativa irá reverberar em nós, durante nossos silêncios, acompanhando nossa jornada na vida como uma sombra.

Foi um pouco do que aconteceu quando terminei a leitura de A Sombra do Vento. Uma leitura controversa, confesso. Isso porque o livro, por mais bem escrito (as imagens literárias são lindas), ainda não havia cativado este leitor aqui. Continuei resistente até próximo ao final, mais especificamente ao fim de uma parte que se constitui o depoimento de uma das personagens mais importantes da trama. Descobri que estava amando a história.

A Sombra do Vento, obra de Carlos Ruiz Zafón, tem início quando Daniel, protagonista e narrador, desperta em sua cama desesperado, ao descobrir que não se lembra do rosto de sua mãe falecida. Daniel tem então dez anos. Seu pai, um homem sensato, sábio e sobretudo culto, resolve partilhar com o garoto um importante segredo: O Cemitério dos Livros Esquecidos. Nessa mistura mágica de biblioteca e necrópole, o menino encontra um livro que irá mudar para sempre sua vida: A Sombra do Vento, escrito pelo obscuro Julián Carax.

O livro deixa o garoto tão comovido que ele passa a ser admirador de Carax. Infelizmente, não há muita informação sobre esse homem e os anos passam sem que Daniel saiba muito mais. Aos dezessete, porém, uma série de acontecimentos, dentre eles uma forte decepção amorosa, lançam Daniel em uma cruzada arqueológica cujo objetivo é desenterrar as obras e o passado de Julián Carax. Cruzada que se revelará cada vez mais perigosa, à medida que diversos personagens vão se revelando.

Durante a leitura, muitas vezes me perguntei sobre o sentido do título. Afinal, o vento não teria sombra. Quem leu de certa forma sabe a resposta. Apesar da beleza das últimas palavras do romance, pensei em uma gama mais profunda de significados. Na interpretação, damos muito valor ao que foi dito, mas existe também o não dito. Como Clarice Lispector bem disse, as palavras não existem para que as entrelinhas sejam estragadas. Elas servem para realçá-las.

Sendo assim, quando Zafón batiza seu romance com esse título, cria uma bela imagem poética, mas também fala sobre o valor da sombra na trama. Afinal, Carax é um personagem obscuro. Além de ter sido um jovem sombrio, o personagem também é quase desconhecido, quase vivendo na sombra. Se a razão é a luz, a loucura seria a sombra. E não podemos negar que um dos temas mais fortes presentes neste romance é a loucura.

Outro ponto que se revela como possibilidade é a relação entre obra e autor. Ao lermos um livro, pouco sabemos sobre o seu criador. Afinal, quem é esta pessoa que ficou horas a fio imaginando personagens e dando-lhes forma através de linhas e linhas de texto? O que levou essa pessoa a escrever? Existe algum sentido, alguma mensagem que ele desejava transmitir? Ou ele escreveu por puro prazer? Nem todo mundo se faz perguntas desse tipo, mas não podemos negar que as respostas nem sempre estão lá. Assim como aconteceu com Daniel, essas respostas podem estar nas sombras.

Sendo assim, de uma maneira bem ousada, divago até chegar à conclusão de que o livro seria o Vento e o autor sua Sombra. Ainda que invisível, o vento tem uma força incrível. Pode tanto dar forma quanto destruir. O vento é vida e tempo, pois é movimento em excelência. Movimento sem um objeto físico, sem um corpo. O vento muda o rumo dos barcos a vela no mar, assim como um livro mudou a vida de Daniel. Já a sombra é a pergunta que está além do vento. O que o impulsiona? De onde vem? Para onde vai?

É quase impossível imaginar os contornos da sombra de algo desprovido de forma. Eu disse quase. Esse é o poder das palavras e, a um nível maior, da Literatura. Poder de dar vida a conceitos e imagens que antes julgávamos impossíveis. O poder de dar forma ao mundo, de mostrar que a vida é mais do que parece.

Assim, Carlos Ruiz Zafón, em seu A Sombra do Vento, dá forma a ideias controversas. Algumas quase terríveis, outras sublimes de tão belas. Se você quiser se enveredar por essas ideias, bem-vindo. Se não, pode também se encantar com a glamourosa Barcelona dos anos 1950, sempre bela sob a chuva. Pode testemunhar a beleza do amor adolescente. Tenho quase certeza de que, como eu, você sentirá que a viagem valeu à pena.

Ficha Técnica:
Título: A Sombra do Vento
Autor: Carlos Ruiz Zafón
Editora: Suma de Letras
ISBN: 9788560280094
Ano: 2007
Páginas: 399

Tradutor: Márcia Ribas


Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/103