segunda-feira, abril 29, 2013

Lorguth - Parte III de IV

Ir para Lorguth - Parte II de IV


Os grunhidos e rumores de luta foram cessando. Seridath quase não acreditava que eles foram salvos dos zumbis por outro tipo de mortos-vivos, aqueles derrubados por sua espada.
O silêncio entre os guerreiros era profundo. Tudo indicava que eles foram de fato salvos, mas ninguém parecia querer comemorar. Enquanto os sons do incêndio se propagavam na noite, todos se perguntavam se não seria uma armadilha.
Balgata deu ordens rápidas a seus homens para que continuassem de guarda, enquanto ele e Seridath se dirigiam ao casarão. O cavaleiro olhou ao redor, em busca de Aldreth, mas o garoto havia desaparecido. Dando de ombros, Seridath continuou a seguir o capitão. A sala de estar estava apinhada de gente, em sua maioria velhos e crianças. Culliach andava para todos os lados, atarefado em curar feridas e consolar camponeses desesperados. Seridath e Balgata conseguiram identificá-lo devido ao longo manto sacerdotal que o destacava. Não havia sinal de Anfard ou Denor.
Mestre Culliach – chamou Balgata, respeitosamente –, como vão as coisas?
Nada bem, caro capitão – suspirou o sacerdote. – Rheena não parece favorável esta noite e por isso clamo a Nisia e Talman. Temo que as feridas dessas setas tragam maldição para os que foram atingidos. Agora é cedo para qualquer afirmação. Alguém teve a ideia louca de incendiar as casas e por isso tenho muitos tocados pelo fogo, alguns em estado grave, mas creio que tenha sido a plácida escolha de Nereth. Por outro lado, não fosse por essa ação impensada, talvez todos nós já teríamos nos tornado vítimas des...
Seridath cortou o monólogo do religioso:
Olha, padre, não quero parecer rude, mas precisamos ser rápidos. Preciso falar com o Senhor da vila. O nome dele é Denor, estou certo?
O sacerdote estremeceu de uma maneira que Seridath entendeu tudo. Pelo visto, não iria ficar com as cobiçadas botas. Balgata também pareceu entender. O capitão bufou, cerrando os punhos com tal força que chegava a tremer. Ante a fúria daquele homem gigantesco, o sacerdote encolheu-se mais ainda. Olhando para um Balgata totalmente diferente, Seridath ficou maravilhado ao ver como aquele almofadinha havia mudado tanto em apenas algumas horas.
O capitão estendeu a mão direita na direção do sacerdote, que encolheu-se ainda mais, soltando um gemido quase inaudível. Ele parecia ter pouco mais de trinta anos, era magro e de estatura mediana. Tinha olhos grandes e caídos, numa expressão de constante desamparo. Culliach era um dos muitos sacerdotes plebeus que gastaram o mínimo de seu tempo em seminários estudando a parte teórica da religião e passavam a exercer seu ministério nas regiões mais remotas do reino. Mas ele nunca tivera tanto trabalho como agora. Muitos dentre os sobreviventes haviam sido feridos pelo incêndio, outros pelas setas malignas. E justamente nessa noite sombria ele estava diante do único capitão sobrevivente de um exército desesperado.
Balgata tocou de leve o ombro de Culliach, que ergueu os olhos, surpreso. O capitão falou, calma e pausadamente:
Padre, com o perdão da palavra, estamos todos na mesma merda. Eu posso ser um mercenário, mas depois de tudo que vi nesta luta, estou aqui por convicção e não por pagamento. Eu quero ver as pessoas em segurança. Denor e o Juiz fugiram, não é?
Si-sim... – suspirou o sacerdote. – Fo-foram logo depois que as setas começaram a cair.
Sem aviso aparente, Balgata esmurrou a parede às costas de Culliach. O sacerdote, sobressaltado, deu um ligeiro pulo e emitiu um grito estridente e abafado.
Maldição! – bufou Balgata. – Filhos da puta! Nos deixaram para retardar sua fuga!
De-desculpe... – gemeu Culliach.
Não precisa se desculpar, padre – Balgata pareceu acalmar-se diante da fragilidade do sacerdote. – O senhor somente estava obedecendo as ordens do seu amo, conforme mandam os deuses. Eu também não estou em condições de querer acertar as contas.
Já estava tudo preparado – informou Culliach, um pouco mais animado com a simpatia do capitão. – Sabiam que as terras estavam perdidas, que os mortos já começavam a lutar em bandos organizados. A passagem leva a sudeste, rumo a Arnoll. Denor tem uma amante na cidadela e usava a passagem com... bastante frequência. Mas sua esposa e filhas estão com ele, talvez sigam direto para o sul.
Balgata olhou de relance para Seridath, que tinha um sorriso de escárnio no rosto e encolhia os ombros, como se dissesse: "Não vá esperar que eu não busque acertar as contas!". O capitão suspirou e voltou-se novamente para Culliach.
O senhor sabe onde fica essa passagem? – perguntou o guerreiro.
Si-sim. Fica atrás da adega.
E quantas pessoas podem passar por vez?
Nã-não sei... Acho que po-poucas.
Balgata suspirou mais uma vez, enquanto se virava para Seridath.
Vamos dividir os sobreviventes em três grupos – disse o capitão, ainda sem conseguir disfarçar o quanto estava contrariado. – O terceiro grupo vai ser uma isca. Colocamos a maior parte dos velhos e crianças no segundo grupo, que tem mais chance de sobreviver. Queria Anfard ou Denor para fazerem isso, mas você vai ter que liderá-los.
Nem pensar – respondeu Seridath. – Eu vou no terceiro grupo. Vai você, que quer protegê-los.
Não entendeu o que eu disse, orgulhoso de merda? As vidas desses camponeses estão em jogo. Não é hora para brincadeiras!
É isso mesmo, capitão. Você é um oficial de verdade e eu não passo de um soldado raso. O velho Urso Pardo não aprovaria que você me desse qualquer liderança.
Dobre essa língua em vez de falar do Andarilho, maldito! – rosnou Balgata. – Honre a memória dos mortos.
Eu não desonrei ninguém. Só disse o que acredito que o velho faria. A propósito, fui o último a estar com ele na hora de sua morte. Não confunda as coisas, capitão.
Tudo isso foi dito com o máximo de sarcasmo por parte de Seridath. Balgata deu de ombros, deixando evidente todo seu cansaço.
Faça como quiser. Não te considero guerreiro da Companhia. Padre, por favor, reúna os camponeses e divida os três grupos.
Ma-mas... – hesitou Culliach. – E os feridos?
Faça o que puder, padre. Você é o representante dos deuses. Fazer milagres é um trabalho seu, não meu.
O sacerdote baixou novamente a cabeça, enquanto Balgata silenciosamente deixava o recinto, seguido por Seridath. O capitão ardia em ira, mas tentava manter seu autocontrole diante da situação crítica. Não queria provocar baixas por causa de seu orgulho ferido. A prioridade era tirar as pessoas daquela aldeia condenada.
Seridath olhava para ele, divertido. Adorava aquela situação, como se estivesse vendo um espetáculo na primeira fila. Andaram até o salão comunal, onde haviam sido acomodados os feridos mais graves. O capitão Aleigh estava entre eles, ardendo em uma sinistra febre, dizendo coisas sem sentido. Do seu peito as hastes de duas setas negras despontavam. Haviam sido quebradas pela metade, na tentativa de serem arrancadas. Naquele momento, a realidade veio a Balgata. Murrough não fora visto, não estava entre os feridos. Murrough estava morto.


Continua...

sexta-feira, abril 26, 2013

O Espadachim de Carvão - Quando ser Deus não é o bastante

Fonte: divulgação
A passagem da adolescência para a vida adulta é um grande desafio, um verdadeiro problema, principalmente em nossa sociedade, que demanda cada vez mais de nossas crianças uma postura diferenciada, individual, assertiva, enquanto busca proteger nossos "jovens" da responsabilidade que desaba sobre eles quando da chamada "maioridade". Assim, a criança hedonista e ultrapoderosa subitamente se vê novamente indefesa, quando percebe que precisa desbravar o mundo por conta própria, que seus pais não são deuses de fato, que ele na verdade está sozinho e, para viver, deverá ultrapassar os limiares de seu mundo particular - sua casa - e enfrentar o mundo real, com todos os seus absurdos.

Pois é assim mesmo que Adapak, protagonista de O espadachim de carvão, romance de estreia de Affonso Solano, sente-se o tempo todo. Filho de Enki'När, um dos Quatro Que São Um, deuses de Kurgala, o jovem de pele negra como carvão é presa de uma implacável caçada, sendo perseguido por todo o continente, sem ao menos saber o porquê. Adapak foi criado na Casa de Enki'Nar, tendo recebido toda a instrução necessária, inclusive no manejo de armas, embora sua perícia não seja suficiente para que ele não se sinta o tempo todo acossado, perdido, vagando no escuro. 

Numa terra repleta das mais bizarras criaturas, com diversas espécies inteligentes, Adapak terá em seu caminho os mais diferentes personagens, sejam eles honrados ou trapaceiros, sensatos ou loucos. Tendo seu conhecimento e principalmente sua inocência como guias, o jovem guiará o leitor pelo tortuoso caminho do mundo de Kurgala, um caminho sangrento, enigmático e sobretudo revelador.

É importante destacar que a narrativa de Solano tem um ótimo ritmo e adquire um equilíbrio excelente nas cenas de ação. O universo de Kurgala, com suas espécies e sua cultura, é enorme e rico. O autor expande ainda mais esse universo quando, ao início de cada capítulo, insere como epígrafe um trecho retirado de algum dos inúmeros livros que Adapak leu, ou então uma citação das tábuas Dingirï, as escrituras sagradas daquele universo.

É interessante como Solano busca dar um aspecto realístico à sua narrativa, tentando afastar-se do tom fantasioso e do lugar-comum dos elfos e dragões, para desenhar toda uma mitologia própria, que mostra referências claras com as obras de H.P.Lovecraft e outros textos, como a Cabala.

A narrativa é fragmentada. O leitor começa conhecendo Adapak já em sua situação de presa, perseguido por guerreiros implacáveis de diversas espécies. De forma intercalada, os capítulos então recuam para o passado, reconstruindo a vida do jovem, de forma que o leitor lentamente possa descobrir como essa perseguição começou, enquanto o próprio Adapak, confuso e amedrontado, lentamente caminha rumo a uma terrível revelação.

E como afirmei no início deste texto, a jornada de Adapak serve também de alegoria para o amadurecimento do jovem, sempre traumático, pois amadurecer é também perder um pouco da inocência. O status de filho de um deus não lhe confere garantias de que será bem-sucedido em sua empreitada. Sua divindade é posta em prova a todo o momento, não apenas no campo físico, mas também  no emocional. E talvez seja justamente sua parte menos divina seja aquilo que garantirá alguma possibilidade de sucesso.

Repleto de personagens dinâmicos, com cenas ricas em detalhes, O espadachim de carvão mostra-se o trabalho árduo de Solano na busca de configurar um universo amplo, capaz de vários atravessamentos. Assim, arrisco dizer que o romance de estreia de Affonso Solano é de longe uma das melhores produções de fantasia e ficção científica que tenham surgido nos últimos anos.

Ficha técnica

Edição: 1
Editora: Fantasy - Casa da Palavra
ISBN: 9788577343348
Ano: 2013
Páginas: 256


Página do livro no Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/307603/

segunda-feira, abril 22, 2013

Lorguth - Parte II de IV

Ir para Lorguth - Parte I

Seridath ouviu o estardalhaço e percebeu, com o rabo do olho, que Balgata lançava seu oponente a uma boa distância, fazendo-o bater contra a parede de madeira de outro casebre semidestruído. O adversário de Seridath aproveitou a distração para lançar um último ataque. Contudo, era uma distração aparente. O cavaleiro bloqueou a lâmina da esquerda e fintou, desviando-se do corte que vinha pela direita, embora o fio da cimitarra tivesse chegado a fazer um talho em sua orelha. O cavaleiro aproveitou para fazer descer Lorguth contra o braço estendido do oponente, decepando-o. A criatura urrou, enquanto seu sangue negro derramava-se pelo chão. Da ferida feita à altura do cotovelo quatro antebraços começaram a nascer simultaneamente, em espasmos descontrolados. Seridath não esperou a recuperação do inimigo. A criatura tentava bloquear com a cimitarra que restara, mas o guerreiro foi mais rápido em escorar a defesa do outro. Jogando o corpo para frente, ele estocou, perfurando o tronco da criatura.
Aquele foi o primeiro momento que Seridath matava após ter devidamente despertado os poderes de Lorguth. Foi uma experiência ímpar. Era como estar mergulhado em uma profunda escuridão e perceber a chama de uma tocha à sua frente, sentindo o calor dessa chama tornar-se seu próprio calor, enquanto a tocha era apagada num instante. Seridath não fechou os olhos por nenhum momento, mas foi assim que ele percebeu tudo. E adorou cada milésimo de segundo. O cavaleiro também recebeu, por um instante, os sentimentos e intenções de seu inimigo. Sentiu todo o ódio, o rancor e a surpresa da derrota. E essas sensações não foram menos deliciosas.
A criatura morta parecia agora um esboço de boneco, sem rosto ou contornos definidos.
Ei! Ei!!! – gritou Balgata ao lado de Seridath.
O quê? – perguntou ele, saindo de seu êxtase.
Quer morrer, idiota!? O fogo já está quase chegando aqui!
Balgata virou-se e retornou ao lugar que havia arremessado seu oponente. O capitão recuperou sua espada, que mantinha o cadáver do inimigo preso aos escombros do casebre. Seridath voltou-se para Aldreth e observou o arqueiro tremer, encolhido contra a parede de madeira. O cavaleiro levantou seu pajem com um puxão violento pelo pulso. O garoto nem parecia assustado, mas catatônico. Voltaram a correr pelo labirinto dos casebres, derrubando qualquer zumbi que surgisse em seu caminho. Seridath foi o primeiro a alcançar o centro da aldeia, sendo seguido por Aldreth, Balgata e os demais.
Pararam todos em frente à casa do prefeito, que estava lotada de refugiados. Na varanda e nas janelas, arqueiros e anões estavam postados em ângulos estratégicos. Parte do telhado havia sido removido e alguns dos aldeões também estavam lá, junto com os homens do Juiz Anfard e do Senhor Denor. Carregavam arcos e bestas de caça. Dava para ouvir o pranto e as lamúrias de dentro do casarão, sons que se misturavam com os gritos de pavor das vítimas e gemidos incompreensíveis dos mortos-vivos. Aquele tal de Culliach, o sacerdote, devia estar bem ocupado. Seridath não deixou de achar graça naquilo tudo. Pelo menos, havia conseguido o que queria. Lorguth estava sendo útil em suas mãos.
O incêndio alcançava o centro da aldeia, tornando a fumaça ainda mais densa. Pelo menos, o fogo parecia funcionar mesmo contra os zumbis, pois até aquele momento, nenhum havia se aproximado. Os homens permaneceram alertas, esperando os inimigos surgirem do meio da escuridão e da fumaça. Estranhos grunhidos e som de correria foram gradativamente tomando forma além do campo de visão dos guerreiros sobreviventes. Parecia improvável, mas os sons de uma misteriosa batalha ecoavam no meio da escuridão. Seridath, com os olhos ávidos, perscrutava o que ocorria por detrás do manto enfumaçado. Seus olhos captavam algumas cenas de luta corporal entre seres que ele não conseguia distinguir.
Subitamente, irrompeu dos escombros e da fumaça a figura de um dos mortos-vivos carregado seu machado. Tinha perdido o braço esquerdo e uma das pernas parecia torcida. Ele mancou feroz rumo ao grupo de guerreiros que estava em frente à casa. Mas dois outros seres vieram em seu encalço. Pareciam vagamente humanos, mas não mais que o zumbi que perseguiam. Vestidas de farrapos, essas criaturas tinham pústulas e erupções por todo o corpo avermelhado e, de alguma forma, pareciam familiares a Seridath. O rapaz sentiu a mão trêmula de Aldreth tocando seu braço.
Re-Rerfard! Dri-Driscol ta-ta-também! – gaguejou ele para Seridath. – Os bandidos... os bandidos que você matou!
Seridath olhou atordoado para arqueiro. As criaturas acabavam de despedaçar o inimigo com as unhas e os dentes. Uma delas voltou os olhos vermelhos e injetados para o cavaleiro e depois sumiu na escuridão, sendo seguida pela outra. Engolindo em seco, Seridath olhou para sua espada Lorguth. Agora tudo parecia fazer sentido. Aquela arma concedia uma morte amaldiçoada para quem caía pelo seu fio. Depois de morto, o inimigo era obrigado a lutar pelo portador da espada. Era esse o poder tão maligno do "Sombrio"?

sexta-feira, abril 19, 2013

Memórias da Emília - Faça sua própria história!


Fonte: divulgação
A relevância da obra do escritor Monteiro Lobato para a literatura, sobretudo a infantil, é indiscutível. Homem polêmico e arrojado, Lobato usava do universo mágico do.Sítio do Picapau Amarelo para dar vazão a suas ideias tão controversas. Já tratei aqui sobre um de seus livros, "O Saci", que aborda de forma ímpar o folclore brasileiro, dando ao mesmo contornos literários, usando a cultura popular como matriz para uma grande aventura mítica.

Contudo, a saga do Picapau Amarelo vai muito além. Todos sabem que a personagem mais famosa de Lobato é justamente Emília, a boneca de pano. E não é difícil imaginar o porquê. Nela o escritor insere todo o seu espírito crítico, tão mordaz e implacável. Emília é sobretudo uma alma livre, e que abusa dessa liberdade sem medir consequências. A boneca é geniosa e impertinente, mas também é genial e encantadora. Nascida muda e feia, de um pedaço de uma saia velha de Tia Nastácia, ela vai lentamente evoluindo, conquistando de forma gradativa seu lugar. A princípio, era Narizinho, sua dona, que decidia seu destino. Aos poucos, porém, Emília alcança sua independência, jamais abandonando seu caráter combativo.
A busca de Emília por se fazer plena como indivíduo a conduz à decisão de escrever suas "memórias". Esperta como ela só, a boneca emprega ninguém mais que o Visconde de Sabugosa como mão-de-obra. O sábio sabugo protesta, negaceia, mas por fim tem que ceder. Afinal, Emília é impossível.

E apesar do Visconde ser obrigado a empenhar a mão e a pena, Emília a todo momento supervisiona o trabalho, até o momento que ela decide interferir. Põe o Visconde de lado e dá prosseguimento ao relato. O Visconde, ao ver que Emília escrevia sobre uma viagem a Hollywood, nunca ocorrida, tentou contestá-la, dizendo que memórias não podiam ser inventadas. Com muita presença de espírito, a boneca retruca que as memórias eram dela. Ou seja, ela tinha toda a liberdade para decidir o que era real ou não.

Através de Emília, Lobato aborda questões profundas como a formação da identidade, a fragilidade do discurso histórico e a relação, muitas vezes conturbada, com o diferente. Emília não deseja que suas memórias contribuam para a construção de uma imagem positiva, mas busca uma maior correspondência com o que a boneca vê de si mesma e do mundo. Para Lobato, Emília é mais que uma personagem cativante. Ela expressa o ideal do autor de que toda criança seja protagonista de sua história, senhora de seu destino.

Emília certamente não seria um pessoa fácil. E quem disse que a literatura infantil tem que ser fácil? É através da boneca que Lobato busca falar com a crianças em seu tom mais pessoal, revelando todos os seus paradoxos. Pois era assim que Lobato também via as crianças, como pessoas fascinantes, repletas de energia e de possibilidades.

Editora: Brasiliense
ISBN: 8511190147
Ano: 1994
Páginas: 60


quarta-feira, abril 17, 2013

Noite Lobatiana

De vez em quando publico neste espaço algum relato sobre meus percalços na mediação da leitura. Trabalho na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte, embora não seja bibliotecário. E adoro o que faço. Geralmente procuro falar pouco de mim, deixo este espaço para a ficção. Ainda assim, de vez em quando é impossível deixar de compartilhar algum acontecimento ocorrido na Biblioteca.

Foi o caso da noite de ontem, quando recebemos o professor e pesquisador João Luís Ceccantini. Sua palestra abordou a vida e a obra de Monteiro Lobato de um jeito tão apaixonado que acredito que dentre os 84 participantes, se havia alguém que não flertava com esse autor, com certeza pelo menos tentará ler algum de seus textos.

Ceccantini começou sua fala abordando a natureza contraditória de Lobato, como um homem que nasceu em um século mas viveu outro. Ou seja, nele estavam expressas as angústias e tensões presentes em toda uma geração, embora Lobato tenha transformado essas tensões em criatividade, enquanto muitos outros autores, contemporâneos seus, tenham simplesmente buscado encobri-las com uma camada de hipocrisia, tradicionalismo e "bom português". 

O professor procurou guiar seu público ao mais íntimo da vida e da mente de Lobato, lendo trechos de suas cartas e mostrando toda a literariedade latente, que futuramente eclodiria em inúmeros livros, amplamente conhecidos por tantos de nós. As imagens poéticas tecidas na correspondência do autor com seu melhor amigo, Godofredo Rangel, revelam como Lobato era um homem preocupado com sua realidade, angustiado por amar um país repleto de desigualdades, ainda dominado econômica e culturalmente.

Em nenhum momento o professor procurou suavizar a imagem desse Lobato iracundo, polêmico e implacável, inclusive na questão do racismo. Ele apenas mostrou que Monteiro Lobato deixava transparecer um rico jogo de forças que por vezes eram opostas, por vezes se complementavam. Homem público desde a juventude, Lobato sempre procurou propagar suas ideias, muitas delas radicais, embora nunca tenha deixado de assumir que suas posições não eram absolutas e que ele podia muito bem revê-las. Visionário, buscou transformar a realidade literária do país, praticamente lançando as bases do mercado editorial brasileiro através de arrojadas estratégias de marketing. 

Foi uma noite deliciosa para todos os que amam a literatura de Monteiro Lobato e fascinante para os que não a conhecem. Sim, o nome de Lobato é largamente conhecido, mas não podemos negar que muitos, inclusive aqueles que sustentam discursos contrários a esse autor, sequer leram suas obras.

segunda-feira, abril 15, 2013

Lorguth - Parte I de IV


Ir para O Último Capitão - Parte III de III


A noite já ia pelo meio e Keraz estava mergulhada em um mar de fogo, sangue e escuridão. No setor norte da cidade um punhado de bravos guerreiros vendiam bem caro suas vidas. Eram cerca de quarenta homens, número que diminuía a cada momento. Os mais valentes compunham a vanguarda da cerrada fileira de escudos, empurrando com toda energia os invasores. Aldreth havia devolvido o escudo do amo e estava perfilado junto aos poucos arqueiros.
Enquanto desferia golpes com o braço e com a mente, Seridath teve uma estranha sensação de perigo. Olhou para a frente da fileira de guerreiros e viu uma daquelas criaturas nojentas que mudavam de forma. Não pareciam ser mortos-vivos e lutavam com notável habilidade, embora não estivessem em número suficiente para quebrar a fileira de escudos. Eram poucas e estavam caindo, mas a sensação de mal-estar não abandonava o jovem, que virou-se para Balgata e descobriu que o capitão parecia sentir o mesmo desconforto. Uma das criaturas abatidas fez um movimento rápido ao levantar-se e lançar-se contra os homens da linha de frente. A sensação de perigo iminente atravessou o corpo de Seridath como uma corrente elétrica.
Saiam já daí! – gritou o guerreiro.
Mas era tarde demais. O monstro emitiu um urro agudo e explodiu, despedaçando alguns dos guerreiros, deixando os outros como tochas humanas. Aquele foi o limite do desespero para alguns dos sobreviventes, que se lançaram para a morte como loucos.
No meio daquela confusão, Seridath reconheceu o arauto. O rapaz tinha o sabre desembainhado e havia perdido o elmo, mas lutava até bem, com certa elegância, e não parecia temer os monstros sem rosto. Ao perceber Seridath, o arauto gritou:
Senhor, o capitão se recusa a sair, dizendo que precisa defender o perímetro!
Certo – retrucou Seridath, irritado. – Volte para o casarão do prefeito com seus homens. Agora!
Enquanto o arauto cumpria a ordem, Seridath se aproximou de Balgata, que lutava ferozmente e distribuía ordens aos poucos homens que lhe restavam.
Balgata! Capitão! – gritou Seridath. – Temos que recuar! Temos que chegar à casa do prefeito e protegê-la a qualquer custo! Todos estão reunidos lá!
Não tente me dar ordens, maldito! – respondeu o capitão, com violência.
Não há jeito, capitão! O incêndio nos deixará isolados entre o fogo e os mortos! Temos que recuar!
Vamos, homens! Para a casa do prefeito!
Balgata estava fulo da vida. Era difícil, não queria acreditar, mas começava a compreender que era o único capitão ainda em combate. Aquele garoto impertinente parecia ignorar isso, tentando dar ordens em suas costas, disputando com ele a autoridade e pondo em risco a segurança dos soldados. Naquele momento tão conturbado, pensava apenas na sobrevivência de todos. Mais tarde lidaria com o moleque.
Evitaram o cerco de zumbis e seguiram para o centro da aldeia. Um pouco mais e teriam ficado de fora do cinturão de fogo. Agora, Keraz era uma mistura de chamas e ruínas. O plano de Seridath em transformar as casas destruídas em barricadas havia dado certo, já que os mortos-vivos não eram inteligentes o suficiente para ultrapassá-las, tendo que passar por caminhos estreitos. Assim eles se tornavam alvos de flechas e esferas explosivas.
No meio dos casebres em chamas, os guerreiros corriam por suas vidas. Balgata, envergonhado, ouvia ao longe os gritos de misericórdia de alguns de seus companheiros. Ele nunca poderia lavar sua honra depois daquela desgraça em Keraz.
Nesse momento, o capitão precisou do máximo de sua agilidade para escapar da espada recurvada de um daqueles monstros mutantes, que estava em seu encalço. Havia poucos deles dentre os inimigos, mas por serem criaturas vivas e inteligentes, simples barricadas não os impediriam de avançar rumo ao centro da aldeia. Balgata esvaziou a mente, priorizando o instinto, enquanto cruzava espadas com o ser maligno. Seridath estava à direita do capitão e adiantou-se para ajudá-lo a abater seu inimigo. Balgata interpôs-se entre o rapaz e seu oponente, deixando claro que não queria que Seridath interferisse.
O cavaleiro jogou Aldreth contra a parede destruída de um dos casebres e protegeu-o com o próprio corpo. O arqueiro era quase tão alto quanto Seridath, mas não tinha a mesma compleição robusta. O cavaleiro girou Lorguth contra uma outra criatura que surgia à sua direita, de trás dos escombros do casebre. Como esperado, o inimigo bloqueou a espada negra com uma de suas cimitarras e executou o contra-ataque com a outra. Não dava para saber ao certo qual mão era usada, se esquerda ou direita, pois parecia que o inimigo estava de costas e que apenas sua cabeça mantinha-se voltada para Seridath. As articulações dos cotovelos também pareciam invertidas. O inimigo soltou uma risada estridente, partindo contra o cavaleiro com as duas lâminas descendo e cruzando-se em diagonal.
Trocaram uma sequência rápida de golpes. Esse curto embate garantiu ao cavaleiro um talho superficial na face esquerda, um corte um pouco mais profundo no braço direito e uma dor aguda na coxa esquerda. Mas ele ainda não havia atingido o inimigo.


Continua...

sexta-feira, abril 12, 2013

Bom Dia, Mundo Cruel!

É com essa ironia bem-humorada que o escritor Rodrigo Teixeira abre seu espaço literário, saudando com todo o escárnio possível esse símbolo do absurdo humano.

Conheci o Rodrigo Teixeira em um mutirão feito num centro cultural. Foi coisa engraçada, pois estávamos lá, um monte de gente, responsáveis por avaliar um depósito cheio de livros. E de repente alguém comenta comigo: Rodrigo Teixeira é contador de histórias. Curioso, fui averiguar qual era a do cara.

Foi o início de uma forte amizade. E assim lentamente fui descobrindo que Rodrigo Teixeira tece histórias, muitas suas. Fascinado por Kerouac, Ruffato, Cortázar e muitos outros, esse jovem escritor revela em seu blog sua busca incessante por uma literatura própria, visceral, desconstrutora. Com uma escrita sincera, confessional ele faz o mesmo que os grandes escritores, pois busca alcançar o máximo no dizer. E sua busca acaba por lançá-lo diante de uma muralha implacável: o mundo.

Ao acessar o blog Bom Dia, Mundo Cruel! o leitor perceberá que o espaço é antes de tudo um laboratório de criação literária. Assim, o estúdio do Rodrigo Teixeira assemelha-se também com a forma do monstro de Frankenstein, no bom sentido. Sua multiplicidade propicia ao leitor um passeio muito mais rico pelas páginas do blog. Num caráter sempre dialógico, Rodrigo busca manter sempre um canal com o leitor, num tom quase documental, como se quisesse mostrar-nos cada aspecto de seu crescimento literário, ainda que positivo ou negativo. Ainda assim, nem o próprio Rodrigo se leva a sério, conferindo ao texto uma leveza ímpar, ou melhor, uma grande agilidade o que considero ser uma das marcas de sua genialidade.

Para aqueles que primeiro se aventurarem nas postagens do blog, podemos traçar alguns caminhos básicos. Uma grande dica são os marcadores que Teixeira usa para organizar seus escritos. Em destaque, está o conjunto intitulado Crônicas da Casa Velha. Neles, um jovem chamado Ismael narra num tom quase niilista os percalços e misérias de um grupo de jovens que partilham uma mesma residência. As experiências que o narrador descreve muitas vezes ocorrem em ambientes boêmios, regados a muito álcool e certa dose de violência. 

Outras seções vão se desdobrando no blog, como Quase literatura, Vida acidentada e semiótica de boteco. Ainda assim, já aviso aos leitores que não considerem estanques tais classificações. Rodrigo deixa difusas e indefinidas as fronteiras entre cada uma dessas categorias, de forma que a cada momento, o leitor pode se deparar com um texto que mude sua perspectiva sobre todo o blog e cada um dos textos nele contidos.

Bom Dia, Mundo Cruel! é muito mais que um blog literário, pois assume dimensões que ultrapassam suas fronteiras, tanto para fora quanto para dentro dos textos. Com seu texto ágil, consciente e irônico, Rodrigo Teixeira constrói não apenas um espaço com excelente literatura, mas também um arquivo sobre o processo de criação literária, uma jornada fascinante pelo implacável mundo das palavras.

quarta-feira, abril 10, 2013

InFelicianos

O texto abaixo foi postado originalmente no Facebook. Contudo, por causa de sua repercussão, resolvi fixá-lo aqui, no meu espaço mais precioso. Além disso, eu havia cometido alguns erros e português e o Facebook não nos deixa editar o status. Este é o meu canal, o lugar da minha voz. Por isso acho imprescindível que o desabafo em questão fique em seu lugar de direito. 
Para aqueles que não acompanharam a discussão, meus comentários se originaram principalmente da notícia sobre dois missionários brasileiros presos em Senegal há cerca de cinco meses. Felizmente, o habeas corpus para ambos foi expedido e por isso eles podem aguardar o julgamento em liberdade.


Como havia comentado com uma amiga, estou chocado com a situação dos brasileiros em Senegal. Mas o que me deixou mais aturdido é a forma como eles estão sendo julgados pelos próprios leitores e internautas brasileiros por causa do adjetivo "missionários". 

Quem vê meus comentários aqui sabem que não gosto de ser polêmico. Acho que polêmica é babaquice. Antes que atirem pedras contra mim, já explico. Barulho por barulho é algo vazio. Quando gritamos demais alguma coisa ela perde o sentido. Nossas ações é que contam. E o ativismo da internet muitas vezes se resume a isso: grito.

E o pior de todo esse grito é que os discursos estão se radicalizando. A galera do Feliciano o considera um herói e ele fica expelindo comentários homofóbicos, racistas e machistas da pior ordem (como por exemplo dizer que beijo entre mulheres seria mais aceitável) e se achando o porta-voz de Deus. E muitos evangélicos dão força a essa atitude, reforçam seus preconceitos e colocam o Feliciano no mesmo patamar que Jesus. 

Do outro lado, a luta para tirar o Feliciano acaba promovendo uma outra radicalização: pessoas que começam a pensar que evangélico é tudo homofóbico e racista. Largar o conforto no Brasil para fazer obra social em Senegal não é ser etnocêntrico. Não é ser racista. É tentar mitigar minimamente o que os católicos e evangélicos europeus e norteamericanos fizeram (e ainda fazem) solapando todo panorama étnico, simbólico, cultural e econômico do continente africano. 

O que me deixa chocado é que pessoas estão fazendo os piores comentários nas notícias, julgando esses missionários por serem cristãos evangélicos. Acusando-os de etnocentrismo e os chamando para buscar ajuda dos "felicianus". Eles não entendem que estão fazendo a mesma coisa que tanto criticam quando ficam sabendo de algum evangélico fundamentalista que incendiou um templo indígena. Eles estão reforçando preconceitos.

Por isso, faço um apelo. Você, que é evangélico, procure alguém que você conheça que seja gay. Converse com ele sobre tudo. Conheça-o. Vá à casa dele, coma de sua comida, chame-o para ir à sua casa. E fale de religião se ele te pedir. Fale de certo e errado se ele te pedir conselhos. 

Mais uma vez, por favor, não fale de religião, de certo e errado com ele. Ele sabe o que quer e se ele estiver feliz com isso, contente-se em estar feliz com ele também. 

Ah, e você, não evangélico, que acha que todo "crente" é fundamentalista, preconceituoso, homofóbico e tudo o mais, faça o mesmo. Converse, dialogue. 

Eu amo meus amigos gays. São como irmãos para mim. Fico feliz com a felicidade deles e absolutamente não sou contra sua orientação sexual. Se eles querem conselhos, tento dá-los da melhor maneira. Contudo, eu tenho a plena consciência que eles são adultos, crescidos, maduros e sabem muito bem o que é certo e errado. Não precisam de alguém preconceituoso para tentar enfiá-los em camisas de força.

Continuo contra a presença do Feliciano na presidência da CDHM. E acho que todo o quadro de deputados deveria ser renovado. Que cada um de nós faça um esforço mínimo para se politizar de forma positiva, não votando nos políticos que lá estão e escolhendo os candidatos que tenham uma coerência entre discurso e ação. Pois foram esses deputados que colocaram o Feliciano lá. Eles também devem sair.

Vamos continuar dizendo que o Feliciano não nos representa, mas entendendo que o deputado e pastor Marco Feliciano não representa sequer os evangélicos que ele diz representar.



segunda-feira, abril 08, 2013

O Último Capitão - Parte III de III

Ir para O Último Capitão - Parte II de III


Os seres hediondos aproximavam-se de Balgata e seus homens, lutando com selvageria. Um desses inimigos fez brotar um braço impossível de suas costas e estrangulou o guerreiro que o enfrentava. Outra das criaturas deformou seu rosto até que ele mostrasse a face de seu oponente. Aquilo era por demais perturbador. Muitos homens de Balgata preferiram entregar-se à morte que à loucura. Um terço de seus guerreiros foi destruído dessa forma. Uma das criaturas aproximou-se do capitão, com o rosto deformado mostrando uma única boca vertical, que partia do meio da testa e ia até a nuca. E foi naquela boca que Balgata golpeou, partindo a cabeça da criatura até o meio dos ombros. O monstro tombou imediatamente, soltando espasmos irregulares antes de morrer.
Eles morrem, homens! – gritou o capitão, com fúria. – Esses malditos morrem com nossas lâminas. Avante, guerreiros da Companhia!
Aquele brado do capitão, contudo, não havia sido suficiente para infundir coragem aos homens desesperados. Alguns deles mantinham a mesma postura que seu capitão, mas a maioria não estava tão confiante. Os guerreiros foram caindo com rapidez, selando a derrota de Balgata e seus homens. Junto às criaturas deformadas, zumbis começaram a entrar em grande número pelas brechas na paliçada. O capitão ordenou que formassem uma linha compacta, unindo os escudos. No início da escaramuça, Balgata podia contar com quase cem homens, mas agora o número havia sido reduzido a pouco mais da metade.
Os seres horrorosos lançaram-se contra os escudos, soltando gritos histéricos. Os zumbis e as criaturas fizeram uma pressão formidável sobre os homens da Companhia, que fraquejavam e perdiam mais terreno. A fileira formada por eles era frágil, mas os sobreviventes ofereciam obstinada resistência, lutando por suas vidas. Logo mais homens surgiram do interior de Keraz e começaram a engrossar a fileira de Balgata. Surpreso, o capitão olhou para o lado e avistou Seridath, aquele rapazote arrogante, que havia dado vexame com aquela estranha espada negra. E era esse mesmo rapazote quem trazia auxílio. Balgata sentiu um gosto amargo na boca, enquanto um palavrão tomava forma na sua cabeça.
Seridath avistou os homens de Balgata e viu que eles estavam em sérios problemas, praticamente cercados pelos mortos-vivos. Entregou seu escudo para Aldreth e bradou:
Fique comigo! Você vai ter que usar isto se não quiser morrer. Ponha-se de costas para mim e defenda-se como puder.
Os homens que o seguiam haviam triplicado. Eram agora pouco mais de vinte que chegavam com o jovem cavaleiro e seu pajem. Correram em auxílio do restante de homens que enfrentavam aquelas criaturas medonhas e os zumbis que as seguiam. Seridath investiu contra o morto-vivo mais próximo. A espada negra atingiu em cheio o braço putrefato do inimigo e deveria tê-lo decepado, mas não houve resultado.
Saia daqui idiota! – bradou o capitão. – Não vê que essa espada maldita é inútil?
Ignorando a ordem, Seridath uniu toda a sua vontade e bradou, dentro de sua mente, falando diretamente com a espada. "Você é minha, Lorguth. Minha vontade é soberana, pois venceu a Montanha e obteve o prêmio: você. E agora, como minha propriedade, como meu prêmio, você fará a vontade de seu senhor!" A lâmina negra emitiu um som agudo, enquanto vibrava com força. O guerreiro girou sua arma contra o pescoço do zumbi, com rapidez e agilidade. A cabeça do inimigo voou ao ar, enquanto o corpo, já inanimado, tombava lentamente. Seridath sentiu seus braços fraquejarem. Era a espada pedindo alimento. O guerreiro apertou mais as mãos em volta do punho e sentiu uma estranha euforia tomando conta dele, enquanto sua lâmina encantada rebatia os ataques inimigos e rechaçava seus corpos podres. A escuridão tomou o lugar enquanto a espada negra executava sua dança maligna.


Continua...

sexta-feira, abril 05, 2013

Cálida Poesia

Todas as flores que já conversaram
comigo não me disseram nada além de mentiras...
(Anne-Marie de Backer)

Sobre Simone Teodoro, no blog Cálida Poesia:
Nasci em Belo Horizonte. Cresci também. Ainda não me casei. Ainda não tive filhos. Nunca fui famosa, nem escrevi vários livros. Ainda não morri. Sou leitora voraz. Dentro de mim há um jardim de delícias....


Conheci a Simone Teodoro ainda no primeiro período do curso de Letras, nos idos 2002. O pessoal tinha recolhido os endereços de e-mail e criado um grupo para nos comunicarmos. Foi quando conheci a Talita, confusa e visceral narradora de muitos dos textos da Simone. De primeira percebi seu vigor com as palavras, sua vontade de demonstrar com imagens poéticas sua perspicácia, sua ironia e seu aturdimento diante da estupidez social. Mas não era Talita a única a personificar o talento da Simone para a escrita. Seus textos por vezes assumiam caráter de.crônica que tornava inconfundível a voz da autora neles.

Em minhas leituras tão abertas e inocentes, tudo no texto da Simone me maravilhava, como se houvesse em cada palavra múltiplos sentidos secretos, que só aqueles no mínimo tão sensíveis quanto ela poderiam apreender.

Fascinado, eu explorava a prosa de Simone e aproveitava os momentos de caminhada após as aulas para fazer um pouco de tietagem. Perguntando sutilmente sobre todos aqueles sentidos secretos. Enquanto ela, sempre modesta, talvez nunca tenha percebido esse fã convicto.
O semestre passou e meio que perdemos contato. Anos depois nos reencontramos e ela me apresentou seu blog, Cálida Poesia. Nele pude ter um outro contato com uma Simone mais madura, irônica e muito mais lírica. Seu domínio da letra permite que num mesmo espaço se encontrem o lirismo sutil e refinado com a ironia pungente.

Em seu blog, Simone se realiza em diversos gêneros textuais, embora seja na poesia, como o próprio nome do blog indica, que ela dá vazão a sua pulsão criativa, ao seu talento para a arte literária. Não seria de se estranhar, portanto que ela seria selecionada pelo IV Prêmio Canon de Poesia, com este maravilhoso poema:

Deserto

A tarde se fratura.
E o outono tem sempre 
esse gosto de fim, que te aniquila.

O vento escuro suga tua alma
(aberta confusamente)
para a solidão das pedras frias: a matéria triste das montanhas.

Melancolias alcoólicas te povoam.

Bolhas de sonhos explodem no ventre
infecundo das estrelas.

Em vão, estendes os braços trágicos
a procura da alavanca que possa
frear o irreversivel.

Estás só, estática esfinge
sem enigma.

                                                      Postado por Simone Teodoro às terça-feira, julho 20, 2010 


A autora também publica contos, relatos  cotidianos, reflexões afiadas sobre questões diversas e até faz um pouco de crítica literária, apresentando-nos alguma excelente autora que seja ignorada pelo mercado editorial brasileiro.

Assim, conhecer o Cálida Poesia é mais do que ler um blog literário. É permitir-se um bom diálogo com uma mente genial e de um refinamento modesto, livre se arrogância academicista. 

Simone é hoje uma grande amiga, irmã no trabalho e nas buscas literárias. É família. E seu espaço virtual de realização poética, o Cálida Poesia, mostra a cada novo texto, seja ele um poema, um conto ou um relato, que ela nunca se encerra em si mesma, que seu universo é amplo, criativo, mutável e poderoso. Uma cálida potência poética.

quarta-feira, abril 03, 2013

A seiva encantada do sonho

Quando cheguei ao quarto, lá estava ela, pequena e franzina, quase se perdendo em meio aos lençóis. E ao vê-la assim, tão frágil, uma única palavra veio à minha mente: carinho. Era como se ela fosse a própria imagem do carinho. 

Ajoelhei-me ao seu lado, minhas mãos envolveram a sua, enquanto eu recitava o costumeiro pedido de bênção. Suspirando, ela me abençoava em silêncio. Inclinando-me sobre ela, cobri seu rosto de beijos.

Contemplei o seu silêncio, mais uma vez buscando retornar com ela aos tempos idos, seus momentos cotidianos que ao presente se impunham como imagens sonhadas. Impossibilitado, oferecia a ela minha presença, como principal prova do meu amor.

Subitamente, ela sussurra, fala de meninas sonhadas invadindo a realidade. Sôfrego, eu sorvo suas palavras, enquanto sinto seu hálito banhar meu rosto. É um cheiro bom, cheiro de memória e infância. Enquanto ela desfia suas vivências sonhadas com as meninas-mulheres, almas de sonho, eu também sonho com ela, adentro em seu mundo e me encanto com sua voz tão fraquinha e tão pungente.

Enquanto sou embalado pela voz dela, meus olhos passeiam pelas veias roxas que envolvem sua mão. Eu as sigo com os dedos, fascinado, como alguém que se percebe venturoso ao descobrir as raízes onde corre a seiva encantada do sonho.

segunda-feira, abril 01, 2013

O Último Capitão – Parte II de III

Ir para O Último Capitão – Parte I de III


Seridath ditou ao arauto as últimas ordens. Deveria partir em busca de Balgata e seus homens, para guiá-los ao casarão principal, residência do prefeito, onde iriam oferecer resistência obstinada. Iriam sangrar naquela batalha até a última gota. O garoto apenas assentiu e levou a trompa aos lábios, entoando o toque de agrupamento. Alguns guerreiros olharam para trás, surpresos. Quase não havia mais paliçada para ser protegida, uma vez que as brechas eram numerosas, sendo impossível repará-las ou ter homens para guardá-las.
Guerreiros e arqueiros foram se reunindo a Seridath, embora alguns estivessem tão feridos que eram arrastados ou carregados pelos outros. Um grupo de três ou quatro soldados se atrasou e foi engolido pela turba de zumbis que avançava sem deter-se. Os demais apenas ouviram os gritos desesperados dos homens, clamando pelos deuses, enquanto eram golpeados pelos machados dos inimigos. Sem sentir o menor vestígio de compaixão, Seridath apenas observava os casebres de madeira e cobertura de feno. Lembrou-se das casas queimadas com os infectados dentro. Teve uma ideia. Escolheu seis homens dentre o grupo que havia se ajuntado a ele. Os demais foram despachados com o arauto.
Seridath explicou com rapidez seu plano aos homens. Eles assentiram e espalharam-se, penetrando nas choupanas. Aldreth seguiu o amo. Entraram em um dos casebres. Em algum lugar acessível, deveria haver um pote de barro com brasas para acender o fogão e foi fácil encontrá-lo. Enquanto o arqueiro destampava o pote de barro e espalhava as brasas pelo chão, Seridath arrancava as pernas do único banco que havia na casa, envolvendo-as com palha e os trapos que deveriam ser usados como roupas pelos aldeões. Tinham quatro tochas, duas para cada um. Incendiaram-nas e deixaram o fogo pegar também na cobertura de feno. Logo as brasas espalhadas pelo chão de barro batido também produziam chamas que lambiam as paredes.
Os dois saíram rapidamente do casebre, correndo entre as casas e usando as tochas para incendiá-las. Seridath viu que outras quatro casas também ardiam, mas em poucos segundos o número triplicou, já que os telhados de palha eram quase colados uns nos outros. Junto com Aldreth, o rapaz já conseguira pôr fogo em outras cinco e logo as chamas se alastraram mais ainda. Para júbilo dos guerreiros, as chamas naturalmente repeliram os zumbis. Algumas casas, desabando, espalhavam brasas, bloqueando completamente a passagem.
Com o plano de Seridath, ganhariam tempo. O arauto voltou com mais homens e alguns camponeses que ajudaram a incendiar as casas em outros pontos da aldeia. Os aldeões realizavam o trabalho com lágrimas nos olhos, mas conscientes de que a vida era mais preciosa e casas poderiam ser reconstruídas. O fogo começou a formar um cinturão em volta do centro da aldeia, mas alguns guerreiros, por imprudência, viram-se cercados, entre as chamas e os mortos-vivos. Os que não morreram por golpes de machados e marretas dos mortos, lançaram-se nas chamas. Seus berros de desespero, ao serem engolidos pelas labaredas, foram ouvidos ao longe.
Seridath sequer olhou para trás. Seu trabalho naquele setor estava terminado. Lançou a tocha sobre o telhado do casebre mais próximo e disparou entre os becos estreitos da aldeia, tendo Aldreth logo atrás de si. Outros sete ou oito homens uniram-se à dupla, correndo de forma quase homogênea. Era até irônico, para Seridath, que aqueles homens, que provavelmente o desprezavam, terem acatado justamente suas ordens. "As mariposas voam em círculos, desorientadas, atraídas pelo fogo" pensou o cavaleiro, morbidamente. O fogo alastrava-se com mais rapidez que o esperado, mas um grande número de aldeões trabalhava para derrubar algumas casas mais próximas do centro de Keraz, formando barricadas e impedindo que as chamas se alastrassem demais. A noite fechava e a lúgubre luz do incêndio lançava sombras fantasmagóricas sobre os homens condenados.